quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Décimo terceiro arcano maior

Ajoelha. Pede, implora. Reza pra qualquer um. Fale todos os nomes em vão. Faça-se merecedor de todo o sofrimento que anda sentindo. Justifique cada faca cravada em seu peito. Depois disso, lave as mãos e o rosto, faça a barba e tire o gosto de café da boca com sua escova de dentes.

Rotina.

Inspira. Esse dia não lhe foi dado como presente, mas como fardo. Não agradeça por mais uma manhã. Fique em silêncio, pois alguém pode ouvir sua voz e querer conversar dentro do trem. Vinte e quatro horas dispostas a impor desafios que pouco fazem sentido para você. Expira.

Acomode-se. Alinhe os lembretes. Arrume a altura da cadeira. Arruíne-se. Anule-se. É perda de tempo tentar interagir com pessoas que nunca passaram pelo inferno.

O inferno em si mesmo. Uma sala reservada, cheia de prazeres e vícios. Uma cela divertida. O meu está aqui dentro de mim, dividindo espaço com os órgãos vitais. E o seu?

Saia pra fumar, puxe a fumaça, não puxe o assunto. Amargue as palavras e seque os lábios. Encha os pulmões de veneno e gaste a vida, antes que o filtro comece a queimar. Nicotina. Rotina.

Puxe uma carta. Isso. Mentalize a pergunta que quer fazer. Certo. Agora olhe para a lâmina diante dos seus olhos. "A Morte". Décimo terceiro arcano maior. O fim inevitável. A força invisível que impulsiona a vida. Mudança forçada. Destruição para que o novo tome lugar do velho. Não há nada que você possa fazer além de viver a morte. Morra quantas vezes for necessário. Pegue a lâmina diante dos seus olhos e...

Deite-se. Afinal, é tarde demais pra chorar. Amanhã você acorda cedo, menino.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Faísca



Não renego mais. Não sufoco o sentimento que aqui dentro gera calor e dor ao restante do corpo. Como faísca, como fagulha, ele busca a razão para então carbonizá-la sem piedade. Esse estalo de chama - que mal se sustenta na escuridão da minha caixa torácica - ilumina os pensamentos, ainda que timidamente. E lá na mente se faz quente. Revive-me essa tal combustão.

E eu sei que é amor porque - assim como uma vela - consegue resistir aos sopros do cotidiano. Alguns que saem de bocas amargas, outros que surgem dos lábios desejados. Sopros que tentam tirar de mim algo que só depende do meu querer, independente do ter. E dói, claro que dói. Qual é o fogo que não come? Qual é o amor que não consome algo para existir? O meu se alimenta de mim. Leva muito da minha paciência e paz, mas deixa no lugar uma falsa sensação de conforto, na qual se banham minhas frustrações - que quanto mais limpas, mais revelam suas cicatrizes. Não há vergonha em assumir que o passado virou receptáculo dos erros cometidos. Pago por eles até hoje. Neste exato momento, estou pagando antes que minha fagulha apague de vez.

No final das contas eu não queria ter a infelicidade de não sentir nada. Não queria ser uma cama vazia, feita pra se deitar com a ausência. Não, não queria e não quero. Mas um dia posso vir a querer. Só que esse "um dia" me custaria o dia de hoje e pensar no amanhã não me faz viver o agora. E eu preciso viver o agora.

Assim como a chama, necessito queimá-lo pra existir, de fato. Talvez eu seja privilegiado por não me render aos caprichos do coração. Sempre carente e insatisfeito, lido com ele como se fosse meu filho. Com cara emburrada, fica diante do bolo de aniversário que lhe comprei. Não demonstra alegria muito menos interesse no que vê diante de si. E é nesse instante que eu retiro meu isqueiro do bolso e acendo os "25". Aquela faísca, fragmento de estrela, faz amanhecer no rosto do garoto o sol dele de cada dia. Sem risada, mas com sorriso, sorriu-me. Enquanto na face do meu coração reluzia a tal chama, na minha escorria o rio formado pela velha chuva que me molhou por dentro.

E sei que com tudo isso o amor ainda vale muito. Ele não foi feito para ser tocado, assim como as labaredas também não. Ele foi feito para ser sentido, assim como calor que batiza o fogo. Assim como o ardor que sinto quando me aproximo demais de outras faíscas.

