Joshua não se conteve e desmaiou. A imagem da mãe destruindo
todos os quadros em que fotos suas se aconchegavam partiu-lhe os ligamentos dos
joelhos e o corpo desabou. Era tarde demais para voltar, porém, cedo demais
para desistir da nova vida. Algo deve morrer. Só assim se faz o nascimento.
Minha mãe era uma pessoa doce e, ao mesmo tempo, robusta
como uma montanha. Para atingir o pico de sua admiração era preciso muito mais
do que carinho. Ela exigia dedicação total e uma absurda demonstração contínua
de comprometimento com suas ideias e visões de mundo. O pacto ia além do sangue
e rompia o cordão umbilical, estendendo-se até a mesa do bar, em forma de
mensagens nervosas e preocupadas. Ela estava em todos os lugares. Deusa,
onipresente na gente.
Eu contei para Demien que não seria tão simples. Éramos
somente ela, o cão cego de um olho e eu - cego do coração. Meu mundo havia se
partido em dois: uma parte pertencia inquestionavelmente à minha mãe e a
outra... Bem, essa estava perdidamente encantada com as mãos de Demien. Seu
toque ninava a quimera dentro de mim e, como ele costumava dizer, “meu abraço
tinha o poder de trazer o coração à flor da pele”. Éramos assim, para muitos um
erro, para nós o único acerto. Entretanto – e sem saber – ela estava lá, entre
nós. Entre tantos, justo entre nós.
Netos. Todas as vezes em que brigávamos ela me pedia netos. Dizia
que só assim a chance de educar bem uma criança voltaria a lhe fazer visita. Eu
saí errado. Nunca fui forte, nunca gostei de futebol, mas pior do que isso – eu
nunca confidenciei nenhum romance. Uma vez, enquanto escrevia uma redação para
escola com o título “Meu terceiro amor”, ela fez questão de sentar ao meu lado
e ler o que havia escrito até então:
“Sempre ouço pessoas falando sobre a importância do primeiro
amor. De o quanto ele é necessário para que nossa vida sentimental dê o
primeiro passo. Há, nesse caso, uma forte necessidade de ensinar ao homem o
que, supostamente, já está intrínseco. O primeiro amor arde, queima e faz
querer mais. Ensina à carne que o sentimento queima feito chama e pra que
sobreviva aos fortes invernos da saudade é preciso que consuma constantemente
algo – ou alguém.
Mas o tempo passa e, como escrito anteriormente, as longas
nevascas que desenham estradas lisas e brancas pertencentes à solidão jamais
admitem que tudo se resuma a faíscas apaixonadas. É preciso caminhar pelo chão
escorregadio, ter equilíbrio, coragem e, principalmente, disposição. Se, ao
dormirmos, esperamos da noite a escuridão e o silêncio, ao acordarmos, o par de
olhos busca luz, sol, calor e algo que tranquilize nosso coração. Algo que
reluza coerência. Mas a falta de alguém (do primeiro amor) fecha todas as
janelas e deixa de luto a morada do bem-querer. Eis que surge, numa quina
qualquer, o segundo amor.
A mitologia grega usa como exemplo de renovação a imagem da
Fênix. Aquele pássaro de fogo que se comete suicídio via incineração de si
mesmo e retorna das próprias cinzas como se nada lhe tivesse acontecido. Pois
aí está a pena de esperança que repentinamente faz cócegas no peito e arranca
da carranca um sorriso sem sentido. Mas bem sentido pelo coração. Sutil, por
assim dizer.
Dos restos daquele primeiro e marcante rosto sobram apenas
alertas. Borras acinzentadas no fundo da memória que não podem ser simplesmente
apagadas nem mesmo varridas. Elas estão ali, mas foi justamente delas que o tal
segundo amor despertou. Parido pelo acaso, ele trouxe novamente algum brilho.
Sabe-se agora que tudo tem um fim, porém, para que se apegar nessa certeza se
no final das contas toda certeza é apenas uma mentira imune a
contra-argumentos?
Subitamente, você seca. Deixa de querer, irrita-se com o
riso, com o carinho facilmente adquirido, com o corpo cedido sem muitos
protestos, com o beijo que não traz mais gosto de cereja e café – mas um
azedume intestinal batizado no limão. Tudo te repele. Diante das súplicas
apenas a voz seca e rouca dentro da sua mente parece levar em consideração o
que é dito. O “não” nunca lhe pareceu tão fácil, assim como o “nunca mais”
nunca esteve tão próximo de suas mãos. Na verdade, ele escorregou pelos dedos,
rodou trinta e três vezes em torno de si mesmo e repousou na mesa, escondendo o
outro nome até então gravado “para sempre”. Deixou de brilhar feito prata,
feito ouro, e aceitou – em silêncio – a sentença de morte que lhe reduzia a uma
simples e banal aliança sem fiança.
