O corvo, eterno luto da natureza. Tem asas, pois a morte
precisa viajar. Mas não é ele quem mata. É ele quem a segue. Precisa ver para
crer que a vida acabou.
Não participa do parto. Evita o choro da vida que sai em
forma de berro, pela boca da criança. Mas não perde um funeral.Observa a alma lamentar por cada lágrima que
escorre. Lá do alto, sente o cheiro de éter, mas prefere o da carne.
Nasce do desgosto. Não tem moradia. Basta ter um ombro que
ele se instala. Confunde-se com a própria sombra para então aguarda
pacientemente pela queda. O silêncio lhe garante a sobrevivência. E quando
decide fazer barulho, traz agouro para manchar a saturada esperança.
Seja na estrada, na esquina ou na janela da sua casa, vou
te observar como se já estivesse marcado para morrer. E está. Não quero suas
entranhas, nem seu sangue. Alimento-me do prazer em ver que nem mesmo a
perfeição divina faz com que você viva por mais tempo do que o que lhe foi
predestinado.
Eu sou o lembrete que você ignora. Sou aquele que nunca
esquece dos dias nem das horas. Espero, sem pressa ou ansiedade, pelo dia em
que sua visão ficará tão escura quanto minhas penas.
Sempre tenho fome.
O corvo, eterna ausência de cor. Ninguém consegue ver os
seus olhos. Mas ele vê os de todos.
O que dizer sobre os homens e sua eterna posição aparentemente favorecida? O que dizer sobre a ditadura que os acompanha desde o parto, quando o pecado original os fez chorar diante da mãe exausta? É isso que são, e que somos. É isso o que sou. O desapego que desde cedo rompeu os laços com a feminilidade, pois só assim pôde se firmar numa terra sem traços definidos. O que dizer sobre os homens? O mesmo que diria sobre qualquer outra criatura.
A distinção criada pela natureza - como forma de explicar a continuidado do já citado pecado original - reforça a ausência de qualquer fórmula. Homem, aquele que supostamente está responsável pela segurança e ordem do mundo, caído em sua própria pele, preso em grades ancestrais e seduzido por um chamado considerado primata que já não decodifica a língua falada no novos tempos. Demasiado animal.
Este homem tem a força como fuga. Tem a força como rejeição e punição. Tem a força como adjetivo. Entretanto, não sabe nada sobre como ser forte. Porque o ser forte não atende mais o corpo, o parto ou à genitália. O ser que é forte fixa os olhos no mundo e com isso cega a velha necessidade de conferir se seus culhões continuam no mesmo lugar. O corpo é depósito e nem por isso merece menos cuidados. É depósito e nem por isso merece definir o que é e o que não é bom para o homem. De repente, não sei o que dizer sobre os homens.
Vejo neles, assim como vejo em mim, um julgamento pior do que aquele que transformou sangue, madeira, pedra, cruz e pregos em objetos de adoração. Vejo a sentença eterna - que pesa na costela nunca antes retirada - conduzindo o espírito pelos labirintos da ignorância. As vias cerebrais tão frágeis que impedem o homem de tocar sua superfície e, com isso, garante que ele vague solitário dentro de sua própria cabeça. Esse homem que ama como mulher e homem, sem distinguir o tamanho ou forma. O mesmo homem que esconde suas emoções em busca de uma gruta conhecida popularmente como "moral". É este homem que me encanta e irrita ao mesmo tempo. O mesmo homem que existe dentro de cada mulher, assim como cada menina que existe e insiste em ensinar a cada menino com quantas letras se escreve "eu te amo".
E o que dizer sobre os homens? O mesmo que diria sobre você. Mas, por favor, que isso fique entre nós.
Sente a terra gelar a sola dos pés. Dança, sem parar. E se
parar, sorria. Faz do mar teu amante e deixe que o sal da sua boca lave as
feridas da alma. Lave-se com o amor de quem profetiza o início, o meio e o fim.
