quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Terra e navalha



Decidimos viajar à noite. Abruptamente, reunimos o pouco de roupa que ainda nos cobria e partimos apressados, necessitados e ansiando por vias desconhecidas.

A estrada era branca, lisa, macia e pouco incomodava os nossos corpos com solavancos. Erguida por hastes firmes, sustentava nossa pressa sem cobrar destreza. Ambos corríamos para não perder nem um segundo de curva. 

Primeiro observei aquela paisagem terrosa, banhada por um marrom digno de outono. Cortei caminho, abandonei a sobriedade do caminho insosso, seguro e previsível e deslizei suavemente pelos rumos duvidosos das ruas gêmeas que disputavam minhas passadas. Subi despido de euforia. Cada solavanco desenhava em minha mente o formato imperfeito do chão com cor de pele. Sem perceber, deixei que minha mente confiasse demais na guia e transformasse trajeto em tragédia. 

O peso se inverteu. Aquilo que antes suportava minha carga agora pressionava cada osso do corpo contra os meus. O teto do céu virou chão. E o chão fui eu. Invertido, porém divertido. Ri sem parar, ainda que a compressão me cobrasse mais ar do que os pulmões geralmente costumam cobrar. A sensação súbita de ter o meu torso invadido por forças externas misturou ao sangue uma dose bem servida de adrenalina. Senti que algo rasgava por entre minhas pernas, mas estava preso e imóvel, entregue à morte, desavergonhado e livre do sentimento de culpa. Algo me consumia e causava prazer imenso. Cortava-me e me dividia em prazer e aflição. Era o desapego, a falta de segurança, falta de base, moral, roteiro, frases de ordem e abraços fraternos. Era a liberdade mostrando sua real face: a da anulação. 

Perdi a noção do tempo e direção. Parado ali, só podia olhar o restante da paisagem: montanhas crespas de vegetação escura e seca reforçando ainda mais aquela meia-estação transitória que não aceita a chuva, mas usa suas nuvens para esconder o sol. Virgem encobrindo Leão, por timidez, raiva, incompatibilidade ou extremo magnetismo ascendente. 

Minhas mãos rabiscavam a superfície bruta em busca de sangue, como quem escava o solo à procura de petróleo. Era a promessa de uma vida melhor, de uma vida capaz de superar o momento sublime de morte, um sinal qualquer de calor, de cor, de gosto de ferro, de firmeza, de foco, de “sou” e de “fui”. A contradição inverteu a ampulheta e escorria pela minha garganta grãos de razão que fingiam calcular o quanto de mim estava vazio o bastante para receber camadas de coerência. Areia movediça que tinha como única função sufocar a ausência. Era chegado o momento de fingir reação. Fingir necessidade de sobrevivência.  

Tentei me livrar dos galhos que seguravam meus braços, mas ainda tremia. A navalha que me cortava ao meio transmutava-se em serrote. Carne por carne, perdi parte de mim no instante em que aceitei a dor como redenção. Aceitei na falsa expectativa de que, com isso, doeria menos. Funcionou. A fumaça do combustível se fundiu com a do cigarro - o último que restava- e uma chuva morna de suor afastou do meu corpo o gelado mortífero do Ceifador. 

E você? E o assento ao meu lado? Cadê você?

Você foi a melhor viagem que fiz. E o seu corpo, melhor acidente que sofri.

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