Não renego mais. Deixo escorrer, soprar, tremer e queimar tudo aquilo que dentro da minha essência se autoproclamou "sentimento".

Sinto muito. Muito mesmo. Chega até a arder. Se é que você me entende.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Esperar a lança pra por um fim em tudo isso

Parece que quando não temos mais nada a perder é que começamos a ganhar.

Perdi meus pais aos 6 anos. Eram tantas discussões, gritos e ofensas que acabei matando os dois dentro de mim e daí em diante não tive mais ligação nenhuma com eles. Habitávamos o mesmo espaço e, em alguns casos, dividíamos as mesmas necessidades. Apenas o básico pra continuar vivendo.

Ganhei tempo, idade, cigarros e bebidas. O dia só prestava para dormir. Trabalho era uma merda. Escola uma merda. Obrigações de merda. Tudo se resumia numa porcaria de vida repleta de lixo ao meu redor. A comida fedia, a água era turva e minhas unhas viviam sujas.

Nunca fui bonito. Magro, olhos grandes e cansados, cabelo ralo, dedos tortos, pernas finas e orelhas alargadas. Talvez meu sorriso fosse a única coisa "menos feia" a compor o que sou. No começo da adolescência isso foi um problema. Depois de um tempo eu nem me importava mais, estava tão chapado que era impossível me reconhecer diante do espelho.

A lista de motivos que me levaram a usar drogas possui frases universais do tipo: "Problemas familiares, falta de estrutura familiar, ausência de afeto familiar". Família em tudo. E em nada, ao mesmo tempo. Servem para uns, não para mim.

Sim, meus pais sempre brigaram bastante, mas carinho nunca me faltou. Comecei a me drogar porque quis me drogar. Porque não via ligação alguma com a vida e apostava todos os dias comigo mesmo que sucumbiria aos efeitos dos tóxicos em pouco tempo. Pelo visto estou perdendo até hoje.

Não fui influenciado por amigos. Todos eles tinham consciência das desgraçadas trazidas pelo uso de tais substâncias. Eram pessoas muito boas e empenhadas em alcançar o topo da montanha chamada "sucesso". Tinham belas namoradas e namorados, problemas do tipo: "não vou conseguir comprar um novo celular neste mês, mas no próximo...". Viviam, e eu achava isso fantástico de se assistir. Enfatizo: assistir, apenas. Como no cinema. A gente gosta porque sabe que não vai passar da tela. Só vai passar na tela.

Mudei. Parei de me matar com tanta frequência. Agora são só cigarros. E a vida melhorou? Não, mas consigo ficar quieto ao invés de despir as desgraças que assolam minha mente. Deixei de fazer isso em festas, reuniões de família, amigos etc. Infelizmente, tive que me tornar aquilo que sempre odiei: uma pessoa consciente.

Consciente do quê? Diga-me! Que mundo podre é esse em que a vida é imposta como máxima e mesmo na miséria - seja ela física ou mental - você é obrigado a cumprir toda a "agenda da felicidade estereotipada" e sorrir ou abraçar pessoas nos muitos feriados ao longo do ano? Minha pergunta não passa de uma resposta com ponto de interrogação. Fuga literária.

Sou eu quem habita o caos instalado nas bordas do pensamento. Arranho as paredes da minha mente como se fosse possível escalá-las. Deve haver um topo, um teto, algo que me deixe tão alto, mas tão alto que o ar me faltaria não pelos pulmões, mas pelas veias da razão. Faltaria-me razão o bastante para voltar ao solo da consciência e minha cara não mais ficaria afundada na lama.

No âmago do poço que se criou aqui dentro, encharcado seu fundo de lágrimas...
Fez-se assim, da minha alma, um mar morto. Onde os batismos de fogo contemplam a existência com o sono dos desistentes.

Quer mesmo saber qual droga é a minha favorita? A que mais me mata e maltrata o corpo? Sim, ela é bem fácil de se encontrar. Está em cada esquina. Em cada suspiro. Nos finais de ano e começo de semana. Na porta das escolas e universidades. Dentro dos hospitais. No interior das igrejas e templos religiosos. Ela está  no cartório, na lanchonete, no teto da sua casa e no chão do seu quintal...No seio da mãe. Na carteira do pai. Não é vendida. Ela simplesmente mente, é e está.

