Eu o receberia neste verão para passar as férias na minha
casa. Fiz vários planos e me programei no intuito de oferecer o máximo de
atividades, a fim de entretê-lo. Era um amigo muito querido e eu não gostaria
que ficasse entediado logo nos primeiros dias.
Ao chegar, lhe mostrei o quarto em que ficaria. Era ao lado
do meu. Antigo quarto que minha irmã ocupava antes de se casar. Meus pais
estavam no exterior. Fiquei com a casa e o mais importante: a individualidade.
Ainda assim, eles pediram para que Joshua se hospedasse até que suas aulas
voltassem.
Conheci Joshua no colégio. Éramos da mesma sala, mas de
mundos diferentes. Enquanto eu passava a maior parte do tempo distraído com
minha própria mente, ele explorava cada canto da sala. Eu optava pelo silêncio.
Sentia conforto em ouvir e em refletir sobre as palavras lançadas ao ar. Ele,
por outro lado, falava demais. E fazia com que as pessoas falassem mais ainda.
Sorria, sempre. Eu adorava escutá-lo. Um dia, ele me fez falar.
- Então você não tem nada a dizer nos 365 dias do ano?
- Não entendi.
- Fica aí, sempre quieto. No mesmo lugar. Parece até que
você se confunde com a paisagem da sala. Não me leve a mal.
- Talvez eu me confunda mesmo.
- Olha, eu to indo na biblioteca pegar uns livros, quer ir?
- Não.
-Bom, já que não quer, deveria. É sempre bom desafiar as
vontades. Até as contrárias.
- Preciso devolver um livro. Então, acho que vou sim. Não
pretendo desafiar nada.
- Difícil você, hein? Mas tudo bem. Sou eu quem desafia,
então.
...
Entrar na biblioteca era como alcançar o plano astral.
Bilhões de supernovas cheias de informação anunciando a morte da ignorância e o
nascimento da sabedoria. Os dedos percorriam as prateleiras, farejando
histórias e mistérios. Joshua só recebia sinalizações quanto ao barulho que
estava fazendo. Ele expelia o silêncio até com a respiração.
A partir daí, começamos a conversar com frequência. Eu
gostava dos seus relatos sobre o conteúdo dos livros. E ele admirava minhas
frases curtas e objetivas. Eu me impressionava com sua empolgação. Era vivo
demais. Espantava minha essência avessa ao vigor.
O tempo corria e nossa amizade só crescia. Ele me confiou
suas decepções amorosas e eu tentei acalmá-lo. Não foi fácil, pois não sabia o
que dizer a respeito do amor. Evitei relacionamentos. Nunca me senti envolvido de verdade e o que eu
queria ainda se apresentava como algo errado, impossível e anormal. Por isso eu
não pensava sobre meus sentimentos.
Joshua encontrou uma garota muito legal. Eles se pareciam
bastante. Era “muito” de tudo. Muita conversa, muita animação, muito amor,
muita alegria e, em alguns casos, muita raiva. Ele estava mais vivo do que
nunca. E eu também me enchia de felicidade. Agora eram dois ouvidos para duas
pessoas. Mas as minhas frases continuaram curtas e pontuais.
Dois anos se passaram e o casal já estava mais “sóbrio”.
Madalenne tinha um gênio forte e me acordava às 3h da manhã para reclamar de
Joshua. Também me ligava no mesmo horário para dizer o quanto amava aquele
rapaz. E eu só podia sorrir de leve, em ambas as situações. Quando ele me
ligava, dizia que sua namorada sugava muito de sua energia, mas não abria mão
da sensação de “importância” que ela agregava ao seu ser. Quando os dois
decidiam me questionar a respeito de “namoros”, eu sempre encontrava uma forma
de mudar de assunto. Neste meio tempo, permaneci sozinho e aproveite todo o
tempo para acalmar meus pensamentos. Já não era mais errado, impossível e
anormal.
Foi então que o amor secou depois de tanta sede. Joshua e
Madalenne desistiram um do outro. Queriam experimentar outras essências. Não
houve briga. Decidiram que já era tempo de preservar a amizade e o respeito.
