sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Nigrosina



O cigarro. Mais convidativo que a comida no prato. Era o restante de algo que já havia restado de outros restos, no canto da geladeira – que mais parecia uma gaveta de necrotério. Eu comia pra não sentir dor no estômago, mas ela, a úlcera, explodia da mesma forma. Minha vida patética de escritor só poderia durar o bastante para garantir algumas boas páginas escritas. Nelas, a desgraça de uma vida sem graça. Tão ordinária quanto essa falsa chuva que cai e não mata o maldito calor de verão. 

O livro seria sobre qualquer coisa. Não teria tema. Ou melhor, até tinha, só que ele não justificava a publicação nem mesmo a compra do publicado numa banca falida com cheiro de mijo e luz hepática. Eu estava escrevendo sobre o vício de escrever. Sobre a droga que havia se tornado a tinta da caneta e como o cheiro de papel envelhecido entorpecia minhas ideias. Era o placebo que eu tomava na fé de que fosse mais parecido com veneno do que com remédio diluído no café. Covarde demais para me matar, esperava que alguma força invisível tomasse coragem e fizesse o trabalho. Óbvio que era mais uma esquiva psicológica arquitetada por meus muitos Vinicius. 

Quem escreve é o Vinicius que abandonou a infância aos 3 anos. No dia em que caiu naquele buraco de barro, que viria a ser o futuro encanamento da minha humilde e imunda casa. Caí e lá fiquei. Parado e com medo de que o mundo fosse alto demais para que me aceitasse de volta em sua superfície. Sujo de terra, ralado e, acima de tudo, muito envergonhado. No buraco ficou a criança. Na superfície, a raiva. Foi aí que aprendi o quanto me matava sentir vergonha de mim mesmo. De todas as maldições, a pior delas se fantasiava de “eu” diante do espelho, rindo do que via. Rindo do reflexo pífio de que um dia havia sido o “Vinicius cheio de orgulho”. 

Com o tempo outros surgiram, alguns se fundiram e no final das contas me fiz em dois. Vinicius e Veny. O azedo e o distante. O depressivo e o agressivo. O sonolento e o autodestrutivo. Mas ambos insatisfeitos. Ambos teimosos e relutantes. Ambos desfocados e deslocados. Espectros no cotidiano daqueles que muito fingiam – e fingem - compreender tais entidades.  

Fui lendo muita coisa e aprendendo a me entender em cada fragmento de história. Não havia santo que deixasse de causar em mim a sensação de que ainda havia algo de bom dentro do meu corpo, mesmo com pulmões tingidos de cinza e sangue frequentemente adulterado. E quanto aos demônios? Bem... Todos eles sabiam meu nome, conheciam meu corpo e amaldiçoavam minhas conquistas. Eu os mantinha, pois precisava daquela culpa, da sensação de ser errado mesmo sem fazer nada. Os amaldiçoados são enfermos protegidos pela própria doença. Não morrem. Precisam viver eternamente para sofrer eternamente. Maldição é isso. Aprendi com os humanos. 

O cigarro continua queimando e eu não consigo tragar mais nada... A brisa cortou o apartamento antes mesmo que os vidros cortassem meus dedos. O copo caiu e eu pouco me importei. Dopado pelas frases, deixei que minha atenção continuasse imersa no eterno gozo da composição de parágrafos. Descia de leve a ponta da caneta pelas linhas retas e transformava aquela simetria em curvas úmidas de letras sugestivas. Qualquer palavra se fazia como tatuagem num corpo tímido e desajeitado. Escrevia para sentir os pulsos doendo. Sem cortá-los, sem fazer mais sujeira do que a vodka já havia feito. Por não exalar cheiro, deixei-a ali, marcando o carpete. Encerrando o porre. 

Mais música... sempre peço mais música a mim mesmo. Na adolescência, um dos Vinicius descobriu o peso das guitarras e sutileza pessimista do contrabaixo. Desde então, usou a música como trilha sonora do eterno seriado chamado “vida”. Não ouvia mais as pessoas no trem e ônibus. Encontrou paz num tipo diferente de silêncio. Aquele que se ouve e não se escuta. 

Enquanto terminava mais um capítulo, enxerguei antigos amores perdidos nos recortes e fotografias que a nostalgia havia feito questão de guardar. Abri minha própria caixa de Pandora e dela libertei os males do amor. Amor platônico, um Mefistófeles que habita o coração; Amor Possessivo, rei das moscas que Belzebu mandou para devorar a alegria; Amor Inseguro, travestido de Lilith; Amor Pagão, o Lúcifer que rejeitou as regras da casa, da mãe, do pai, da sociedade e saiu na rua de mãos dadas com Miguel, seu algoz...

 Assim que a inquietação me dominou e não mais sentira vontade de escrever, cheguei à conclusão que há poucos instantes havia fugido das minhas reflexões: agora sim consigo tragar outro cigarro.

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