E o que te resta? O terceiro amor. Aquele por si mesmo.
Aquele que se faz porque não há mais nada a ser feito. Esse amor não renegado
os outros dois, apenas se cansa de tentar unir vários mundos numa palavra tão
pequena, fraca e rasa. O tal terceiro amor te resgata das cinzas, apaga o fogo
que só queima e não mais esquenta e então ensina que agora é a hora de ser o
primeiro ou o segundo de alguém.
Só assim é que o amor deixa de ser palavra solta. Só assim,
na terceira vez, é que você passa a enxergar os laços invisíveis.”
Sem dizer
absolutamente nada, pegou a canta vermelha e circulou todas as palavras “amor”
alegando que havia muita repetição e isso enfraquecia o texto. Desisti do tema
e fiz algo sobre “Como as pessoas deveriam se tratar no transporte público”. Mas
não me desfiz do texto inicial. Ele virou uma carta para Demien.
O problema nasceu das consequências. Depois de ter lido a
redação, minha mãe gastou horas e mais horas vasculhando meus pertences. Ouvia
as ligações por trás das paredes como se buscasse algum ruído de ninho de rato
ou cupins. Ela sabia que estava me perdendo para alguém. Só não sabia que
jamais me perderia, pois não há criatura viva que seja capaz de lhe roubar o
lugar dentro de mim. Contudo, ciúme é ciúme. Vinagre poderoso que finge
temperar as relações, quando na verdade rouba por completo o sabor delas.
Demien era um garoto suave, quieto, perdido em seus próprios
devaneios, mas adoravelmente dedicado a me ouvir. Quando nos conhecemos ele fez
um esforço hercúleo para não rir do meu pessimismo exacerbado. E eu também me
esforcei para que minha arrogância não revelasse a ele o quanto seu ar de “alheio
à realidade” assemelhava-se à demência.
Um dia, bem naquele em que você sente que tem todos os
argumentos para exorcizar a vida em praça pública e ainda ser reconhecido como
salvador de si mesmo pelos demais, ele me tocou com as pontas dos dedos. Traçou
um contorno em minhas mãos e lentamente caminhou pelo braço. Tateou cada pelo
que se levantava feito grama recém-crescida e então fez apoio para o meu
queixo. Sem reação, beijou meus lábios. Sem reação eu fiquei. Cheios de emoção,
nós ficamos, mas em silêncio. Lábios selados.
Era questão de tempo até que ela descobrisse. Percebeu a
mudança clara no meu humor. As noites acordado e sempre com sede. O calor que
não vinha do sol nem das aulas de educação física; a falta de fome acompanhada
de uma gula descontrolada nos finais de semana; as músicas sempre extremas – ou
gravemente pesadas ou açucaradamente agudas – e o sorriso cimentado no rosto. Sua
fúria manifestou-se calmamente. Num dia deixou de cozinhar o almoço. No outro,
queimou minhas roupas com o ferro de passar. Até que chegou ao extremo e jogou
álcool nas minhas cartas e as queimou. Eu achei que ela estivesse louca, mas
não era álcool, era apenas vinagre.
“Vá pedir para as suas vadias fazerem o serviço então. Não
sou sua empregada”. De fato, não era. Mas a questão estava além de estruturas
sociais, patriarcado ou feminismo. Ela sabia que eu podia muito bem fazer todas
as tarefas de casa, mas alegava que antes de contribuir com os esforços físicos
eu precisava contribuir com dinheiro e que, para isso, era fundamental ter boas
notas na escola. De qualquer forma me senti mal, um explorador machista e
limitado. E eu não era – nem sou assim. Tentei mudar minha postura, mas ela
enrijeceu a dela. A questão de gênero que nos envolveria em breve estava bem
longe das bases mais tradicionais.
Quem é ela? Ela quem? Ela, a dona da sua atenção, a razão
desse seu bom humor canalha! Não tem “ela”, mãe. Claro que tem, não me
subestime moleque! Não tem ela... Fale o nome dela! Não tem ela... mas tem...
Tem o quê?! Demien. “Demien”, o que é isso? Ele. Ele?! Ele. Puta que o pariu,
era o que me faltava, você está maluco?! Não tem ela...
Joshua não se conteve e desmaiou. A imagem da mãe destruindo
todos os quadros em que fotos suas se aconchegavam partiu-lhe os ligamentos dos
joelhos e o corpo desabou. Era tarde demais para voltar, porém, cedo demais
para desistir da nova vida. Algo deve morrer. Só assim se faz o nascimento.
Algo como o primeiro, segundo e terceiro amor. Eles devem
morrer para que nasça o quarto amor, vulgo compaixão.
Sua mãe foi cremada e virou cinza de si mesma. Não amou e, por conta disso, tornou-se incapaz de renascer.
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