segunda-feira, 22 de julho de 2013

Tríade


Ela tirou meu azar no tarô. Seus dedos pesados de pedras sem valor acariciavam a ponta das cartas como se quisesse batizar cada uma delas com o próprio sangue - chupado após um delicado corte. Ritual lento e preciso, quase como carinho nas madeixas encaracoladas do destino; afago no abismo do não saber. E eu queria saber. Queria tanto que aguardei impaciente pelas muitas pragas daquelas lâminas envelhecidas.

Os Enamorados, A Morte e O Diabo. Todos invertidos. A paixão, O Fim e o Desejo. Todos negativos.

Na extremidade esquerda da boca, uma linha invisível parecia puxar-me os lábios já escorridos para baixo. Ela não precisou soprar seu hálito de velório para anunciar o sepulcro do meu futuro. Jazia ali toda e qualquer esperança tola de um dia ser algo a mais do que um andarilho.

- Nem o demônio tiraria esse jogo, rapaz.
- Então eu devo ter sorte.
- Se quer levar isso tudo na brincadeira melhor me pagar o que deve e sumir.
- Não sou engraçado. Não tenho humor. Falei sério. Devo ter mais sorte do que satã.
- E por que diz isso?
- Porque nem ele seria capaz de me amaldiçoar. Estou além de seus poderes.

A visão era nítida até mesmo para mim que do misticismo só conheço vultos e calafrios - todos derivados da bebida. Aquela tríade alertava para o caminhar até a boca do abismo, altar no qual a vida se casaria com a morte e passaria a ter seu sobrenome. No qual a vida deixaria de ser livre ou dona de si para então se aconchegar no colo macio do ceifador.

Os Enamorados

Martinez jamais teria conquistado espaço nos meus dias se antes de pagar a bebida não tivesse oferecido um cigarro. Os sinais eram simples: quando se oferece fumo a um desconhecido é porque espera dele algum laço feito pela fumaça densa e vagarosa, macia, ácida e envolvente. Mata-se o perfume para dar lugar ao cheiro do vício. E todo fumante identifica de longe o odor de nicotina. Por isso é que ele me defumou no tabaco. Pra fazer parte da minha sina.

Era um rapaz de joelhos firmes - seus passos faziam a madeira sob os pés ranger reumática - olhos petrificados num cinza desgostoso e lábios arroxeados, como se o frio da alma lhe congelasse o sangue. Por outro lado, sua voz tensionava a carne como descarga elétrica. Corria pelos quintos mais ocultos das juntas e pipocava numa ardência demoníaca. Chacoalhava o diafragma alheio sem nenhum respeito e descompassava o fôlego de velhos e novos. Comigo não foi diferente, mas acabou diferente.

Martina adorava beber. Nossa ligação veio pelos ossos. O excesso de álcool e a falta de apetite revelaram por debaixo dos panos de pele as curvas quebradas do traje de esqueleto que nos caia tão bem.

Mulher nenhuma, no ague de sua saúde e abundância, olharia para um farelo de pólvora como eu, sempre com cara de quem já foi queimado e nem ao menos gerou faísca. E que homem, por menos eu que fosse -, dono de músculos hercúleos, daria cama e corpo a uma gazela tão cansada da beleza que nunca lhe visitou por mais do que duas horas? Feitos de defeitos um para o outro.

Joshua era bem velho. Sua barba tecia as confissões do passado e se espalhava pelo rosto como mal presságio. Desenhava o mapa da morte para quem quisesse ver. E eu queria. Sua mão firme prendeu meus braços antes mesmo que o rasgo da adaga se transformasse em furo. Para evitar que a briga se tornasse carpete de sangue e vida expirada, sussurrou no meu ouvido:

- Você é magro e bêbado demais para bancar o assassino. Algema nenhuma servirá nesse par de pulsos finos.
- Talvez caibam então na sua língua de tora.
- Acho que você não está em condições de me desafiar. Mais um movimento e eu de quebro feito graveto.
- Mais um sussurro e eu te pago o que me resta de trago.

No dia do meu aniversário convidei os três para uma festa em casa. As velas alaranjaram as demais cores que insistiam em marcar presença nas camisas e vestidos sempre acompanhados pelo péssimo gosto de seus donos.

Martina jurou que éramos almas condenadas uma a outra. Pediu meu amor e toda a adega. Derramou sobre meu peito a palmas das mãos e sobre a palma das mãos os lençóis de tequila. Não conseguiu molhar meu coração.

