segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Amor em tempos de medo



Joshua não se conteve e desmaiou. A imagem da mãe destruindo todos os quadros em que fotos suas se aconchegavam partiu-lhe os ligamentos dos joelhos e o corpo desabou. Era tarde demais para voltar, porém, cedo demais para desistir da nova vida. Algo deve morrer. Só assim se faz o nascimento. 

Minha mãe era uma pessoa doce e, ao mesmo tempo, robusta como uma montanha. Para atingir o pico de sua admiração era preciso muito mais do que carinho. Ela exigia dedicação total e uma absurda demonstração contínua de comprometimento com suas ideias e visões de mundo. O pacto ia além do sangue e rompia o cordão umbilical, estendendo-se até a mesa do bar, em forma de mensagens nervosas e preocupadas. Ela estava em todos os lugares. Deusa, onipresente na gente. 

Eu contei para Demien que não seria tão simples. Éramos somente ela, o cão cego de um olho e eu - cego do coração. Meu mundo havia se partido em dois: uma parte pertencia inquestionavelmente à minha mãe e a outra... Bem, essa estava perdidamente encantada com as mãos de Demien. Seu toque ninava a quimera dentro de mim e, como ele costumava dizer, “meu abraço tinha o poder de trazer o coração à flor da pele”. Éramos assim, para muitos um erro, para nós o único acerto. Entretanto – e sem saber – ela estava lá, entre nós. Entre tantos, justo entre nós.

Netos. Todas as vezes em que brigávamos ela me pedia netos. Dizia que só assim a chance de educar bem uma criança voltaria a lhe fazer visita. Eu saí errado. Nunca fui forte, nunca gostei de futebol, mas pior do que isso – eu nunca confidenciei nenhum romance. Uma vez, enquanto escrevia uma redação para escola com o título “Meu terceiro amor”, ela fez questão de sentar ao meu lado e ler o que havia escrito até então:

“Sempre ouço pessoas falando sobre a importância do primeiro amor. De o quanto ele é necessário para que nossa vida sentimental dê o primeiro passo. Há, nesse caso, uma forte necessidade de ensinar ao homem o que, supostamente, já está intrínseco. O primeiro amor arde, queima e faz querer mais. Ensina à carne que o sentimento queima feito chama e pra que sobreviva aos fortes invernos da saudade é preciso que consuma constantemente algo – ou alguém. 

Mas o tempo passa e, como escrito anteriormente, as longas nevascas que desenham estradas lisas e brancas pertencentes à solidão jamais admitem que tudo se resuma a faíscas apaixonadas. É preciso caminhar pelo chão escorregadio, ter equilíbrio, coragem e, principalmente, disposição. Se, ao dormirmos, esperamos da noite a escuridão e o silêncio, ao acordarmos, o par de olhos busca luz, sol, calor e algo que tranquilize nosso coração. Algo que reluza coerência. Mas a falta de alguém (do primeiro amor) fecha todas as janelas e deixa de luto a morada do bem-querer. Eis que surge, numa quina qualquer, o segundo amor. 

A mitologia grega usa como exemplo de renovação a imagem da Fênix. Aquele pássaro de fogo que se comete suicídio via incineração de si mesmo e retorna das próprias cinzas como se nada lhe tivesse acontecido. Pois aí está a pena de esperança que repentinamente faz cócegas no peito e arranca da carranca um sorriso sem sentido. Mas bem sentido pelo coração. Sutil, por assim dizer. 

Dos restos daquele primeiro e marcante rosto sobram apenas alertas. Borras acinzentadas no fundo da memória que não podem ser simplesmente apagadas nem mesmo varridas. Elas estão ali, mas foi justamente delas que o tal segundo amor despertou. Parido pelo acaso, ele trouxe novamente algum brilho. Sabe-se agora que tudo tem um fim, porém, para que se apegar nessa certeza se no final das contas toda certeza é apenas uma mentira imune a contra-argumentos? 

Subitamente, você seca. Deixa de querer, irrita-se com o riso, com o carinho facilmente adquirido, com o corpo cedido sem muitos protestos, com o beijo que não traz mais gosto de cereja e café – mas um azedume intestinal batizado no limão. Tudo te repele. Diante das súplicas apenas a voz seca e rouca dentro da sua mente parece levar em consideração o que é dito. O “não” nunca lhe pareceu tão fácil, assim como o “nunca mais” nunca esteve tão próximo de suas mãos. Na verdade, ele escorregou pelos dedos, rodou trinta e três vezes em torno de si mesmo e repousou na mesa, escondendo o outro nome até então gravado “para sempre”. Deixou de brilhar feito prata, feito ouro, e aceitou – em silêncio – a sentença de morte que lhe reduzia a uma simples e banal aliança sem fiança.