Ele disse que passaria o verão comigo. Ela disse que passaria o final de ano.
Eu concordei. Duas vezes.
Em apenas quinze minutos, Joshua mudou o ritmo da minha casa.
Colocou música para tocar, abriu as janelas do meu quarto, as portas da casa e
o sorriso. Deixou comida no fogo, bebida no meu copo e me chamou para tomar
sol. Fui mesmo odiando a ideia de absorver todo aquele calor.
Lembramos-nos dos tempos de escola e pela primeira vez eu
não me limitei às frases tímidas. Quis falar tudo o que havia observado e
absorvido. Trocamos os papéis. Ele se impressionou com a quantidade de detalhes
que eu havia guardado na memória. Eu o pari com palavras. Joshua viu a si mesmo
como se estivesse diante de um espelho. Eu o despi e fiz com que reconhecesse
cada parte do seu corpo. Do que era. Desta vez, ele não soube o que me dizer.
Mas disse ao rir com o canto da boca.
Os dias passavam e ele mantinha um silêncio intrigante. Eu
perguntei se havia feito algo de errado ou se a definição que fiz tinha o
decepcionado. Não era isso. Era mais do que isso. Ele estava com medo.
Eu não entendia e automaticamente retornei para meu mundo.
Fechei as janelas, as portas e o sorriso. Sequei, pois sabia que algo estava
muito errado. Joshua pediu para entrar no meu quarto. A noite estava fria e o
céu parecia uma tela pintada naquele instante. Cores frescas e gélidas.
Sentou-se próximo aos meus pés e ficou parado, com a cabeça baixa. Eu mirei meus
olhos na direção dos seus. Fiquei quieto.
- Você me vê, mesmo com as luzes apagadas.
- Sim.
- Eu só consigo te ver porque a lua está derramando um pouco
de luz em você.
- Logo mais uma nuvem resolve isso.
- Não há nuvens. Não mais...
- Está sem sono?
- Sim. Com frio também. Estou nu, sabe?
- Nu? Aconteceu algo com suas roupas? Está com febre? O que
foi?
- Não. Não é nada disso. Você me deixou assim quando me
descreveu. Quando falou sobre todos aqueles detalhes.
- Já pedi desculpa. Não queria te deixar constrangido. É por
isso que eu não costumo falar muito. Perco a noção e vou falando sem pensar. Se
penso antes, acabo não dizendo nada. Mas se digo, dá nisso...
- Cala a boca! Desculpa? Não, não te desculpo, porque não há
o que desculpar. Foi lindo o que você disse. E importante. Não vou negar, senti
certo desconforto. Tive que confrontar alguns pontos que não gostaria de assumir
como meus. Mas foi ótimo... Fiz como você. Pensei e por isso não disse muita
coisa nesses últimos dias.
- Tudo bem. Eu entendo. Pensei muito em você durante todos esses
anos. E por este motivo não te disse muitas coisas.
- Agora eu entendo. Entendo tudo. Como você suportou? Como
aguentou tudo isso em silêncio? E a Madalenne? Como...?
- “É sempre bom desafiar as vontades”.
- Olha só... Você é diferente mesmo [risos]
- Sou. Hoje eu entendo isso. Entendo... eu acho.
- Se te magoei, peço desculpas.
- Agora é você que deve se calar. Todos esses anos eu fui
muito feliz com sua amizade. E o que não tive fez parte do motivo para
continuar vivo. Só assim eu poderia te olhar de verdade. Viver para te ver
viver.
- Também sou muito feliz com sua amizade. Não posso te dar
mais do que isso. Confesso que não sinto tanto e tão profundamente como você. Ainda
não sinto. Preciso conversar mais com meus sentimentos. Necessito ser como você
foi durante esses anos para aprender a lapidar as emoções aqui dentro. Mas
saiba que eu nunca vou te esquecer e não quero você longe de mim. Nunca quis.
Preciso de você aqui.
- E você ainda me diz que não pode me dar mais do que isso?
[Risos] Acredite, não há mais nuvens. Não mais.
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