Joshua entrou sem pedir licença e esqueceu que a intimidade do outro dia havia sido eliminada junto com a ressaca. Pegou no meu ombro como se erguesse um cabide e veio novamente confidenciar nos meus ouvidos os desejos que fingiu nunca ter ouvido. Ninguém jamais diria que aquele velho homem amontanhado em músculos pré-históricos precisava apenas de um sopro para revelar seu sufoco.

Por outro lado, Martinez nem sequer veio até mim. Estava aéreo, conectado a um plano que minha presença - soterrada na insegurança - jamais alcançaria. Andou, olhou para outras pessoas, bebericou e compensou toda a ponderação nas profundas tragadas que enchiam seu peito fumaça. Fui até ele, puxei assunto, e nada. Fui rejeitado. Então decidi encerrar a peleja.

Aceitei o amor de Martina. Ensopei-me com seu álcool, dancei no meio de todos e deixei que meus ossos se entrelaçassem aos dela. Joshua perdeu o controle e veio mais uma vez puxar meus braços - como se fosse a primeira vez. Martina lançou uma de suas melhores amigas em direção ao velho lobo. A garrafa de vodka explodiu em sua testa e ele logo titubeou. Recomposto após alguns segundos, voltou-se contra mim. Ergueu meus 48 quilos com facilidade e começou a me carregar como se fosse seu fardo.

Nesse momento, Martinez passou sorrateiramente pelas costas de Johua. Pintado numa frieza fora do comum, deslizou o cigarro por entre os dedos, deu uma forte tragada como se estivesse dizendo adeus e então enterrou a ponta em brasas no olho esquerdo de Joshua. A dor foi traduzia em urro e a vingança em murros. Marinez, rato como sempre, acinzentou-se e partiu camuflado, coberto pela poeira da velha sala que se desfazia em fúria e ira alheia. Eu, fora de mim e de casa, sentei diante da estrada para respirar. Martinez passou-me um cigarro e usou o seu isqueiro para acender a breve chama.

- Acho que você não é mais dono da sua casa. Pelo menos não nesta noite.
- Sou dono da rua então.
- Melhor não arriscar. O velho e a moribunda virão atrás de você.
- Pois que não venham pela frente, senão acerto um gume de cada faca na carne deles.
- Vamos, tenho espaço no meu canto.
- E quando entrou no meu canto, porque me deixou na esquina de sua atenção, à espera?
- Não sou homem de me entregar assim tão facilmente. Mas isso pouco importa, estou aqui agora. Vamos?
- Não, obrigado.
- Por quê?
- Porque só queria o prazer de lhe dizer "não" e provar que mesmo com toda a sua pose de "difícil", a carência afrouxou suas calças. Você não é homem porra nenhuma.
- Então você que morra naquela zona que chama de lar.
- Morro sim, mas com meu "sim". E você continuará eternamente com o meu "não".

A Morte

A friaca  foi implacável. Alimentou meu corpo com o próprio sangue que circulava até o coração e dele partia para o restante de mim. Secou-me. Morri na sarjeta, como bem merecia, entregue aos fios sujos de água que passavam descabelados pelo resto de calçada. Naquele instante eu a vi, toda de preto, com a pele mais clara do que o paletó de palidez que desde o falecimento passou a me vestir.

- Boa noite, rapaz.
- Boa n.
- Não completa o cumprimento?
- Só o básico.
- Pois bem. Você morreu, contaste a ti mesmo?
- Não. Estou vivo, estou me sentindo a mesma merda.
- Dessa vez é merda intocável, desprovida de cheiro e textura. Você morreu.
- Que seja. Quando parte o trem para o inferno?
- Para lá você não vai. Já está. No fundo da sua alma cresce o cancro do medo. E ela quem vai definir sua sentença.
- Medo? Cancro? Foda-se.
- Essa covardia fantasiada de arrogância e descaso é tão clichê. Seja como for, fiz meu trabalho. Agora não é mais comigo.
- E com quem é então?
- Teu medo vai guiar os passos até ele.
- Ele? Não vai mesmo me dizer o nome?!
- Só o básico.

O Diabo

Continuei sentado diante de casa, vendo os dias passarem assim como as pessoas. Joshua e Martina tiveram dois filhos saudáveis. Digo "saudáveis" com certa ênfase, uma vez que o fato de Martina ainda ter um útero que responda por tal nome soasse como milagre. E realmente, dizem que o nascimento é um milagre de Deus. Agora é de Martina também. Talvez até mais dela.

Martinez, por sua vez, parou de fumar para então dedicar seus dias à costura de calças. Tem fobia das que chegam embeiçadas. Cansou do silêncio de suas ideias e agora vive pelas esquinas, puxando papo com qualquer um - inclusive cães, galinhas, vacas e cactos.