E o que te resta? O terceiro amor. Aquele por si mesmo. Aquele que se faz porque não há mais nada a ser feito. Esse amor não renegado os outros dois, apenas se cansa de tentar unir vários mundos numa palavra tão pequena, fraca e rasa. O tal terceiro amor te resgata das cinzas, apaga o fogo que só queima e não mais esquenta e então ensina que agora é a hora de ser o primeiro ou o segundo de alguém. 

Só assim é que o amor deixa de ser palavra solta. Só assim, na terceira vez, é que você passa a enxergar os laços invisíveis.”

 Sem dizer absolutamente nada, pegou a canta vermelha e circulou todas as palavras “amor” alegando que havia muita repetição e isso enfraquecia o texto. Desisti do tema e fiz algo sobre “Como as pessoas deveriam se tratar no transporte público”. Mas não me desfiz do texto inicial. Ele virou uma carta para Demien. 

O problema nasceu das consequências. Depois de ter lido a redação, minha mãe gastou horas e mais horas vasculhando meus pertences. Ouvia as ligações por trás das paredes como se buscasse algum ruído de ninho de rato ou cupins. Ela sabia que estava me perdendo para alguém. Só não sabia que jamais me perderia, pois não há criatura viva que seja capaz de lhe roubar o lugar dentro de mim. Contudo, ciúme é ciúme. Vinagre poderoso que finge temperar as relações, quando na verdade rouba por completo o sabor delas. 

Demien era um garoto suave, quieto, perdido em seus próprios devaneios, mas adoravelmente dedicado a me ouvir. Quando nos conhecemos ele fez um esforço hercúleo para não rir do meu pessimismo exacerbado. E eu também me esforcei para que minha arrogância não revelasse a ele o quanto seu ar de “alheio à realidade” assemelhava-se à demência. 

Um dia, bem naquele em que você sente que tem todos os argumentos para exorcizar a vida em praça pública e ainda ser reconhecido como salvador de si mesmo pelos demais, ele me tocou com as pontas dos dedos. Traçou um contorno em minhas mãos e lentamente caminhou pelo braço. Tateou cada pelo que se levantava feito grama recém-crescida e então fez apoio para o meu queixo. Sem reação, beijou meus lábios. Sem reação eu fiquei. Cheios de emoção, nós ficamos, mas em silêncio. Lábios selados. 

Era questão de tempo até que ela descobrisse. Percebeu a mudança clara no meu humor. As noites acordado e sempre com sede. O calor que não vinha do sol nem das aulas de educação física; a falta de fome acompanhada de uma gula descontrolada nos finais de semana; as músicas sempre extremas – ou gravemente pesadas ou açucaradamente agudas – e o sorriso cimentado no rosto. Sua fúria manifestou-se calmamente. Num dia deixou de cozinhar o almoço. No outro, queimou minhas roupas com o ferro de passar. Até que chegou ao extremo e jogou álcool nas minhas cartas e as queimou. Eu achei que ela estivesse louca, mas não era álcool, era apenas vinagre.

“Vá pedir para as suas vadias fazerem o serviço então. Não sou sua empregada”. De fato, não era. Mas a questão estava além de estruturas sociais, patriarcado ou feminismo. Ela sabia que eu podia muito bem fazer todas as tarefas de casa, mas alegava que antes de contribuir com os esforços físicos eu precisava contribuir com dinheiro e que, para isso, era fundamental ter boas notas na escola. De qualquer forma me senti mal, um explorador machista e limitado. E eu não era – nem sou assim. Tentei mudar minha postura, mas ela enrijeceu a dela. A questão de gênero que nos envolveria em breve estava bem longe das bases mais tradicionais. 

Quem é ela? Ela quem? Ela, a dona da sua atenção, a razão desse seu bom humor canalha! Não tem “ela”, mãe. Claro que tem, não me subestime moleque! Não tem ela... Fale o nome dela! Não tem ela... mas tem... Tem o quê?! Demien. “Demien”, o que é isso? Ele. Ele?! Ele. Puta que o pariu, era o que me faltava, você está maluco?! Não tem ela...

Joshua não se conteve e desmaiou. A imagem da mãe destruindo todos os quadros em que fotos suas se aconchegavam partiu-lhe os ligamentos dos joelhos e o corpo desabou. Era tarde demais para voltar, porém, cedo demais para desistir da nova vida. Algo deve morrer. Só assim se faz o nascimento. 

Algo como o primeiro, segundo e terceiro amor. Eles devem morrer para que nasça o quarto amor, vulgo compaixão. 

Sua mãe foi cremada e virou cinza de si mesma. Não amou e, por conta disso, tornou-se incapaz de renascer.

Nenhum comentário: