terça-feira, 23 de julho de 2013

Pelo frio



Frio
Receba minha voz
Enevoada
Sem brio
Pelo fio
Que segura o choro
Para não queimar
A cara
Com sal e açúcar
De lágrima.

Faz meu coração
Aconchegar-se no peito
Sem reclamar
Do aperto
E da solidão
Se for preciso
Frio
Sopre a chama do amor
Com sofreguidão
E lance ao vento
O que sobrou do meu seu

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Tríade


Ela tirou meu azar no tarô. Seus dedos pesados de pedras sem valor acariciavam a ponta das cartas como se quisesse batizar cada uma delas com o próprio sangue - chupado após um delicado corte. Ritual lento e preciso, quase como carinho nas madeixas encaracoladas do destino; afago no abismo do não saber. E eu queria saber. Queria tanto que aguardei impaciente pelas muitas pragas daquelas lâminas envelhecidas.

Os Enamorados, A Morte e O Diabo. Todos invertidos. A paixão, O Fim e o Desejo. Todos negativos.

Na extremidade esquerda da boca, uma linha invisível parecia puxar-me os lábios já escorridos para baixo. Ela não precisou soprar seu hálito de velório para anunciar o sepulcro do meu futuro. Jazia ali toda e qualquer esperança tola de um dia ser algo a mais do que um andarilho.

- Nem o demônio tiraria esse jogo, rapaz.
- Então eu devo ter sorte.
- Se quer levar isso tudo na brincadeira melhor me pagar o que deve e sumir.
- Não sou engraçado. Não tenho humor. Falei sério. Devo ter mais sorte do que satã.
- E por que diz isso?
- Porque nem ele seria capaz de me amaldiçoar. Estou além de seus poderes.

A visão era nítida até mesmo para mim que do misticismo só conheço vultos e calafrios - todos derivados da bebida. Aquela tríade alertava para o caminhar até a boca do abismo, altar no qual a vida se casaria com a morte e passaria a ter seu sobrenome. No qual a vida deixaria de ser livre ou dona de si para então se aconchegar no colo macio do ceifador.

Os Enamorados

Martinez jamais teria conquistado espaço nos meus dias se antes de pagar a bebida não tivesse oferecido um cigarro. Os sinais eram simples: quando se oferece fumo a um desconhecido é porque espera dele algum laço feito pela fumaça densa e vagarosa, macia, ácida e envolvente. Mata-se o perfume para dar lugar ao cheiro do vício. E todo fumante identifica de longe o odor de nicotina. Por isso é que ele me defumou no tabaco. Pra fazer parte da minha sina.

Era um rapaz de joelhos firmes - seus passos faziam a madeira sob os pés ranger reumática - olhos petrificados num cinza desgostoso e lábios arroxeados, como se o frio da alma lhe congelasse o sangue. Por outro lado, sua voz tensionava a carne como descarga elétrica. Corria pelos quintos mais ocultos das juntas e pipocava numa ardência demoníaca. Chacoalhava o diafragma alheio sem nenhum respeito e descompassava o fôlego de velhos e novos. Comigo não foi diferente, mas acabou diferente.

Martina adorava beber. Nossa ligação veio pelos ossos. O excesso de álcool e a falta de apetite revelaram por debaixo dos panos de pele as curvas quebradas do traje de esqueleto que nos caia tão bem.

Mulher nenhuma, no ague de sua saúde e abundância, olharia para um farelo de pólvora como eu, sempre com cara de quem já foi queimado e nem ao menos gerou faísca. E que homem, por menos eu que fosse -, dono de músculos hercúleos, daria cama e corpo a uma gazela tão cansada da beleza que nunca lhe visitou por mais do que duas horas? Feitos de defeitos um para o outro.

Joshua era bem velho. Sua barba tecia as confissões do passado e se espalhava pelo rosto como mal presságio. Desenhava o mapa da morte para quem quisesse ver. E eu queria. Sua mão firme prendeu meus braços antes mesmo que o rasgo da adaga se transformasse em furo. Para evitar que a briga se tornasse carpete de sangue e vida expirada, sussurrou no meu ouvido:

- Você é magro e bêbado demais para bancar o assassino. Algema nenhuma servirá nesse par de pulsos finos.
- Talvez caibam então na sua língua de tora.
- Acho que você não está em condições de me desafiar. Mais um movimento e eu de quebro feito graveto.
- Mais um sussurro e eu te pago o que me resta de trago.

No dia do meu aniversário convidei os três para uma festa em casa. As velas alaranjaram as demais cores que insistiam em marcar presença nas camisas e vestidos sempre acompanhados pelo péssimo gosto de seus donos.

Martina jurou que éramos almas condenadas uma a outra. Pediu meu amor e toda a adega. Derramou sobre meu peito a palmas das mãos e sobre a palma das mãos os lençóis de tequila. Não conseguiu molhar meu coração.

Joshua entrou sem pedir licença e esqueceu que a intimidade do outro dia havia sido eliminada junto com a ressaca. Pegou no meu ombro como se erguesse um cabide e veio novamente confidenciar nos meus ouvidos os desejos que fingiu nunca ter ouvido. Ninguém jamais diria que aquele velho homem amontanhado em músculos pré-históricos precisava apenas de um sopro para revelar seu sufoco.

Por outro lado, Martinez nem sequer veio até mim. Estava aéreo, conectado a um plano que minha presença - soterrada na insegurança - jamais alcançaria. Andou, olhou para outras pessoas, bebericou e compensou toda a ponderação nas profundas tragadas que enchiam seu peito fumaça. Fui até ele, puxei assunto, e nada. Fui rejeitado. Então decidi encerrar a peleja.

Aceitei o amor de Martina. Ensopei-me com seu álcool, dancei no meio de todos e deixei que meus ossos se entrelaçassem aos dela. Joshua perdeu o controle e veio mais uma vez puxar meus braços - como se fosse a primeira vez. Martina lançou uma de suas melhores amigas em direção ao velho lobo. A garrafa de vodka explodiu em sua testa e ele logo titubeou. Recomposto após alguns segundos, voltou-se contra mim. Ergueu meus 48 quilos com facilidade e começou a me carregar como se fosse seu fardo.

Nesse momento, Martinez passou sorrateiramente pelas costas de Johua. Pintado numa frieza fora do comum, deslizou o cigarro por entre os dedos, deu uma forte tragada como se estivesse dizendo adeus e então enterrou a ponta em brasas no olho esquerdo de Joshua. A dor foi traduzia em urro e a vingança em murros. Marinez, rato como sempre, acinzentou-se e partiu camuflado, coberto pela poeira da velha sala que se desfazia em fúria e ira alheia. Eu, fora de mim e de casa, sentei diante da estrada para respirar. Martinez passou-me um cigarro e usou o seu isqueiro para acender a breve chama.

- Acho que você não é mais dono da sua casa. Pelo menos não nesta noite.
- Sou dono da rua então.
- Melhor não arriscar. O velho e a moribunda virão atrás de você.
- Pois que não venham pela frente, senão acerto um gume de cada faca na carne deles.
- Vamos, tenho espaço no meu canto.
- E quando entrou no meu canto, porque me deixou na esquina de sua atenção, à espera?
- Não sou homem de me entregar assim tão facilmente. Mas isso pouco importa, estou aqui agora. Vamos?
- Não, obrigado.
- Por quê?
- Porque só queria o prazer de lhe dizer "não" e provar que mesmo com toda a sua pose de "difícil", a carência afrouxou suas calças. Você não é homem porra nenhuma.
- Então você que morra naquela zona que chama de lar.
- Morro sim, mas com meu "sim". E você continuará eternamente com o meu "não".

A Morte

A friaca  foi implacável. Alimentou meu corpo com o próprio sangue que circulava até o coração e dele partia para o restante de mim. Secou-me. Morri na sarjeta, como bem merecia, entregue aos fios sujos de água que passavam descabelados pelo resto de calçada. Naquele instante eu a vi, toda de preto, com a pele mais clara do que o paletó de palidez que desde o falecimento passou a me vestir.

- Boa noite, rapaz.
- Boa n.
- Não completa o cumprimento?
- Só o básico.
- Pois bem. Você morreu, contaste a ti mesmo?
- Não. Estou vivo, estou me sentindo a mesma merda.
- Dessa vez é merda intocável, desprovida de cheiro e textura. Você morreu.
- Que seja. Quando parte o trem para o inferno?
- Para lá você não vai. Já está. No fundo da sua alma cresce o cancro do medo. E ela quem vai definir sua sentença.
- Medo? Cancro? Foda-se.
- Essa covardia fantasiada de arrogância e descaso é tão clichê. Seja como for, fiz meu trabalho. Agora não é mais comigo.
- E com quem é então?
- Teu medo vai guiar os passos até ele.
- Ele? Não vai mesmo me dizer o nome?!
- Só o básico.

O Diabo

Continuei sentado diante de casa, vendo os dias passarem assim como as pessoas. Joshua e Martina tiveram dois filhos saudáveis. Digo "saudáveis" com certa ênfase, uma vez que o fato de Martina ainda ter um útero que responda por tal nome soasse como milagre. E realmente, dizem que o nascimento é um milagre de Deus. Agora é de Martina também. Talvez até mais dela.

Martinez, por sua vez, parou de fumar para então dedicar seus dias à costura de calças. Tem fobia das que chegam embeiçadas. Cansou do silêncio de suas ideias e agora vive pelas esquinas, puxando papo com qualquer um - inclusive cães, galinhas, vacas e cactos.

Sem fome, sem sono e com uma vontade descomunal de beber e fumar. Era como se os vícios me alimentassem, de fato. Já que ninguém me percebia, decidi ir até o bar e encher a cara sem me preocupar com os olhares carrascais do balconista.

No canto esquerdo, perto do banheiro masculino, estava um rapaz jovem de pele azulada, nariz de anzol e boca andrógina que sorria e resmungava ao mesmo tempo. Os olhos ardiam feito sol, mas o resto de seu corpo parecia esquecido pela vitalidade. Abandonado num semblante que mais se parecia com a carcaça de um bode.

- Sente-se aqui. Do que você bebe eu já me banhei demais. Venha, tome um trago.
- Quando a esmola é demais, o demônio aceita sem olhar para trás.
- Conhece-me bem então.
- Só você mesmo para se sentar perto de um banheiro masculino e ainda sim feder mais do que ele.
- Vocês e essa mania de cheiros, cores e sabores. Por favor, poupe-me dos sentidos humanos.
- Quanto tempo vou ficar aqui e assim?
- Eternamente.
- E quanto tempo é "eternamente"?
- Quanto tempo você precisar para contar até que não exista mais número.
- Morri e é isso? Vocês, você e o tal Deus, travaram uma guerra gigantesca pra resumir a morte a isso?
- Bem, eu queria mais, porém não detenho o poder da criação.
- Vocês dois são bem patéticos. Nem ao menos passaram por uma vida humana, carnal. São incapazes de morrer.
- E você se acham melhor do que nós só pelo fato de ter morrido?
- Não, mas pelo fato de ter existido de fato.
- Nós também existimos!
- Claro, mas só até que a morte nos separe. Antes disso a vida camufla vocês. Desenha seu rosto na cara de um cabrito e as mãos de Deus numa cerâmica vagabunda.
- Como você é arrogante! Sabe que podemos condenar sua alma aos maiores sofrimentos, não sabe?
- Sei. Mas ao fazerem isso estariam eternizando a minha presença nas suas humildes memórias. "Aquele, o único, a qual aplicamos os piores castigos de todos os tempos". Sofrimento maior do que a lembrança ruim não há.
- É mesmo, e qual é sua lembrança ruim?
- Não te interessa.
- Cretino. Vamos, diga. De repente eu posso te ajudar a mudar isso.
- E aí vou me recordar para sempre da sua ajuda maldita. É isso?
- Pense, você poderá ser feliz novamente, mesmo que com a bonança venha também a minha marca, meu toque, meu cheiro insuportável. Vá, admita, é tentador não?
- Admito, é sim. Mas você tem razão. Se eu voltasse no tempo e mudasse algumas coisas, certeza que atribuiria tal ato a você. Sofreria eternamente com a certeza que fui ajudado pelo pior dos piores.
- Pois bem, eu te ajudo. Quer voltar no tempo? Eu rebobino as fitas do destino e te permito gravar novas impressões na sua sina. Aceita?
- Aceito!
- E em qual momento quer renascer?
- Só uma última coisa. Antes de ir, você tem cartas de tarô aí?
- Tenho todos os tipos de jogos comigo. Quer o quê?
- Quero que você escolha três cartas e eu as virarei.
- Perda de tempo. Sou imune ao que, indiretamente, também me pertence. Deus mesmo não se presta mais a jogar - indiretamente falando. Mas tudo bem. Vamos lá. São essas três. O que me diz?
- O Sol, A Roda da Fortuna e A Torre.
- Grande coisa.
- Nenhum humano tiraria esse jogo.
- Escolheu em qual momento devo te deixar?