Sem fome, sem sono e com uma vontade descomunal de beber e fumar. Era como se os vícios me alimentassem, de fato. Já que ninguém me percebia, decidi ir até o bar e encher a cara sem me preocupar com os olhares carrascais do balconista.

No canto esquerdo, perto do banheiro masculino, estava um rapaz jovem de pele azulada, nariz de anzol e boca andrógina que sorria e resmungava ao mesmo tempo. Os olhos ardiam feito sol, mas o resto de seu corpo parecia esquecido pela vitalidade. Abandonado num semblante que mais se parecia com a carcaça de um bode.

- Sente-se aqui. Do que você bebe eu já me banhei demais. Venha, tome um trago.
- Quando a esmola é demais, o demônio aceita sem olhar para trás.
- Conhece-me bem então.
- Só você mesmo para se sentar perto de um banheiro masculino e ainda sim feder mais do que ele.
- Vocês e essa mania de cheiros, cores e sabores. Por favor, poupe-me dos sentidos humanos.
- Quanto tempo vou ficar aqui e assim?
- Eternamente.
- E quanto tempo é "eternamente"?
- Quanto tempo você precisar para contar até que não exista mais número.
- Morri e é isso? Vocês, você e o tal Deus, travaram uma guerra gigantesca pra resumir a morte a isso?
- Bem, eu queria mais, porém não detenho o poder da criação.
- Vocês dois são bem patéticos. Nem ao menos passaram por uma vida humana, carnal. São incapazes de morrer.
- E você se acham melhor do que nós só pelo fato de ter morrido?
- Não, mas pelo fato de ter existido de fato.
- Nós também existimos!
- Claro, mas só até que a morte nos separe. Antes disso a vida camufla vocês. Desenha seu rosto na cara de um cabrito e as mãos de Deus numa cerâmica vagabunda.
- Como você é arrogante! Sabe que podemos condenar sua alma aos maiores sofrimentos, não sabe?
- Sei. Mas ao fazerem isso estariam eternizando a minha presença nas suas humildes memórias. "Aquele, o único, a qual aplicamos os piores castigos de todos os tempos". Sofrimento maior do que a lembrança ruim não há.
- É mesmo, e qual é sua lembrança ruim?
- Não te interessa.
- Cretino. Vamos, diga. De repente eu posso te ajudar a mudar isso.
- E aí vou me recordar para sempre da sua ajuda maldita. É isso?
- Pense, você poderá ser feliz novamente, mesmo que com a bonança venha também a minha marca, meu toque, meu cheiro insuportável. Vá, admita, é tentador não?
- Admito, é sim. Mas você tem razão. Se eu voltasse no tempo e mudasse algumas coisas, certeza que atribuiria tal ato a você. Sofreria eternamente com a certeza que fui ajudado pelo pior dos piores.
- Pois bem, eu te ajudo. Quer voltar no tempo? Eu rebobino as fitas do destino e te permito gravar novas impressões na sua sina. Aceita?
- Aceito!
- E em qual momento quer renascer?
- Só uma última coisa. Antes de ir, você tem cartas de tarô aí?
- Tenho todos os tipos de jogos comigo. Quer o quê?
- Quero que você escolha três cartas e eu as virarei.
- Perda de tempo. Sou imune ao que, indiretamente, também me pertence. Deus mesmo não se presta mais a jogar - indiretamente falando. Mas tudo bem. Vamos lá. São essas três. O que me diz?
- O Sol, A Roda da Fortuna e A Torre.
- Grande coisa.
- Nenhum humano tiraria esse jogo.
- Escolheu em qual momento devo te deixar?

(...)

Martinez passou-me um cigarro e usou o seu isqueiro para acender a breve chama.

- Acho que você não é mais dono da sua casa. Pelo menos não nesta noite.
- Sou dono da rua então.
- Melhor não arriscar. O velho e a moribunda virão atrás de você.
- Pois que não venham pela frente, senão acerto um gume de cada faca na carne deles.
- Vamos, tenho espaço no meu canto.
- E quando entrou no meu canto, porque me deixou na esquina de sua atenção, à espera?
- Não sou homem de me entregar assim tão facilmente. Mas isso pouco importa, estou aqui agora. Vamos?
- Sim, obrigado.
- Tão fácil assim?
- Você não sabe de nada. Mas eu posso lhe ensinar algo já de adianto.
- O quê?
- A desfrouxar suas calças.

Nenhum comentário: