Estômago vazio. Sem peso, sem nada, nem vento pra chamar de
alimento. Falta de prazer, carência de gosto, vigor é lenda, é raro, quase
nunca se vê aqui por dentro. O inverso do cheio, mas cheio do mesmo jeito, de
saco cheio que para em pé, cansado de esperar faminto pela colher vazia. Cheio
de fome, estufado de querer, porém anêmico demais pra caminhar até a mesa sem
bambolear as pernas e cair caído, daqueles que não se levanta com ajuda da mão
amiga, pois esta pode rasgar o pulso frágil antes mesmo de estilhaçar a alma
caleidoscópica.
Peito vazio, batidas ocas de um tambor abandonado, que se
toca sozinho pra reconhecer na quebra do silêncio o que ontem foi o “fui”.
Camadas de pele, camadas de ossos, músculos, rigidez, sangue empurrado para
debaixo do tapete cutâneo, resistência, escudo que não defende, mas prende,
aprisiona, cuida de um tesouro há tempos esquecido. Enterrado no peito para ser
esquecido. Mapa nenhum decifra os caminhos até o coração. Enterrado no peito
para ser perdido.
Ventre vazio, frio, forrado por grama de jardim abandonado
que cresce anárquico e rebelde dentro de sua própria noção natural de
tranquilidade. Relva sedenta por chuva, por terra mais úmida do que a que lhe
aduba, grama do outro - sempre mais verde, mais viva, mais pronta pra amaciar o
impacto das pernas e a dança muda dos corpos. Cavidade que oferece caminho sem
carinho, túnel que não profetiza luz, mas esconjura a solidão. Une, funde, fode
e foge antes mesmo que o amanhecer quebre todo o encanto dos segredos
espalhados pela cama de ontem à noite.
Boca vazia. Perdida entre os dentes mudos e neuroticamente
brancos. Prisioneira da gengiva acinzentada pelo incenso da cidade, rico em
carbono e tóxicos. Sem argumentos, sem frases feitas, sem resposta na ponta da
língua e brilho celestial no céu da boca. Preta, profunda e cansada. Boca órfã
de beijo e sempre amarga. Fiel ao único que lhe penetra três vezes ao dia: o
cigarro. Boca fechada para não deixar que suas moscas escapem e lhe deixem mais
solitária do que já é. Não se cala a boca calada. Não se cala, a boca calada.
Olhos vazios como duas pedras refugiadas nos sapatos.
Incômodos à cabeça que quer ver, ao rosto que quer ser analisado e aos olhares
que fingem não se cruzar na escuridão. Circulados por boias negras lançadas ao
mar da cara todas as manhãs - a garantia de que não afundem nas cavidades do
crânio e deixem de compor o desgosto diante do espelho. Olhos que têm cor
porque não existe cor sem cor. Pintados à força por qualquer mão que, mesmo com
pincel, não pode ser atribuía a artistas. Mão invisível que só traça o que
quer, quando quer e como quer. A mesma mão que tapa os olhos e ordena: adivinhe
quem é!
Ouvidos vazios como quartos desocupados; como salas que não
suportam mais as vozes estridentes dos entes que salvos de serem abortados em
vida. Porões abandonados, confortáveis na poeira de pele morta e pano ruído. Som
que não se propaga e agrada, ainda que de silêncio não tenha nada. Pois a mente
trabalha, grita, reclama, berra e pragueja, invoca demônios e sussurra juras em
seus chifres. Cavidades que não buscam mais música, apenas barulhos. Apenas
bagulhos intocáveis, intangíveis, porém que tocam em volume alto – numa frequência
chamada “adeus”. Numa ode regida pelo serafim caído – mestre dos ruídos e ruínas
- e oferecida a Deus.
Mãos vazias e separadas. Sobre os joelhos magros, sobre o
que antes mantinha torso erguido e atuante. Sobre o livro sagrado maculado de
fé. Mãos cansadas, divorciadas, sem confiança com marca branca de aliança
lançada pela catapulta do rancor. Sem a falsa maciez trocada no toque. Par de
olhos cegos que deixaram de desenhar pernas e costas com passadas. Mãos que
bateram boca, carteira e bilhetes sem remetente; as mesmas mãos que taparam os
ouvidos pra não se ouvir o “não”, selaram os lábios para não se dizer o “sim” e
taparam os olhos para não se ver aquele alguém digno de “talvez”. Calejadas,
caladas, magras e fiéis. Amor verdadeiro, amor de mão (em mão).
Mente vazia oficina de qualquer um. De quem entrar sem bater
e trouxer um copo de bebida ou cigarros de um maço novo. Labirinto cefálico com
caminhos movediços – comedores de pés e pagadas. Por onde a essência passa e
continua desconhecida, destorcida. Por onde o amor caminha apenas para provocar.
Mente, útero da maldade, útero do humano, força potencial, morada de Deus e sua
legião, espada de Lúcifer, lâmina de Miguel, ferida de Lúcifer, lágrima de
Miguel. Seu quarto, seu mundo, seu lugar, museu das suas vontades, hospital dos
seus desejos, consolo, oficina sim - engenho para a criação do que o físico não
compreende. Fábrica da sensibilidade, bomba implosiva, mente que mente ao dizer
inconscientemente que sente menos do que o coração. Mente para se enturmar com o
resto do corpo e fingir que faz parte do todo tocável. Faz o que faz pra sair e,
mesmo sem pele, ficar à flor de si.
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