sexta-feira, 6 de julho de 2012

Renegue 30 vezes



Eu o observada de longe. Os dedos finos pareciam gravetos. Repetiam o mesmo movimento enquanto o rosto, talhado em carvalho, repetia a falta de expressão. Permanência. O ônibus não chegava e meu tempo corria para longe da vida. Conseguia sentir a doença avançando. O coração descompassava e só me restava ficar sem ar algum. 

O velho se moveu e olhou para mim. As mãos pararam e a boca deu início a um leve mastigar.

Minha mãe não parava de encher o carro de compras. Eu odiava tanto ter que acompanhá-la no mercado. Enquanto passava pelo açougue, vi uma senhora de mãos mortas acariciando um pedaço de carne. Ela estava concentrada naquilo. Além do nojo, senti desprezo. Estava colocando os dedos imundos em um alimento. 

Quando me aproximei, ela parou o movimento das mãos. Olhou para mim e começou a mastigar alguma coisa. Escutava seus poucos dentes estalando.

Após o casamento só nos restava a felicidade. Ele comprou passagens caríssimas para uma ilha paradisíaca. Eu embarquei com a certeza de que o “eterno” tinha cheiro de lavanda. Duas semanas de diversão e paz. Quanta alegria. 

Desci para tomar sol na beira da piscina. Sentada, coloquei meus óculos escuros e percebi uma criança parada na água. Estava de costas para mim. Suas mãos foram enrugadas pela água. Pareciam com as de um cadáver. 

Resolvi ir até ela para perguntar se os seus pais estavam por perto. Quando ela sentiu minha aproximação, parou de agitar a água. Os olhos estavam vidrados nos meus. De repente, começou a morder algo com o canto da boca.
O trânsito sempre foi meu pior inimigo, logo depois do relógio. A reunião definiria se o plano institucional que eu havia preparado entraria em vigor. Basicamente, o resumo de seis meses de trabalho duro, relacionamento em frangalhos e saúde de um rato. 

Estacionei numa esquina qualquer e apertei o passo. Fora do carro, o engarrafamento de pessoas consegue ser mais odioso ainda. Tentei evitar a parte baixa do viaduto, mas foi em vão. Enquanto caminhava pelo lixo, ouvia o lamento dos desesperados. Enrijeci a alma e não olhei para os lados. Até que, durante um instante de distração, algo me despertou. 

Uma fila imensa de pessoas ajoelhadas, pedindo esmola. Vários pares de mãos estendidos na minha direção. A fome da boca se fazia na ansiedade dos dedos. Continuei meu caminho até que vi uma única pessoa sem as palmas abertas. Esse único indigente estava olhando para os próprios pés, sem expressar qualquer reação. 

Fiquei intrigado e parei diante dele. Mexi no meu bolso para que as moedas fizessem barulho. Ele moveu a cabeça. Lentamente, seu queixo foi se aproximando do nível em que o meu estava. Era coberto por uma barba negra, porém não tão densa. Quando vi aquele par de esferas escuras tive certeza de que ele não era normal. 

Sua pele acinzentada sucumbia ao contraste com as sombras que se acomodavam nas frestas desenhadas no rosto. As mãos surgiram de mangas imundas. Farrapos. Unhas petrificadas e veias roxas que mais pareciam sanguessugas anêmicas. Mostrei a moeda que havia tirado do bolso e mesmo assim ele não se moveu. 

Após alguns minutos me encarando, começou a mordiscar algo. Percebia sua mandíbula fazendo um esforço titânico para triturar aquilo que poderia ser até uma pedra, visto que o ruído era similar ao de uma rocha sendo partida. 

Posicionou as mãos diante da boca e começou a cuspir moedas de prata. Em choque, esperei até que a cena se completasse. Ao todo foram 30 moedas. Lisas, sem nenhum brasão ou numeração.
O primeiro caso:

Após o velho ter me oferecido aquela quantia, não demorei muito e aceitei. Em troca ele me pediu para renegar o que o médico me havia prescrito. Explicou que a vida só vale enquanto estamos envoltos pelo prazer de fazer o que realmente nos dá vontade.

Eu aceitei. Liguei para o médico e disse que não ia seguir com o tratamento. Arcaria com as consequências. Tive uma fraqueza e então cai de joelhos. As moedas se espalharam pelo chão. Quando a consciência voltou, eu estava amarrado num velho tronco de salgueiro.  

O segundo caso: 

Aquela velha imunda regurgitou cada moeda, como se fosse uma bruxa dos infernos. Não vou negar, elas eram lindas. Reluzentes. Ela me ofereceu as 30 de uma só vez. Eu não conseguia pensar muito, apenas aceitei. Por outro lado, aquela criatura debilitada pediu para que eu renegasse minha mãe de uma vez por todas. Saísse de perto ela e fosse viver o que o mundo tinha reservado para mim. Falou sobre minha beleza e juventude e ressaltou o fato de eu não ser mais uma criança, muito menos empregada daquela mulher oportunista. 

Sai do mercado com as moedas sem nem olhar para trás. No caminho para a rua, pedi um taxi. Senti minhas pernas dormentes e então cai. Sem noção de tempo ou espaço, despertei presa a um velho tronco de salgueiro. Ao lado de mais três pessoas. 

O terceiro caso: 

Fiquei horrorizada. A criança não parava de expelir moedas pela boca. Tentei gritar, mas algo selava meus lábios. Trinta foram depositadas no fundo da piscina. Sem fôlego, tentei reunir o que me restava de sanidade e acenar para alguém. Congelei e vi que o pequeno menino havia juntado o monte de prata com as mãos. Aproximou-se do meu ouvido e sussurrou uma proposta. Pediu para que eu renegasse tudo o que havia conquistado antes e apenas considerasse meu casamento. Trabalho, família, amigos... tudo isso deveria ser apagado. Em troca, eu receberia todas aquelas lindas moedas que, sem dúvida alguma, só aumentavam minha ansiedade. 

Assim que as coloquei na minha bolsa, perdi o equilíbrio e cai dentro da água. Não conseguia me mover. Quando despertei novamente, estava enrolada a um tronco de salgueiro. Outras pessoas me olhavam sem dizer uma única palavra. 

O quarto caso: 

Havíamos trocado de papel. Agora era eu quem implorava pelas moedas de prata. Como se me conhecesse há anos, ele acariciou meus cabelos e deu seu preço. Eu deveria renegar meu sucesso e esforço, deveria renegar meu carro e a cidade. Deveria permanecer distante do mundo dos negócios para então abrir mão do nervosismo e estresse cotidiano. 

Quando ouvi tal proposta, achei absurda. Mas as moedas me despertavam desejos até então absurdos também. Foi então que as aceitei. No meu bolso, fizeram volume. Pesaram, de fato. Tentei mover a perna, mas ela não respondia. Em alguns segundos, um barulho agudo estourou meus tímpanos e eu desmaiei.
Acordado, senti uma forte pressão no meu corpo. Estava preso a uma tora de salgueiro. Desconhecidos também compartilharam de tal prisão. Repentinamente, um velho, uma velha, um garoto e o mendigo do viaduto surgiram. Estavam de mãos dadas.

Todos os quatro casos. 

Em seguida, acordei. Foi um pesadelo muito real. Busquei me recompor, mas algo incomodava a espinha. Revirei a cama, e debaixo do colchão encontrei uma pequena bolsa de pano. Trinta moedas de prata e uma corda com laço usado em enforcamentos. 

Quantas coisas devo ter renegado nessa vida? Quantas coisas...

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