Essa droga tem nome sim. Esperança.



segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Morrendo enquanto se vive

Título fúnebre. Só o título, não se preocupe.

De repente, escutei uma música que me fez lembrar do passado. Clichê. Natural, estou vivo, como não passar por clichês? O som é triste, sim, e me faz tão bem...

Trouxe-me de volta a uma época em que eu ainda cultivava alguma esperança de viver o amor que escolhi para mim, mesmo sem ter sido escolhido por ele. Naquele tempo, bastava acordar sem o "não" como resposta definitiva para que a cabeça começasse a tecer infinitas histórias felizes, com direito a finais de semana na praia e jantares.

Porém, cá estou eu, sem amor. Mentira. Essas palavras só estão aqui porque tem um sentimento tão forte dentro de mim que nem mesmo negligenciá-lo fará com que seu impacto seja menor. É como se a melancolia fosse o combustível básico e o amor a deixasse aditivada. É, mais ou menos isso.

Veja, não foi tão fúnebre. Foi curto como o último segundo antes da morte.

Agora sim, fúnebre.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Laço das almas


Os fogos já estalavam no céu. Escuridão profunda. Sem bordas, sem mapa, sem linhas, apenas algumas estrelas. Mais um ano começava e eu nem ao menos tinha como acender o primeiro cigarro de 2013. Virei o ano com vontade de morrer mais um pouco. Nada de inédito.

Comecei a caminhar pela praia. Sentia o mar diferente. Espreitava-me cuidadosamente. Sabia que seu eu adentrasse em sua pele jamais voltaria. E se voltasse, não seria o mesmo. Mantive certa distância, mas tive que molhar meus pés com suas lágrimas salgadas. À noite ele lamenta. Reclama da solidão. Vira deserto e só conta com a companhia da areia, sempre lá, fiel.

Gritava dentro de mim a necessidade ancestral de ficar só. Confundir-me com os grãos espalhados pelo litoral. Abri mão dos abraços e sorrisos, dos votos e goles no vinho seco. Senti uma forte brisa me cortar o rosto e então tive a certeza que estava no caminho certo. Aquele que não sabemos aonde nos levará.

A cidade em que nasci estava longe, assim como os rostos que diariamente ornamentam meu calendário. Mas tive saudades, sim. Muita. Porém, mais forte do que a falta foi a necessidade de ter você aqui comigo. Veja, tudo o que sinto fica no silêncio mesmo. No máximo viram palavras, textos, relatos...

Não se pode ter tudo. Mas se pode querer tudo. Querendo ou não.

O cigarro ainda desfilava nos meus lábios. Até que vi aquela faísca vagando solitária, um pouco a minha frente. Três tentativas, nada de fogo. Na quarta, o fumo se rendeu às chamas, assim como eu me rendi àqueles olhos tão escuros quanto o céu.

Horas e horas de conversas trocadas no alto de uma pedra escorregadia. Aquela parte da praia era vazia de gente. Só restava a natureza e suas manifestações. As ondas já haviam se deitado e só nos sobrava a calmaria.

Sem apresentações corriqueiras, trocamos poucas confissões: nomes, signos e bebida favorita. Em seguida, uma mão toca a outra. Um braço encontro o ombro do outro. A cabeça repousa no peito e a alma se entrelaça com o perfume de maresia. Ali, atados, provando para o mundo que o compromisso está além - muito além - das promessas. Sem dizer uma palavra, o beijo sussurrou em meus ouvidos um "eu te amo" puro, sem domínio, livre dos formatos. E eu amei.

Nunca mais nos vimos. Mesmo assim, ainda te vejo (sinto).

domingo, 13 de janeiro de 2013

Se habita em mim, pesa nos pulmões



A borda daquele litoral não passou de um detalhe. Detalhe esse que me trouxe você, distante pela física, mas colado ao meu lado pela metafísica. Era de éter que se fazia nosso laço. Ambos atados pela brisa da manhã que arrepiava a pele queimada. Descasquei o peito e nele encontrei nosso recanto. Nosso lar. Meu coração, teu refúgio.

Tive que sair sozinho. Comprar mais cigarros e menos motivos para viver triste. Amargar a boca logo cedo e tão cedo deixar de acreditar que a vida se baseia no medo de morrer. E que dor será essa que de tão forte me fará sofrer mais do que pela saudade de ti, que me corrói a cada segundo? Não vi razão para não ir e pesar meus pulmões com a fumaça dos nossos momentos. Queimei na ponta da toxina parte da nossa sina: sempre assim, atados, presos dentro um do outro, correndo pelas veias, enganando os batimentos e dispersos no ar - quando fora do refúgio estivermos.

Andei muito. Do meu lado esquerdo o mar de areia, modelado pelos pés de ontem. Do lado direito, o oceano, diretamente acomodado no meu ombro, sussurrando em meus ouvidos os segredos mais profundos. Ouvi tudo, sem dar um piu. E falei de você para ele. As ondas quebraram.

Eu me quebrei. Vi que não havia nada além da minha imaginação criando você, a outra metade em mim. Falso, como a inocência da maré, esse amor me cobriu silenciosamente. Agora, afogado, mal posso respirar por conta própria. Não é culpa do cigarro. É culpa sua.

Nunca existiu nada disso que aqui escrevi. Tudo foi fruto de sussurros, quebrantes, marcas na areia e saudade. Saudade daquilo que eu nem vivi.






sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Lobo em mim

A comida não tinha gosto. Não tinha cheiro. Não tinha nada além do espaço do prato. Espalhada, parecia eterna. Garfada atrás de garfada e nada de encher a barriga. Só enchia minha cabeça de desgosto.

Enquanto isso, meus pais continuavam imersos em sua esfera alheia a tudo, inclusive ao casamento, ao amor e a todos aqueles votos feitos no altar. Mas comiam como lobos.

A faca na mão esquerda pesava tanto... Era como se um magnetismo atraísse sua lâmina para os vasos em meu pulso. Escorria na mesa o sangue que tingia a superfície de madeira com aquele vermelho queimado, insatisfeito e cheio de nicotina. Parei de comer para ir fumar e no caminho até a porta escutei alguém bater.

Sete batidas, bem pausadas e um suspiro gélido. Eu não quis saber quem era. Fiz questão de ficar em silêncio, na espera de que a criatura desistisse de entrar em minha casa. Vi suas unhas rachadas por debaixo da porta. Era temporada de caça e minha casa virava refúgio para logos, raposas, veados e corvos. Meus pais odiavam tais criaturas e por esse motivo as devoravam no jantar, no almoço e no café de amanhã... e da manhã de amanhã... e depois...

Lobos devorando lobos. A fome de si mesmo. A vontade de se sentir, de se saborear. De saber qual é o seu gosto e do que gosta. De salivar ao ouvir o próprio nome e ser capaz de saciar a própria anemia. Eu, meu próprio lobo, a fera domada que clama todas as noites por nomes e corpos desconhecidos. Uiva solitário, seja na floresta esbranquiçada ou no banquete nosso de cada mentira. 

No sétimo dia, decidi que era hora de abrir a entrada para a besta e seus caninos. Vagarosamente, fitou-me com seus olhos negros. Analisou minha carne como se visse nela algum valor. Nenhuma gota de saliva, apenas o faro a me varrer. Coberto por uma densa poeira de mim mesmo, sacudi os braços e acariciei sua cabeça.

Servi os pratos, dispensei os talheres e então tive a refeição das refeições. Meus pais, que tanto me encheram de um vazio acinzentado agora eram saboreados por aquele lobo desconhecido. Tão desconhecido que até pude chamá-lo de irmão. Éramos os dois ali, a saborear a carne macia que um dia me deu leite, conforto e casa.

O lobo em mim devorou laços falhos desenvolvidos durante anos e anos de âmbito familiar. Eles não tiveram culpa de nada. Apenas a natureza que se manifestou.

Um dia para a caça. Todos os outros para o caçador.

Pobresia


Que porra de poesia
de métrica fabricada
de disritmia calculada
que trança a língua
na ponta dos dedos
finge beleza e finge fraqueza
Encanta quem não tem
domínio da leitura
Mas que só lê pra libertar
Pra quem se diz concreta
Larga a régua e a caneta
Se rabisco é ensaiado
Perde a graça o verso versado.
E de concreto só o chão
Pra cara bater antes mesmo do coração.