Eu tinha todos os motivos para não levantar da cama. Todos
bem ensaiados, organizados dentro da minha cabeça. Não seria mais um dia e sim
menos um. De tão ensaiado que estava, acabei perdendo a vontade de me anular.
Quando percebi já estava sobre meus próprios pés, olhando pela janela e
admirando a chuva.
Dias atrás eu havia decidido partir. Partir de mim. Mas
parte do que sou gritou, berrou, buscou algo no qual pudesse encontrar firmeza.
Li em diversos lugares que isso se chama “instinto de sobrevivência”. Minha mãe
dizia que era deus ou algo do tipo. Eu acho que foi medo mesmo.
Medo de não ter mais a chance de arriscar. De nunca mais
sentir o gosto bom que surge depois de tempos sentindo apenas o sabor amargo da
decepção. É como ressurgir das próprias cinzas, mas não ser mais o mesmo.
Aquele corpo não me servia. Eu não cabia dentro de mim, por isso consumi cada
parte, cada canto, cada dobra do recipiente em que fui colocado. Refiz o parto
e as partes.
Declínio. Subida. Estabilidade. Instabilidade. Declínio.
Subida. Instabilidade. Estabilidade. Declínio. Instabilidade. Subida.
Estabilidade. Queda.
Sai para andar. Caminhei tanto que se traçasse uma linha ela
acabaria com a ponta do lápis ou a tinta da caneta. A chuva me acompanhava. Tomei
um banho como há tempos não tomava. Daqueles que salga a boca com o tempero das
lágrimas. E eu chovi. Chovi como não chovia há tempos. Não tinha mais você, nem
minha família nem se quer um telefonema me cobrando os capítulos do livro.
Apenas eu e a chuva. O declínio da temperatura fez a pele estremecer. Ainda
havia vida em mim. Mesmo eu vivendo tão pouco.
Subida após subida, só me restava o horizonte com cara de
quem tinha acordado há pouco. Não cansei. Não tive sede. Não senti dor. Algo me
puxava. Fui atendendo ao chamado sem nem imaginar de onde vinha a voz. Vinha de
mim. Alcancei o alto de um morro e nele me sentei. Sob a luz avermelhada
estavam aquelas pedras gigantes. Eu estava triste. Tão triste que mal soube
interpretar tal momento. Foi então que minha mente se desligou. E eu,
personagem de tantas histórias, tornei-me o escritor. E ele escreveu:
“Este espaço, este lugar, este fragmento de página é
justamente a morada de tudo o que existe dentro de mim. Algumas coisas cabem
perfeitamente nas palavras aqui escritas. Outras se escondem nos truques que
uso para redesenhar minha razão, minha realidade e meus dias. Passo da conta.
Das linhas. Passo e volto sempre para visitar um velho amigo, esteja ele dentro
ou fora de mim.
Quando pequeno, minha paixão era o desenho. Papel carbono,
folhas em branco e o universo todo de animais e coisa para serem rabiscadas. Estava
ali parte do ‘eu’ que ainda hoje dá seus pitacos. Mas ele era apenas a prévia
do que viria. Continuei amando os desenhos, principalmente quando aprendi a desenhar
letras... e palavras... e histórias.
Depois veio a escola para domar – ou tentar domar – os cavalos
da minha imaginação. Deram pontos, vírgulas e uma vasta lista de regras a serem
seguidas. E eu as seguia, não por obrigação, mas porque elas adornavam o corpo nu
da escrita. Em alguns casos, vesti a minha com roupas formais. Em outros,
deixei ela nua, como veio ao mundo. Registrei dias em que ela quis fazer as
próprias roupas. Deixei. A gente cria para o mundo, não para nós mesmos, não é?
E cá estou, declarando-me. Declarando meu amor por todas as
orações que deixei aqui. São preces que meu espírito fez no silêncio de seu corpo.
No silêncio da minha essência. Estas rezas que me acompanhavam bem antes do
parto. O legado, a doutrina, os dogmas de um deus vestido de menino, magro e
tímido, que preferia brincar sozinho. Esse deus que já me salvou de muitas
enrascadas e que encheu meu copo até que a pressão evaporasse antes mesmo do
álcool. Eu, meu deus. Meu deus. Meu eu. Eu.
Talvez hoje eu ainda use a escrita como placebo. Ainda me
faz efeito. Pílulas de ilusão. E as justificativas são bem simples: aqui eu sou
amado por quem não me ama; mando num mundo em que não existe dono; desafio o
deus dos homens; louvo deus nenhum; confundo a mente – tanto a minha quanto a
sua; refaço minha história; lavo as mágoas; planto as expectativas; colho das
frustrações; e nunca abandono a capacidade que tenho de te prender aqui. Seja
lá quem for já está familiarizado com esse texto. Comigo. Como amigo. Ou amiga.
É pra se perder e fazer desse texto seu. Eu já fiz o meu.
Neste momento, observo as pedras gigantes sob a luz
vermelha. Eu, o escritor dessa história, rendo-me ao personagem e faço dele a
minha jornada."
2 comentários:
Fantástico! Pões em palavras aquilo que às vezes quero dizer e não arranjo maneira... Fantástico, mais uma vez.
Obrigado pelo comentário e por me ler.
:)
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