Diante do mar, diante dele, sobre a terra e distante de si mesmo, você se torna
o interlúdio entre vida e morte.
Aos poucos, os braços vão seguindo o ritmo das ondas. A
música envolve como feitiço. Muda o ritmo dos passos e inventa coreografias de
acordo com o que foi ensaiado pelos olhos. Sente a música agora, menino. Deixa
fluir. A maré vai subir pra te buscar e levar até ele, o mar. Teu, só teu.
Ao respirar, preenche com esperança os pulmões cansados.
Esperança essa que nasce e se põe na risca do horizonte. Ponto onde o infinito
faz morada. Lugar no qual o mundo nasce e morre todos os dias. Desta paisagem
tire o suco que alimentará sua fome. Alaranjado, amarelado, doce como manga... É
para se lambuzar, menino. É para viver até doer todos os músculos. Olha no
espelho do mar e veja ele te refletir com amor.
Quando a brisa abençoar o litoral, esteja preparado para se
despedir. Pois amor nenhum é amor se não estiver cheio de todos os outros
sentimentos. Ama quem sofre, perde, desapega e ainda assim continua amando. É
amor porque não se limita. Nasce e morre naquele horizonte que está pintado
para você.
Foi ele, o mar, que te presenteou com o entardecer. Menino,
se o amor de hoje é aquele que faz par com a dor, saiba de uma coisa: a maré
vai baixar e te deixar do mesmo jeito que te encontrou; no interlúdio entre a
vida e a morte. Entre o coração e a razão. Entre o mar e a última canção.
Sempre achei que as palavras nascem carregadas de sentido. É como se fosse o
sangue delas. Por isso, evitei algumas frases e expressões no intuito de me
proteger e poupar outras pessoas. Mesmo sem dizê-las, eu nunca consegui que
sumissem. Eu as escrevia. E as escrevo até hoje.
E para escrever o que não costumo dizer eu me permito
adentrar dentro de mim. Viajo no entrelaço dos meus pensamentos e desencontro
as saídas. Perder-se em si é como sentir o rastro de perfume que faz lembrar de momentos
passados. Há um caminho. Só não conseguimos vê-lo com precisão.
...
Na sala vazia, descansei os ombros e, então, pude fechar
meus olhos. Afrouxei a gravata como se O Enforcado
já não fosse mais eu. Tudo, absolutamente tudo pesava. O ar, as cores, o som, o
gosto amargo na boca, a ponta dos dedos que não se entendiam com os talheres...
e o coração, claro. Mas agora não é o momento de falar sobre ele.
Gostaria de entender, com Temperança,
o que reserva o amor para a vida das pessoas. Deixei que ele irrigasse meus
dias e floresci. Amadureci. Perfumei tudo a minha volta. No começo foi difícil,
pois o solo permaneceu seco por muitos anos. Mas quando se deixa a água fluir não
há aridez que impeça a correnteza. Como manter os pés na terra e no rio ao
mesmo tempo? Equilíbrio... Utopia.
Passa-se a primavera e o que vem em seguida é o verão. Aquele
calor que reanima as veias e coura a pele. Ruboriza o espírito. Confesso que
não é minha estação preferida, mas ainda assim admito suas qualidades.
Sentir-se aquecido é como aceitar que há vida dentro de si. Aceitar que está
vivo o bastante para ser Louco o bastante.
Lançar-se em aventuras e tudo mais. Parte do todo ou à parte de nada. Uma chatice,
para ser franco. E quem disse que eu preciso de vida? Sim, preciso, mesmo sem
querer. Mesmo pensando tanto na Morte.
Lembro-me de quando li sua carta. Olhei pela janela,
tentando encontrar uma fuga qualquer para as lágrimas. A Lua estava lá, pronta para me ouvir. Mas não
consegui dizer absolutamente nada. Li e guardei cada palavra. Era o máximo que
podia fazer. Não compreendia como todo aquele amor poderia ter desaparecido.