(...)

Martinez passou-me um cigarro e usou o seu isqueiro para acender a breve chama.

- Acho que você não é mais dono da sua casa. Pelo menos não nesta noite.
- Sou dono da rua então.
- Melhor não arriscar. O velho e a moribunda virão atrás de você.
- Pois que não venham pela frente, senão acerto um gume de cada faca na carne deles.
- Vamos, tenho espaço no meu canto.
- E quando entrou no meu canto, porque me deixou na esquina de sua atenção, à espera?
- Não sou homem de me entregar assim tão facilmente. Mas isso pouco importa, estou aqui agora. Vamos?
- Sim, obrigado.
- Tão fácil assim?
- Você não sabe de nada. Mas eu posso lhe ensinar algo já de adianto.
- O quê?
- A desfrouxar suas calças.

Sobre extremos



Esqueci de fechar bem a janela do quarto e quando deu 10h da manhã aquele espirro de luz respingou na minha cara. O quarto parecia mais um cômodo qualquer, daqueles que meus pais geralmente reservam pra sucatas e materiais dispensáveis. Mas eu estava lá, fundamental para a vida deles. Fundamental para que aquele espaço minúsculo não fosse demolido e cedesse lugar a uma varanda com vista pra piscina do vizinho. Nem preciso dizer que a grama dele era mais verde, não é? É. 

Para mim o extremo sempre foi o teto do meu quarto. Longe demais, alto demais, intocável. Como se lá não houvesse espaço para mim, mesmo sendo dono de tudo o que ali residia. Foram tardes e mais tardes deitado no chão olhando para aquelas fileiras intermináveis de madeira falsamente amarronzadas, alguns fios de poeira, uma lâmpada sem lustre e uma luz hepática, mais amarela do que o sol. O telefone tocou e não tive outra saída, atendi: 

- Quem é?
- Eu. Pensou que não ligaria, né?
- Pensei pouco.
- Ah é? Poxa, se soubesse teria me contido então...
- No fundo você sabia sim, mas diga lá, o que quer?
- Queria saber se você está bem. Seus pais me disseram que está no quarto há 3 dias.
- Bem, aqui é o único local que eu posso chamar de meu.
- Você precisa superar isso, não pode ficar assim para sempre, sabe?
- Eu só estou aqui, é tão insuportável para vocês?
- Só estamos preocupados. Sei que foi uma perda grande, mas basta estar vivo para morrer.
- Obrigado, tem mais alguma coisa a dizer?
- Quer mesmo que eu não ligue mais?
- Só vou saber quando você ligar novamente e eu tiver a chance de te ignorar ou não.
- Bom saber.
- No fundo você sabe sim. 

Mesmo no meu mundo, no meu jogo de paredes, naquele útero de concreto, há quem venha interferir. Seja pra me tirar à força do âmago que conforta ou para simplesmente cumprir seu papel de “salvador” e jogar migalhas ao faminto. De qualquer forma, eles fazem com boas intenções. Sou eu que aprendi a lidar com a solidão e agora me incomodo com a ausência dela. 

O teto continuava a encarar e uma raiva sutil passou a vazar pelos cantos da boca. Senti o primeiro estalo vindo do maxilar – como aviso prévio do terremoto. E então os dentes começaram a partir o silêncio que fixava meu rosto. Rangiam firmes, fieis à mordida de cão ancestral que nasceu comigo. E então eu levitei, sem a leveza que teoricamente acompanharia tal feito. Praticamente me lancei ao teto. Grudei o corpo naquele chão invertido e então fiz dos meus punhos duas bolas de ferro demolidoras. 

Peça por peça, farpa por farpa, céu por céu, tudo começou a se desfazer. Soco, soco, soco, sangue, soco, soco, soco. Era o extremo do alto, o extremo intangível e naturalmente arrogante lidando com o extremo do baixo, do caído, do jogado para o canto de um cubículo mofado. Era o andar de cima tendo que se proteger do andar de baixo. Toda a cólera que me consumia no silêncio da minha exclusão acordou feito vulcão e o hálito quente e destrutivo do magma cardíaco partiu as alturas com um sopro draconiano, tingindo o teto de vermelho. Talhando em sua madeira os ossos das minhas mãos. 

Saí. Não pela porta, mas pelo local que nunca me pareceu uma saída. 

Dessa vez eu saí por cima.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Saco cheio



Algumas perguntas surgem justamente para selar nossa capacidade de raciocinar com precisão. Tais questionamentos praticamente escravizam a sinceridade e a ameaçam com o risco de termos que explicar – em longas linhas, falas ou choros – o que de fato acontece entre os lençóis do ego.   

Oi, tudo bem? 

(Sim)

Desnecessário dizer que as convenções sociais mutilam a subjetividade todas as vezes que esta tenta sair para tomar um sol, tomar um banho e tirar o gosto amargo do antidepressivo dos lábios secos. Mais desnecessário ainda é dizer que este “sim” é a forma mais resumida de cravar os pregos na mão do Cristo falido que habita em nós. Crucificados por algozes invisíveis – ou camuflados de contas, traições e avôs preconceituosos – somos obrigados a calar o sofrimento com um falso sorriso arroxeado de murros dados pela vida e ainda pregar a falsa sensação de que “todo sofrimento será recompensado”. E qual recompensa é capaz de trazer de volta o tempo sofrido? 

(Não)

Ser franco, inconveniente, carente, depressivo, fraco, falido, chato, espaçoso, melancólico, ingrato, pessimista, amargo, azedo, descrente, desenganado, perdido, pobre, ignorante, coitado, infeliz, insatisfeito, rancoroso. Ser humano. Ser gente mesmo. Ter a única chance de responder à pergunta “Você é um homem ou rato?” sem titubear. 

Eu ainda sou rato. Daqueles que escondem nos esgotos do peito o lixo que o coração joga na privada para que nunca mais voltem a cobrir o tapete do quarto com envelopes coloridos, letras desenhadas e as velhas promessas que só cabem nos poemas infantis os quais somos obrigados a conhecer antes mesmo do amor. Daquelas tralhas dispensáveis que não têm outro remetente senão o fundo do vaso sanitário, do ego agora solitário, daquelas pontas que te ajudam a dormir; daqueles comprimidos que comprimem a dor; daquelas bebidas que, misturadas à água, tornam-se mais invisíveis ainda. Só não para os olhos turvados após a descarga moral.  

Entre o “Sim” e o “Não” reside o “Saco cheio”.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Você, filho, a causa de quem casa

...Você, fragmento de união estável reconhecida em cartório, igreja e mesa de domingo. Você, solda das alianças douradas, movimento de mão que desenha assinatura do contrato de casamento, do cheque para a mobília e impede a timbrada nos papéis que oficializam a partida. Você: filho, filha, culpa, culpado, motivo, desabafo, problema, dilema, ingrato, algoz. Você, o “sim” do casamento e o “sim” do “ainda há tempo”. Laço que obriga o amor a amar, o pai a trair e a mãe a aceitar.

Causa e efeito, consequência, sequência de nove meses – ou oito, de repente -, você, mais uma vez você, mais 13 vezes, uma a cada ano, a cada vela apagada e primeiro pedaço dado para calar, e não adoçar, a boca. Você, orgulho de notas altas e estridentes, de “A” valendo mais que “C” e de gol na final do campeonato juvenil ecoando mais do que o chamado para o almoço. 

Você, na flor da adolescência, na dor na impaciência, no choro engolido por orgulho e no medo adquirido pelo mundo; você, desbravador de peles e pernas, acariciador de cabelos e egos, eternamente apaixonado por tudo o que não pode ter, mas pode tocar. 

Você, ingrato, que de filho passou a bastardo. Que da porta da rua passou a ser gaiato, pilantra, esperto demais pra caber numa cadeira de delegacia, disperso demais para ouvir quem te ensina, ingênuo demais pra conhecer a família da menina. 

Você e quantos mais de vocês para compor apenas o único realmente capaz de se entregar em escritas sem fé nem destreza? Você, eu.  

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Você, filho, a causa de quem casa



Você, diante do seu pai, da sua mãe. Antes, aconchegado no sangue, útero, na vontade que ainda não cabia no orçamento. Agora contabilizado, cotado, calculado e projetado para uma carreira promissora.

Você, fragmento de união estável reconhecida em cartório, igreja e mesa de domingo. Você, solda das alianças douradas, movimento de mão que desenha assinatura do contrato de casamento, do cheque para a mobília e impede a timbrada nos papéis que oficializam a partida. Você: filho, filha, culpa, culpado, motivo, desabafo, problema, dilema, ingrato, algoz. Você, o “sim” do casamento e o “sim” do “ainda há tempo”. Laço que obriga o amor a amar, o pai a trair e a mãe a aceitar. 

Causa e efeito, consequência, sequência de nove meses – ou oito, de repente -, você, mais uma vez você, mais 13 vezes, uma a cada ano, a cada vela apagada e primeiro pedaço dado para calar, e não adoçar, a boca. Você, orgulho de notas altas e estridentes, de “A” valendo mais que “C” e de gol na final do campeonato juvenil ecoando mais do que o chamado para o almoço. 

Você, na flor da adolescência, na dor na impaciência, no choro engolido por orgulho e no medo adquirido pelo mundo; você, desbravador de peles e pernas, acariciador de cabelos e egos, eternamente apaixonado por tudo o que não pode ter, mas pode tocar. 

Você, ingrato, que de filho passou a bastardo. Que da porta da rua passou a ser gaiato, pilantra, esperto demais pra caber numa cadeira de delegacia, disperso demais para ouvir quem te ensina, ingênuo demais pra conhecer a família da menina. 

Você e quantos mais de vocês para compor apenas o único realmente capaz de se entregar em escritas sem fé nem destreza? Você, eu.  

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Placeita e nasce

E quando a razão voltar para garantir o pão do próximo dia, deixando de lado as libertinagens do desejo, eu saberei que o amor não se extinguiu. Apenas resolveu se esconder na segurança das respostas previstas e das perguntas sem curiosidade. Sei que meu “sim” terá valor de “fim” e conversa nenhuma, por mais profunda que seja, conseguirá se criar em mim. Assim seguirei sem abrir mão daquilo que me fez – e me faz – perder a doma da escrita, da letra, da frase e da coerência: o dissabor.

Porque o sentimento sempre foi assim. Desde o choro que clamava por litros de vida vindos de seis (horas antes) que até então nem podiam ser imaginados (das). Dentro do útero, sob a pressão da parede de placenta, a fé se fazia em cada gota de alimento transportada por cordão umbilical. A fé era desconstrução de tempo, de fala, de esperança, era apenas o presente se manifestando em cada chute na barriga ou enjoo programado. 

E mesmo assim nascemos, mesmo assim saímos na seca pelo abraço do desconhecido, abandonando no mar de sangue e suor qualquer medo que pudesse nos privar do primeiro chamado de vida: o choro depois do parto, o mesmo que encheu seus (meus) pulmões de ar.


E Deus? E Diabo? E Além? E Paraíso? E Inferno? No útero dessa terra incerta e arrependida, vivida e curtida no sol diário e implacável, não saber é a bênção que te faz nascer. Que te faz chorar. E quem não chora não mama – a vida.