Eu o observada de longe. Os dedos finos pareciam gravetos.
Repetiam o mesmo movimento enquanto o rosto, talhado em carvalho, repetia a
falta de expressão. Permanência. O ônibus não chegava e meu tempo corria para
longe da vida. Conseguia sentir a doença avançando. O coração descompassava e
só me restava ficar sem ar algum.
O velho se moveu e olhou para mim. As mãos pararam e a boca
deu início a um leve mastigar.
Minha mãe não parava de encher o carro de compras. Eu odiava
tanto ter que acompanhá-la no mercado. Enquanto passava pelo açougue, vi uma
senhora de mãos mortas acariciando um pedaço de carne. Ela estava concentrada
naquilo. Além do nojo, senti desprezo. Estava colocando os dedos imundos em um
alimento.
Quando me aproximei, ela parou o
movimento das mãos. Olhou para mim e começou a mastigar alguma coisa. Escutava
seus poucos dentes estalando.
Após o casamento só nos restava a felicidade. Ele comprou
passagens caríssimas para uma ilha paradisíaca. Eu embarquei com a certeza de
que o “eterno” tinha cheiro de lavanda. Duas semanas de diversão e paz. Quanta
alegria.
Desci para tomar sol na beira da piscina. Sentada, coloquei
meus óculos escuros e percebi uma criança parada na água. Estava de costas para
mim. Suas mãos foram enrugadas pela água. Pareciam com as de um cadáver.
Resolvi ir até ela para
perguntar se os seus pais estavam por perto. Quando ela sentiu minha
aproximação, parou de agitar a água. Os olhos estavam vidrados nos meus. De
repente, começou a morder algo com o canto da boca.
O trânsito sempre foi meu pior inimigo, logo depois do
relógio. A reunião definiria se o plano institucional que eu havia preparado
entraria em vigor. Basicamente, o resumo de seis meses de trabalho duro,
relacionamento em frangalhos e saúde de um rato.
Estacionei numa esquina qualquer e apertei o passo. Fora do
carro, o engarrafamento de pessoas consegue ser mais odioso ainda. Tentei
evitar a parte baixa do viaduto, mas foi em vão. Enquanto caminhava pelo lixo,
ouvia o lamento dos desesperados. Enrijeci a alma e não olhei para os lados.
Até que, durante um instante de distração, algo me despertou.
Uma fila imensa de pessoas ajoelhadas, pedindo esmola. Vários
pares de mãos estendidos na minha direção. A fome da boca se fazia na ansiedade
dos dedos. Continuei meu caminho até que vi uma única pessoa sem as palmas
abertas. Esse único indigente estava olhando para os próprios pés, sem
expressar qualquer reação.
Fiquei intrigado e parei diante dele. Mexi no meu bolso para
que as moedas fizessem barulho. Ele moveu a cabeça. Lentamente, seu queixo foi
se aproximando do nível em que o meu estava. Era coberto por uma barba negra,
porém não tão densa. Quando vi aquele par de esferas escuras tive certeza de
que ele não era normal.
Sua pele acinzentada sucumbia ao contraste com as sombras que
se acomodavam nas frestas desenhadas no rosto. As mãos surgiram de mangas
imundas. Farrapos. Unhas petrificadas e veias roxas que mais pareciam
sanguessugas anêmicas. Mostrei a moeda que havia tirado do bolso e mesmo assim
ele não se moveu.
Após alguns minutos me encarando, começou a mordiscar algo.
Percebia sua mandíbula fazendo um esforço titânico para triturar aquilo que
poderia ser até uma pedra, visto que o ruído era similar ao de uma rocha sendo
partida.
Posicionou as mãos diante da
boca e começou a cuspir moedas de prata. Em choque, esperei até que a cena se
completasse. Ao todo foram 30 moedas. Lisas, sem nenhum brasão ou numeração.
O primeiro caso:
Após o velho ter me oferecido aquela quantia, não demorei
muito e aceitei. Em troca ele me pediu para renegar o que o médico me havia
prescrito. Explicou que a vida só vale enquanto estamos envoltos pelo prazer de
fazer o que realmente nos dá vontade.
Eu aceitei. Liguei para o médico e disse que não ia seguir
com o tratamento. Arcaria com as consequências. Tive uma fraqueza e então cai
de joelhos. As moedas se espalharam pelo chão. Quando a consciência voltou, eu
estava amarrado num velho tronco de salgueiro.
O segundo caso:
Aquela velha imunda regurgitou cada moeda, como se fosse uma
bruxa dos infernos. Não vou negar, elas eram lindas. Reluzentes. Ela me
ofereceu as 30 de uma só vez. Eu não conseguia pensar muito, apenas aceitei.
Por outro lado, aquela criatura debilitada pediu para que eu renegasse minha
mãe de uma vez por todas. Saísse de perto ela e fosse viver o que o mundo tinha
reservado para mim. Falou sobre minha beleza e juventude e ressaltou o fato de
eu não ser mais uma criança, muito menos empregada daquela mulher oportunista.
Sai do mercado com as moedas sem nem olhar para trás. No
caminho para a rua, pedi um taxi. Senti minhas pernas dormentes e então cai.
Sem noção de tempo ou espaço, despertei presa a um velho tronco de salgueiro.
Ao lado de mais três pessoas.
O terceiro caso:
Fiquei horrorizada. A criança não parava de expelir moedas
pela boca. Tentei gritar, mas algo selava meus lábios. Trinta foram depositadas
no fundo da piscina. Sem fôlego, tentei reunir o que me restava de sanidade e
acenar para alguém. Congelei e vi que o pequeno menino havia juntado o monte de
prata com as mãos. Aproximou-se do meu ouvido e sussurrou uma proposta. Pediu
para que eu renegasse tudo o que havia conquistado antes e apenas considerasse
meu casamento. Trabalho, família, amigos... tudo isso deveria ser apagado. Em
troca, eu receberia todas aquelas lindas moedas que, sem dúvida alguma, só
aumentavam minha ansiedade.
Assim que as coloquei na minha bolsa, perdi o equilíbrio e
cai dentro da água. Não conseguia me mover. Quando despertei novamente, estava
enrolada a um tronco de salgueiro. Outras pessoas me olhavam sem dizer uma
única palavra.
O quarto caso:
Havíamos trocado de papel. Agora era eu quem implorava pelas
moedas de prata. Como se me conhecesse há anos, ele acariciou meus cabelos e
deu seu preço. Eu deveria renegar meu sucesso e esforço, deveria renegar meu
carro e a cidade. Deveria permanecer distante do mundo dos negócios para então
abrir mão do nervosismo e estresse cotidiano.
Quando ouvi tal proposta, achei absurda. Mas as moedas me
despertavam desejos até então absurdos também. Foi então que as aceitei. No meu
bolso, fizeram volume. Pesaram, de fato. Tentei mover a perna, mas ela não
respondia. Em alguns segundos, um barulho agudo estourou meus tímpanos e eu
desmaiei.
Acordado, senti uma forte pressão no meu corpo. Estava preso
a uma tora de salgueiro. Desconhecidos também compartilharam de tal prisão.
Repentinamente, um velho, uma velha, um garoto e o mendigo do viaduto surgiram.
Estavam de mãos dadas.
Todos os quatro casos.
Em seguida, acordei. Foi um pesadelo muito real. Busquei me
recompor, mas algo incomodava a espinha. Revirei a cama, e debaixo do colchão
encontrei uma pequena bolsa de pano. Trinta moedas de prata e uma corda com
laço usado em enforcamentos.
Quantas coisas devo ter renegado nessa vida? Quantas
coisas...
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