Evaporou como se o Mago tivesse feito sua
última grande apresentação. Não sabia para qual caminho seguir. Parei com o Carro no meio da estrada e respirei na tentativa
de diminuir a raiva. Doía tanto que até perdi a sensibilidade. E o que li fez
com que a Roda da Fortuna retrocedesse.
“O que eu não consigo lhe dizer é justamente tudo aquilo que
escrevo. Você sempre me falou sobre o fim e mal percebeu que só estava me
guiando para ele. O nosso fim, no caso. Quando foi que nos perdemos? Bem, isso
já não importa.
Acordo todos os dias e lembro-me do seu nome. Lembro-me do
seu sorriso e da forma como costumava acariciar meu rosto. Sinto falta disso,
mas não de você. Veja, já não é mais a sua pessoa que me importa, mas as coisas
boas que qualquer outra pessoa poderia me proporcionar. Estou sendo franco. É o
melhor que posso te oferecer no momento. Nunca me queixei do seu silêncio. Essa
sua postura de Eremita até me agradava. No
começo, eu te admirava demais. Todas aquelas frases e pensamentos que davam ao Mundo uma infinidade de possibilidades. Tudo
ilusão. Desde suas histórias com casais Enamorados
até a idealização obsessiva pela ideia de pureza; a sua Sacerdotisa livre de pecados. Olha, cada um é responsável pelas
suas preferências e eu respeito isso. Mas o caos que habita sua cabeça – e essência
- só me faz sofrer. Às vezes te vejo como Diabo
na minha vida. Sempre tirando a paz, sempre destruindo aquilo que considero
como Justiça, como Esperança... Como vida! Chega.
No alto desta Torre de
desencontros está seu coração. Selado e inacessível. Quantas vezes eu tentei
alcançá-lo? Quantas vezes eu me perdi no labirinto das tuas incertezas? Muitas.
Você sabe disso. Sabe também que eu odeio Julgamentos
ou definições inflexíveis de Justiça,
e ainda assim fez questão de me condenar por ter tentado chegar perto de sua
essência. Essa resistência só me afastou. E, aos poucos, esgotou toda a Força que tinha.
Não há mais Estrela e nem
Sol para trazer o amanhecer. O reinado do
amor acabou. Imperador e Imperatriz deixam de existir. Em outras palavras,
não somos mais um casal. O amor está carente de fé. Sem ela, Hierofante nenhum consegue manter o equilíbrio.
Eu o observada de longe. Os dedos finos pareciam gravetos.
Repetiam o mesmo movimento enquanto o rosto, talhado em carvalho, repetia a
falta de expressão. Permanência. O ônibus não chegava e meu tempo corria para
longe da vida. Conseguia sentir a doença avançando. O coração descompassava e
só me restava ficar sem ar algum.
O velho se moveu e olhou para mim. As mãos pararam e a boca
deu início a um leve mastigar.
Minha mãe não parava de encher o carro de compras. Eu odiava
tanto ter que acompanhá-la no mercado. Enquanto passava pelo açougue, vi uma
senhora de mãos mortas acariciando um pedaço de carne. Ela estava concentrada
naquilo. Além do nojo, senti desprezo. Estava colocando os dedos imundos em um
alimento.
Quando me aproximei, ela parou o
movimento das mãos. Olhou para mim e começou a mastigar alguma coisa. Escutava
seus poucos dentes estalando.
Após o casamento só nos restava a felicidade. Ele comprou
passagens caríssimas para uma ilha paradisíaca. Eu embarquei com a certeza de
que o “eterno” tinha cheiro de lavanda. Duas semanas de diversão e paz. Quanta
alegria.
Desci para tomar sol na beira da piscina. Sentada, coloquei
meus óculos escuros e percebi uma criança parada na água. Estava de costas para
mim. Suas mãos foram enrugadas pela água. Pareciam com as de um cadáver.
Resolvi ir até ela para
perguntar se os seus pais estavam por perto. Quando ela sentiu minha
aproximação, parou de agitar a água. Os olhos estavam vidrados nos meus. De
repente, começou a morder algo com o canto da boca.
