quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Anatomia do vazio



Estômago vazio. Sem peso, sem nada, nem vento pra chamar de alimento. Falta de prazer, carência de gosto, vigor é lenda, é raro, quase nunca se vê aqui por dentro. O inverso do cheio, mas cheio do mesmo jeito, de saco cheio que para em pé, cansado de esperar faminto pela colher vazia. Cheio de fome, estufado de querer, porém anêmico demais pra caminhar até a mesa sem bambolear as pernas e cair caído, daqueles que não se levanta com ajuda da mão amiga, pois esta pode rasgar o pulso frágil antes mesmo de estilhaçar a alma caleidoscópica. 

Peito vazio, batidas ocas de um tambor abandonado, que se toca sozinho pra reconhecer na quebra do silêncio o que ontem foi o “fui”. Camadas de pele, camadas de ossos, músculos, rigidez, sangue empurrado para debaixo do tapete cutâneo, resistência, escudo que não defende, mas prende, aprisiona, cuida de um tesouro há tempos esquecido. Enterrado no peito para ser esquecido. Mapa nenhum decifra os caminhos até o coração. Enterrado no peito para ser perdido. 

Ventre vazio, frio, forrado por grama de jardim abandonado que cresce anárquico e rebelde dentro de sua própria noção natural de tranquilidade. Relva sedenta por chuva, por terra mais úmida do que a que lhe aduba, grama do outro - sempre mais verde, mais viva, mais pronta pra amaciar o impacto das pernas e a dança muda dos corpos. Cavidade que oferece caminho sem carinho, túnel que não profetiza luz, mas esconjura a solidão. Une, funde, fode e foge antes mesmo que o amanhecer quebre todo o encanto dos segredos espalhados pela cama de ontem à noite. 

Boca vazia. Perdida entre os dentes mudos e neuroticamente brancos. Prisioneira da gengiva acinzentada pelo incenso da cidade, rico em carbono e tóxicos. Sem argumentos, sem frases feitas, sem resposta na ponta da língua e brilho celestial no céu da boca. Preta, profunda e cansada. Boca órfã de beijo e sempre amarga. Fiel ao único que lhe penetra três vezes ao dia: o cigarro. Boca fechada para não deixar que suas moscas escapem e lhe deixem mais solitária do que já é. Não se cala a boca calada. Não se cala, a boca calada. 

Olhos vazios como duas pedras refugiadas nos sapatos. Incômodos à cabeça que quer ver, ao rosto que quer ser analisado e aos olhares que fingem não se cruzar na escuridão. Circulados por boias negras lançadas ao mar da cara todas as manhãs - a garantia de que não afundem nas cavidades do crânio e deixem de compor o desgosto diante do espelho. Olhos que têm cor porque não existe cor sem cor. Pintados à força por qualquer mão que, mesmo com pincel, não pode ser atribuía a artistas. Mão invisível que só traça o que quer, quando quer e como quer. A mesma mão que tapa os olhos e ordena: adivinhe quem é!

Ouvidos vazios como quartos desocupados; como salas que não suportam mais as vozes estridentes dos entes que salvos de serem abortados em vida. Porões abandonados, confortáveis na poeira de pele morta e pano ruído. Som que não se propaga e agrada, ainda que de silêncio não tenha nada. Pois a mente trabalha, grita, reclama, berra e pragueja, invoca demônios e sussurra juras em seus chifres. Cavidades que não buscam mais música, apenas barulhos. Apenas bagulhos intocáveis, intangíveis, porém que tocam em volume alto – numa frequência chamada “adeus”. Numa ode regida pelo serafim caído – mestre dos ruídos e ruínas - e oferecida a Deus.

Mãos vazias e separadas. Sobre os joelhos magros, sobre o que antes mantinha torso erguido e atuante. Sobre o livro sagrado maculado de fé. Mãos cansadas, divorciadas, sem confiança com marca branca de aliança lançada pela catapulta do rancor. Sem a falsa maciez trocada no toque. Par de olhos cegos que deixaram de desenhar pernas e costas com passadas. Mãos que bateram boca, carteira e bilhetes sem remetente; as mesmas mãos que taparam os ouvidos pra não se ouvir o “não”, selaram os lábios para não se dizer o “sim” e taparam os olhos para não se ver aquele alguém digno de “talvez”. Calejadas, caladas, magras e fiéis. Amor verdadeiro, amor de mão (em mão). 

Mente vazia oficina de qualquer um. De quem entrar sem bater e trouxer um copo de bebida ou cigarros de um maço novo. Labirinto cefálico com caminhos movediços – comedores de pés e pagadas. Por onde a essência passa e continua desconhecida, destorcida. Por onde o amor caminha apenas para provocar. Mente, útero da maldade, útero do humano, força potencial, morada de Deus e sua legião, espada de Lúcifer, lâmina de Miguel, ferida de Lúcifer, lágrima de Miguel. Seu quarto, seu mundo, seu lugar, museu das suas vontades, hospital dos seus desejos, consolo, oficina sim - engenho para a criação do que o físico não compreende. Fábrica da sensibilidade, bomba implosiva, mente que mente ao dizer inconscientemente que sente menos do que o coração. Mente para se enturmar com o resto do corpo e fingir que faz parte do todo tocável. Faz o que faz pra sair e, mesmo sem pele, ficar à flor de si.

Corpo vazio. Copo nunca vazio. Morte em goladas, tragos, nicotina e comprimidos. Casca e não casulo. Não guarda nada, protege-se apenas da vitalidade. Não quer se preencher, não quer ceder, endurece e resiste, esfria-se pra matar o desejo do outro. Desapegado, pálido, falido, vivo, adega, biqueira, cinzeiro, farmácia, privada, chão, cama, túmulo. Pronto pra receber tudo o que não cabe em seu gosto, que não casa com seu jeito e que o obriga a sorrir. Depósito, corpo vazio, depósito de propósitos. Também transborda, mas não sobra. Sempre vazio, sempre habitável.

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