sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Lobo em mim

A comida não tinha gosto. Não tinha cheiro. Não tinha nada além do espaço do prato. Espalhada, parecia eterna. Garfada atrás de garfada e nada de encher a barriga. Só enchia minha cabeça de desgosto.

Enquanto isso, meus pais continuavam imersos em sua esfera alheia a tudo, inclusive ao casamento, ao amor e a todos aqueles votos feitos no altar. Mas comiam como lobos.

A faca na mão esquerda pesava tanto... Era como se um magnetismo atraísse sua lâmina para os vasos em meu pulso. Escorria na mesa o sangue que tingia a superfície de madeira com aquele vermelho queimado, insatisfeito e cheio de nicotina. Parei de comer para ir fumar e no caminho até a porta escutei alguém bater.

Sete batidas, bem pausadas e um suspiro gélido. Eu não quis saber quem era. Fiz questão de ficar em silêncio, na espera de que a criatura desistisse de entrar em minha casa. Vi suas unhas rachadas por debaixo da porta. Era temporada de caça e minha casa virava refúgio para logos, raposas, veados e corvos. Meus pais odiavam tais criaturas e por esse motivo as devoravam no jantar, no almoço e no café de amanhã... e da manhã de amanhã... e depois...

Lobos devorando lobos. A fome de si mesmo. A vontade de se sentir, de se saborear. De saber qual é o seu gosto e do que gosta. De salivar ao ouvir o próprio nome e ser capaz de saciar a própria anemia. Eu, meu próprio lobo, a fera domada que clama todas as noites por nomes e corpos desconhecidos. Uiva solitário, seja na floresta esbranquiçada ou no banquete nosso de cada mentira. 

No sétimo dia, decidi que era hora de abrir a entrada para a besta e seus caninos. Vagarosamente, fitou-me com seus olhos negros. Analisou minha carne como se visse nela algum valor. Nenhuma gota de saliva, apenas o faro a me varrer. Coberto por uma densa poeira de mim mesmo, sacudi os braços e acariciei sua cabeça.

Servi os pratos, dispensei os talheres e então tive a refeição das refeições. Meus pais, que tanto me encheram de um vazio acinzentado agora eram saboreados por aquele lobo desconhecido. Tão desconhecido que até pude chamá-lo de irmão. Éramos os dois ali, a saborear a carne macia que um dia me deu leite, conforto e casa.

O lobo em mim devorou laços falhos desenvolvidos durante anos e anos de âmbito familiar. Eles não tiveram culpa de nada. Apenas a natureza que se manifestou.

Um dia para a caça. Todos os outros para o caçador.

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