O trânsito sempre foi meu pior inimigo, logo depois do
relógio. A reunião definiria se o plano institucional que eu havia preparado
entraria em vigor. Basicamente, o resumo de seis meses de trabalho duro,
relacionamento em frangalhos e saúde de um rato.
Estacionei numa esquina qualquer e apertei o passo. Fora do
carro, o engarrafamento de pessoas consegue ser mais odioso ainda. Tentei
evitar a parte baixa do viaduto, mas foi em vão. Enquanto caminhava pelo lixo,
ouvia o lamento dos desesperados. Enrijeci a alma e não olhei para os lados.
Até que, durante um instante de distração, algo me despertou.
Uma fila imensa de pessoas ajoelhadas, pedindo esmola. Vários
pares de mãos estendidos na minha direção. A fome da boca se fazia na ansiedade
dos dedos. Continuei meu caminho até que vi uma única pessoa sem as palmas
abertas. Esse único indigente estava olhando para os próprios pés, sem
expressar qualquer reação.
Fiquei intrigado e parei diante dele. Mexi no meu bolso para
que as moedas fizessem barulho. Ele moveu a cabeça. Lentamente, seu queixo foi
se aproximando do nível em que o meu estava. Era coberto por uma barba negra,
porém não tão densa. Quando vi aquele par de esferas escuras tive certeza de
que ele não era normal.
Sua pele acinzentada sucumbia ao contraste com as sombras que
se acomodavam nas frestas desenhadas no rosto. As mãos surgiram de mangas
imundas. Farrapos. Unhas petrificadas e veias roxas que mais pareciam
sanguessugas anêmicas. Mostrei a moeda que havia tirado do bolso e mesmo assim
ele não se moveu.
Após alguns minutos me encarando, começou a mordiscar algo.
Percebia sua mandíbula fazendo um esforço titânico para triturar aquilo que
poderia ser até uma pedra, visto que o ruído era similar ao de uma rocha sendo
partida.
Posicionou as mãos diante da
boca e começou a cuspir moedas de prata. Em choque, esperei até que a cena se
completasse. Ao todo foram 30 moedas. Lisas, sem nenhum brasão ou numeração.
O primeiro caso:
Após o velho ter me oferecido aquela quantia, não demorei
muito e aceitei. Em troca ele me pediu para renegar o que o médico me havia
prescrito. Explicou que a vida só vale enquanto estamos envoltos pelo prazer de
fazer o que realmente nos dá vontade.
Eu aceitei. Liguei para o médico e disse que não ia seguir
com o tratamento. Arcaria com as consequências. Tive uma fraqueza e então cai
de joelhos. As moedas se espalharam pelo chão. Quando a consciência voltou, eu
estava amarrado num velho tronco de salgueiro.
O segundo caso:
Aquela velha imunda regurgitou cada moeda, como se fosse uma
bruxa dos infernos. Não vou negar, elas eram lindas. Reluzentes. Ela me
ofereceu as 30 de uma só vez. Eu não conseguia pensar muito, apenas aceitei.
Por outro lado, aquela criatura debilitada pediu para que eu renegasse minha
mãe de uma vez por todas. Saísse de perto ela e fosse viver o que o mundo tinha
reservado para mim. Falou sobre minha beleza e juventude e ressaltou o fato de
eu não ser mais uma criança, muito menos empregada daquela mulher oportunista.
Sai do mercado com as moedas sem nem olhar para trás. No
caminho para a rua, pedi um taxi. Senti minhas pernas dormentes e então cai.
Sem noção de tempo ou espaço, despertei presa a um velho tronco de salgueiro.
Ao lado de mais três pessoas.
O terceiro caso:
Fiquei horrorizada. A criança não parava de expelir moedas
pela boca. Tentei gritar, mas algo selava meus lábios. Trinta foram depositadas
no fundo da piscina. Sem fôlego, tentei reunir o que me restava de sanidade e
acenar para alguém. Congelei e vi que o pequeno menino havia juntado o monte de
prata com as mãos. Aproximou-se do meu ouvido e sussurrou uma proposta. Pediu
para que eu renegasse tudo o que havia conquistado antes e apenas considerasse
meu casamento. Trabalho, família, amigos... tudo isso deveria ser apagado. Em
troca, eu receberia todas aquelas lindas moedas que, sem dúvida alguma, só
aumentavam minha ansiedade.
Assim que as coloquei na minha bolsa, perdi o equilíbrio e
cai dentro da água. Não conseguia me mover. Quando despertei novamente, estava
enrolada a um tronco de salgueiro. Outras pessoas me olhavam sem dizer uma
única palavra.
O quarto caso:
Havíamos trocado de papel. Agora era eu quem implorava pelas
moedas de prata. Como se me conhecesse há anos, ele acariciou meus cabelos e
deu seu preço. Eu deveria renegar meu sucesso e esforço, deveria renegar meu
carro e a cidade. Deveria permanecer distante do mundo dos negócios para então
abrir mão do nervosismo e estresse cotidiano.
Quando ouvi tal proposta, achei absurda. Mas as moedas me
despertavam desejos até então absurdos também. Foi então que as aceitei. No meu
bolso, fizeram volume. Pesaram, de fato. Tentei mover a perna, mas ela não
respondia. Em alguns segundos, um barulho agudo estourou meus tímpanos e eu
desmaiei.
Acordado, senti uma forte pressão no meu corpo. Estava preso
a uma tora de salgueiro. Desconhecidos também compartilharam de tal prisão.
Repentinamente, um velho, uma velha, um garoto e o mendigo do viaduto surgiram.
Estavam de mãos dadas.
Todos os quatro casos.
Em seguida, acordei. Foi um pesadelo muito real. Busquei me
recompor, mas algo incomodava a espinha. Revirei a cama, e debaixo do colchão
encontrei uma pequena bolsa de pano. Trinta moedas de prata e uma corda com
laço usado em enforcamentos.
Quantas coisas devo ter renegado nessa vida? Quantas
coisas...
Observe com atenção. Quantos caminhos você enxerga na superfície do cérebro? Quantas vigas, frestas, vielas e córregos estão registrados nesse espaço demasiado frágil? Quando me deparei com tal imagem, senti o alívio de ter nascido na condição de "perdido". O Louco, o primeiro arcano, aquele que encontra beleza no "não saber" foi justamente quem batizou a alma em forma de massa.
Percorri um desses corredores. Escolhi de olhos abertos e razão fechada. O tempo se desfez; primeiro engano. As pessoas nunca existiram de fato; cai nos braços da imaginação; gosto e som eram lembranças de um passado inexistente. Toda essa complexidade me fez voltar ao teto do emaranhado cefálico.
Outro caminho. Frustrações, lamentação, resistência e bucolismo. Andava lentamente, com as mãos raspando a ponta dos dedos nas paredes. Sangrei sem sentir dor. Achei falso. Senti um pedaço da morte. A falta da dor é a morte. Não tem pulso. Retornei.
Ninguém guia o pensamento;
Ninguém controla as ideias;
Ninguém invoca a criatividade;
Ninguém retrata o passado com exatidão;
Ninguém vive o presente com plena razão;
Ninguém confia no futuro;
Não somos nada além de perdidos dentro do próprio cérebro.
Deus, o diabo e todas as outras negações são os altos muros que nós tentamos pular, no intuito de ver além do labirinto.
Ninguém enxerga aquilo que não alcança. Por isso, cansa.
E "ninguém" é equivalente a "todos" quando se trata de estar perdido.
Eu o receberia neste verão para passar as férias na minha
casa. Fiz vários planos e me programei no intuito de oferecer o máximo de
atividades, a fim de entretê-lo. Era um amigo muito querido e eu não gostaria
que ficasse entediado logo nos primeiros dias.
Ao chegar, lhe mostrei o quarto em que ficaria. Era ao lado
do meu. Antigo quarto que minha irmã ocupava antes de se casar. Meus pais
estavam no exterior. Fiquei com a casa e o mais importante: a individualidade.
Ainda assim, eles pediram para que Joshua se hospedasse até que suas aulas
voltassem.
Conheci Joshua no colégio. Éramos da mesma sala, mas de
mundos diferentes. Enquanto eu passava a maior parte do tempo distraído com
minha própria mente, ele explorava cada canto da sala. Eu optava pelo silêncio.
Sentia conforto em ouvir e em refletir sobre as palavras lançadas ao ar. Ele,
por outro lado, falava demais. E fazia com que as pessoas falassem mais ainda.
Sorria, sempre. Eu adorava escutá-lo. Um dia, ele me fez falar.
- Então você não tem nada a dizer nos 365 dias do ano?
- Não entendi.
- Fica aí, sempre quieto. No mesmo lugar. Parece até que
você se confunde com a paisagem da sala. Não me leve a mal.
- Talvez eu me confunda mesmo.
- Olha, eu to indo na biblioteca pegar uns livros, quer ir?
- Não.
-Bom, já que não quer, deveria. É sempre bom desafiar as
vontades. Até as contrárias.
- Preciso devolver um livro. Então, acho que vou sim. Não
pretendo desafiar nada.
- Difícil você, hein? Mas tudo bem. Sou eu quem desafia,
então.
...
Entrar na biblioteca era como alcançar o plano astral.
Bilhões de supernovas cheias de informação anunciando a morte da ignorância e o
nascimento da sabedoria. Os dedos percorriam as prateleiras, farejando
histórias e mistérios. Joshua só recebia sinalizações quanto ao barulho que
estava fazendo. Ele expelia o silêncio até com a respiração.
A partir daí, começamos a conversar com frequência. Eu
gostava dos seus relatos sobre o conteúdo dos livros. E ele admirava minhas
frases curtas e objetivas. Eu me impressionava com sua empolgação. Era vivo
demais. Espantava minha essência avessa ao vigor.
O tempo corria e nossa amizade só crescia. Ele me confiou
suas decepções amorosas e eu tentei acalmá-lo. Não foi fácil, pois não sabia o
que dizer a respeito do amor. Evitei relacionamentos. Nunca me senti envolvido de verdade e o que eu
queria ainda se apresentava como algo errado, impossível e anormal. Por isso eu
não pensava sobre meus sentimentos.
Joshua encontrou uma garota muito legal. Eles se pareciam
bastante. Era “muito” de tudo. Muita conversa, muita animação, muito amor,
muita alegria e, em alguns casos, muita raiva. Ele estava mais vivo do que
nunca. E eu também me enchia de felicidade. Agora eram dois ouvidos para duas
pessoas. Mas as minhas frases continuaram curtas e pontuais.
Dois anos se passaram e o casal já estava mais “sóbrio”.
Madalenne tinha um gênio forte e me acordava às 3h da manhã para reclamar de
Joshua. Também me ligava no mesmo horário para dizer o quanto amava aquele
rapaz. E eu só podia sorrir de leve, em ambas as situações. Quando ele me
ligava, dizia que sua namorada sugava muito de sua energia, mas não abria mão
da sensação de “importância” que ela agregava ao seu ser. Quando os dois
decidiam me questionar a respeito de “namoros”, eu sempre encontrava uma forma
de mudar de assunto. Neste meio tempo, permaneci sozinho e aproveite todo o
tempo para acalmar meus pensamentos. Já não era mais errado, impossível e
anormal.
Foi então que o amor secou depois de tanta sede. Joshua e
Madalenne desistiram um do outro. Queriam experimentar outras essências. Não
houve briga. Decidiram que já era tempo de preservar a amizade e o respeito.
Ele disse que passaria o verão comigo. Ela disse que passaria o final de ano.
Eu concordei. Duas vezes.
Em apenas quinze minutos, Joshua mudou o ritmo da minha casa.
Colocou música para tocar, abriu as janelas do meu quarto, as portas da casa e
o sorriso. Deixou comida no fogo, bebida no meu copo e me chamou para tomar
sol. Fui mesmo odiando a ideia de absorver todo aquele calor.
Lembramos-nos dos tempos de escola e pela primeira vez eu
não me limitei às frases tímidas. Quis falar tudo o que havia observado e
absorvido. Trocamos os papéis. Ele se impressionou com a quantidade de detalhes
que eu havia guardado na memória. Eu o pari com palavras. Joshua viu a si mesmo
como se estivesse diante de um espelho. Eu o despi e fiz com que reconhecesse
cada parte do seu corpo. Do que era. Desta vez, ele não soube o que me dizer.
Mas disse ao rir com o canto da boca.
Os dias passavam e ele mantinha um silêncio intrigante. Eu
perguntei se havia feito algo de errado ou se a definição que fiz tinha o
decepcionado. Não era isso. Era mais do que isso. Ele estava com medo.
Eu não entendia e automaticamente retornei para meu mundo.
Fechei as janelas, as portas e o sorriso. Sequei, pois sabia que algo estava
muito errado. Joshua pediu para entrar no meu quarto. A noite estava fria e o
céu parecia uma tela pintada naquele instante. Cores frescas e gélidas.
Sentou-se próximo aos meus pés e ficou parado, com a cabeça baixa. Eu mirei meus
olhos na direção dos seus. Fiquei quieto.
- Você me vê, mesmo com as luzes apagadas.
- Sim.
- Eu só consigo te ver porque a lua está derramando um pouco
de luz em você.
- Logo mais uma nuvem resolve isso.
- Não há nuvens. Não mais...
- Está sem sono?
- Sim. Com frio também. Estou nu, sabe?
- Nu? Aconteceu algo com suas roupas? Está com febre? O que
foi?
- Não. Não é nada disso. Você me deixou assim quando me
descreveu. Quando falou sobre todos aqueles detalhes.
- Já pedi desculpa. Não queria te deixar constrangido. É por
isso que eu não costumo falar muito. Perco a noção e vou falando sem pensar. Se
penso antes, acabo não dizendo nada. Mas se digo, dá nisso...
- Cala a boca! Desculpa? Não, não te desculpo, porque não há
o que desculpar. Foi lindo o que você disse. E importante. Não vou negar, senti
certo desconforto. Tive que confrontar alguns pontos que não gostaria de assumir
como meus. Mas foi ótimo... Fiz como você. Pensei e por isso não disse muita
coisa nesses últimos dias.
- Tudo bem. Eu entendo. Pensei muito em você durante todos esses
anos. E por este motivo não te disse muitas coisas.
- Agora eu entendo. Entendo tudo. Como você suportou? Como
aguentou tudo isso em silêncio? E a Madalenne? Como...?
- “É sempre bom desafiar as vontades”.
- Olha só... Você é diferente mesmo [risos]
- Sou. Hoje eu entendo isso. Entendo... eu acho.
- Se te magoei, peço desculpas.
- Agora é você que deve se calar. Todos esses anos eu fui
muito feliz com sua amizade. E o que não tive fez parte do motivo para
continuar vivo. Só assim eu poderia te olhar de verdade. Viver para te ver
viver.
- Também sou muito feliz com sua amizade. Não posso te dar
mais do que isso. Confesso que não sinto tanto e tão profundamente como você. Ainda
não sinto. Preciso conversar mais com meus sentimentos. Necessito ser como você
foi durante esses anos para aprender a lapidar as emoções aqui dentro. Mas
saiba que eu nunca vou te esquecer e não quero você longe de mim. Nunca quis.
Preciso de você aqui.
- E você ainda me diz que não pode me dar mais do que isso?
[Risos] Acredite, não há mais nuvens. Não mais.