quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Boca, dedos, língua e olhos



Ruptura

Reúna todos os pedaços da ruína que você se tornou e rua. Rua para as pernas atrofiadas de quem não sai de casa, desconfiada, e fica enfiada nas almofadas com cheiro de cigarro. Acha a agulha de costura no meio da pele, faz um ponto pra fechar a ferida. Marca um ponto por ter fechado a ferida. E sal, muito sal pra ajudar na cicatrização. Religa os pontos com linha preta. Da ruína à malha de si mesma. Retalho por retalho, ela malha a si mesma. 

Enjoei da escrita propositalmente côncava. Cansei das palavras de confissão que prestam serviço ao falso bom-senso nosso (meu) de cada dia. Acostumei com o gosto amargo do cigarro e agora que o maço acabou só me resta amargurar outra ponta. Não a da língua. Nem do fumo. Dos dedos mesmo. 

Asfalto, calor, ar seco e a boca luta pra se manter úmida. Também luta por outras causas. Luta pra poder falar, luta pra se manter calada sempre que puder, luta para ser beijada e luta para dizer adeus sem ter que trair o coração. Essa boca acorda todos os dias comigo. Boceja, banha-se; perfuma-se; alimenta-me e vai. Vai vestida de lábios para mais um dia de asfalto seco, calor no ar e paladar seco. 

Olhar distraído de mentira. Finge que está preso nas páginas do livro recém-adotado, mas não tira os olhos dos outros olhos. Olha pra muita gente, pensa sobre toda essa gente e tem vontade de ficar, casar, brigar por causa do banheiro todo molhado, reatar... E se for pra ser, tem que ser olho no olho. Olho, globo do corpo, buraco na parede da alma, diafragma sem foco manual. Seu foco é etéreo. Quando se interessa, ajusta as lentes pra não atraiçoar o coração com ilusão de ótica. Ou ilude, mas não se responsabiliza pela interpretação. Nem depressão. O que os olhos veem é o que o coração luta pra não sentir. Porém sente. 

Ligamento

Boca, dedos, língua e olhos. Tudo junto na tentativa de ser algo. De ter peso, massa, importância, existência. De ter nome, de ser batizado e achar alguém pra chamar de hora em hora, sem pausa, sem desculpa, sem ter que marcar encontro. Alguém pra beijar a boca, entrelaçar os dedos, morder a língua e olhar nos olhos. Tudo simples. Tá tudo no corpo, já veio assim, a gente é que se censura. Passa tempo demais tentando achar desculpa pras vontades e repulsas.
O corpo morre. Vale lembrar.

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