domingo, 18 de agosto de 2013

Chuva-íris

Há diferentes cores de chuva. As comuns são acinzentadas. Existem aquelas com cor de mel que geralmente despencam nos dias de calor. Algumas quebram a secura do inverno e caem azuladas, tremendo de frio antes mesmo de tocarem o chão. Rosadas ou arroxeadas, chuvas raras de final de tarde - crepúsculo. Prateadas, as que refletem o luar na madrugada. Mas de todas as chuvas que vi apenas uma me molhou: a esverdeada.

(Em algum lugar do que fui...)

- Filho, não fique muito tempo no quintal! A chuva está vindo.
- Tudo bem, eu entro quando começar a tempestade.

Ele havia arrumado todos os seus bonecos de acordo com a relevância de cada um. Os que voavam tinham lugar privilegiado no topo do muro que separava o quintal da horta. A parede rústica, que para os pequenos brinquedos era simplesmente insuperável, tinha superfície igual pele de elefante. Com as pontas dos dedos ele sentiu cada dobra imperfeita que se disfarçava de abrigo para ervas-daninhas e calculou o trajeto do boneco sem asas - aquele que salvaria o companheiro apenas com os braços de aço. Das nuvens carregadas era possível vê-lo esparramado no chão, tão confortável que parecia mais um dos brinquedos que ali fingiam ter algum destino. Alguma vontade.

A densidade do ar mudava a cada quebrante das correntes de vento. O que antes amaciava os pulmões agora encrostava-os com poeira de rua, de cansaço dos outros, de sola gasta das outras. Mas ele não se importava. Sua missão, assim como a de seus guerreiros de plástico, precisava ser finalizada. Que mundo seria o seu sem um capítulo a mais pra escrever no livro de conquistas? A voz da mãe trovejou novamente, porém nenhuma reação. O céu rosnou impaciente - já não podia mais segurar a água entre as coxas nubladas - e estalou-se num relâmpago ligeiro. Despertou um arrepio na espinha dele e o fez olhar diretamente para o oposto de si.

Ao encarar o alto, percebeu seu tom esverdeado, como se a velha muralha tivesse crescido até o pico do mundo e suas ervas-daninhas agora estivessem digerindo, lentamente, a vitalidade das nuvens fartas de si mesmas. Agora ele era o boneco. Pequeno, a mercê das trovoadas, na base de sua própria existência. No chão daquele muro gigante.

Filtrada pela tempestade celeste, a luz do sol camuflou-se de musgo, tingida pelos vãos da terra com um tom esverdeado que não era sublime como o esmeralda, mas imponente e tempestuoso como Júpiter. Ele se deu conta daquele cenário incrível que lhe envolvia e um chamado ancestral lhe fez perder os sentidos. Por alguns segundos viajou sem destino nas estradas da imaginação.

(Em algum lugar que fui...)

Peço licença nesse instante para todos os planos criados antes mesmo da minha consciência. Que desta terra fizeram história e marcaram sob a pele dos homens o símbolo do caos e o signo da ordem. Faço deste meu corpo templo do desconhecido.

Aqui, envolto neste chuva de jade, vejo como sou vulnerável. Corpo e mente não encontram harmonia, são incapazes de interpretar as gotas que agora lubrificam meus pensamentos e lábios. Enquanto a razão diz para correr e procurar um local seco para continuar mais seco do que já está, o outro - que pode ser interpretado como "coração" - encena surdez, pois acredita que tal sensação lhe trará prazer inenarrável.

Nesta chuva eu me perco. Fico divido em tantas partes que cada uma delas se afoga no mar de gotas despencadas das alturas. Apenas me deixo molhar, com ou sem razão, sem ou com coração, eu me deixo ser a anulação. Encharco-me com um silêncio humilde de quem não sabe nada da vida, esteja ela em terra, no ar ou no molhar.

(Em algum lugar antes de fugir)

Eu devia ter levado o guarda-chuva. Mas a memória penas finge que pode ser domada e, quiçá, melhorada. Esqueci.

Mais dois cigarros e o maço estará condenado à lata do lixo. Preciso racionar o vício. Bom, apesar que isso soa bem patético, afinal, se fosse controlável não seria vício, mas sim hábito. E eu acho esse termo "hábito de fumar" tão ridículo. Suaviza algo que nem na própria fumaça se faz delicado. Descaracteriza, sabe? Parece até que diz: "Você trocaria o hábito de beijar seu irmão no rosto pelo hábito de fumar?" com total facilidade. Não. Um é apego no que vive. O outro, falso desapego no que se vive. Um é hábito, o outro é vício.

A chuva não traz nada de novo. Cai, molha tudo, borra os planos bem traçados horas antes e faz com que cada frase ensaiada escorra pela valeta. Eu queria encontrá-lo, mas desse jeito será impossível. Perco a paciência quando sinto meus pés molhados e sei que qualquer coisa que ele me diga soará como provocação. Vamos nos poupar então. Mas por enquanto eu fico aqui mesmo, esperando ela passar e ele chegar.

Já que tempo é o que me sobra - e tempo é o que não melhora -, vou fingir que este velho muro enrugado pelo tempo tem lá suas histórias pra contar e imaginarei quem foram os muitos que, assim como eu, encostaram em sua pele labiríntica.

- Moço, você está bem, quer ajuda?
- Não, obrigado. Só estou esperando um amigo...
- Mas moço, você está na chuva, sem sapatos, o que aconteceu?
- Nada, oras! Já disse, estou esperando um amigo... Ele vem, eu tenho certeza!
- Olha, ainda é cedo, está escuro por conta da chuva, mas é melhor você se levantar tem muita...
- Não! Eu quero ficar aqui, este muro é meu! Eu preciso subir para resgatar meu amigo lá do topo.
- Rapaz, você bebeu? Tão jovem... Bem, olha, esse muro aí é alto demais, só tendo braços de aço pra escalar isso...
- Você já reparou que a chuva tem várias cores?
- Não, água pra mim não tem cor. Moço, eu preciso ir, tente não ficar muito tempo neste local.
- Tudo bem, eu entro quando terminar a tempestade.





 

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