terça-feira, 27 de novembro de 2012

Lá do outro lado



Hoje, não vou trocar de roupa. E vou sair sem rumo. 

Tô com vontade de ver a cidade, olhar bem pra cara dela pra sentir se ainda me traz algum bem. Quero mesmo é esquecer de casa. De tudo e todos. Pode ser que eu morra nesse rolê. E se for assim, tudo bem. Já que ninguém nunca voltou pra dizer como é do outro lado, então eu vou inventar meu próprio relato.

“A pancada foi bem na nuca. Senti o sangue quente escorrer e depois nem pernas, nem braços doeram mais. Foi assim que eu apaguei. 

Quando abri os olhos estava no mesmo local. Cercado por várias pessoas. Mas elas mal me observavam. Foi então que duas delas vieram até mim e disseram que não havia acontecido nada de grave. Apenas um susto. Não é assim que se diz? 

Continuei caminhando até chegar na Praça de Prata, onde eu sempre passava as tardes. Tudo normal. Alguns cigarros, poucos carros... quase ninguém. Tudo certo. Queria paz naquele resto de dia. As coisas em casa estavam realmente complicadas. Minha mãe chorava todos os dias e meu pai só piorava. Piorava de postura. Não de saúde. Uma pena. 

Foi então que um garoto me chamou a atenção. Ele era idêntico a mim. Só que na versão criança. Simplesmente igual, até mesmo as roupas que eu usava. Levantei e fui até ele, mas não consegui alcançá-lo. Correu. E quando percebi eu estava em outro lugar. Achei que tivesse sido efeito da pancada na nuca, mas não. O cheiro era real, as cores, as vozes... eu estava no quintal de casa,. Só que não era o mesmo espaço de hoje. Era o de ontem. Ou melhor, o de anos atrás. 

Minha mãe, jovem e sorridente, pendurava pequenas peças de roupa no varal enquanto meu pai trocava de discos. Saia Gilberto Gil pela janela da sala e entrava Jor Ben Jor pela porta da cozinha. O garoto que encontrei na praça balançava entre as árvores, segurando um galho verde de “Dama da noite”. Até o Rink estava lá, pastor alemão capa preta que minha avó tanto amou. 

Foi então que a curiosidade me fez entrar em sua casa. Imediatamente fui envolvido pelo cheiro de comida caseira. Cheiro nada, perfume. Mas ela não apareceu. Nem sinal da matriarca que já havia nos deixado. Nem tudo era surreal. A morte dela, por exemplo, ainda era bem verdadeira.
Meus pais pareciam adorar aquele pequeno garoto. Ele ficava perdido na imensidão da horta, descobrindo um novo mundo dentro dos muitos mundos contidos ali. Eu gostei de tudo aquilo... Já nem me preocupava mais com a razão ou sentido das coisas. 

Olhei para o céu e as nuvens carregadas tapavam o sol. Ele escorria aflito por frestas macias até alcançar o chão – malhado de luz como uma vaca leiteira. 

Voltei os olhos para a casa e já não estava mais lá. Num quarto em construção, as paredes rústicas só não eram mais brutas porque traziam o tom alaranjado dos tijolos e isso quebrava a seriedade. Tons quentes para um lugar tão abandonado. Olhei bem... cada canto... o corredor... a janela.... Sim, era o meu quarto! O início dele, pelo menos. Fui para a porta e antes que conseguisse descer as escadas vi dois vultos bem próximos um do outro. Aquele jovem – de uns 14 ou 15 anos – tinha o mesmo porte que o meu, quanto tinha aquela idade. Ele usava óculos de armação preta e grossa, tinha muitas espinhas – com uma sutil luz de vela eu pude reparar bem nos rostos – e um cabelo horrível. Tipo topete, só que com gel barato. 

Na sua frente estava uma garota de cabelos bem longos e escuros. Escorridos. Ela já tinha o corpo bem desenvolvido e parecia se encantar pelo moleque mirrado à sua frente. 

Como num flash os dois selaram os lábios. Foi rápido o bastante para que ele pulsasse como nunca , a ponto de jogar os óculos no chão. E ela se sentiu segura. Ficou relaxada. Foi intenso o bastante para que eu sentisse uma saudade enorme do meu primeiro amor... Aquele que me deu o beijo mais esperado de todos. O primeiro. Dessa vez, fui eu que fechei os olhos. 

Quando abri, estava novamente na praça. Nem garoto, nem moleque, nem pai, nem mãe. Um cheiro forte de rosas se escondeu em minhas narinas. Senti que o perfume brotava do meu lado. Virei a cabeça lentamente. Lá estava ela. Minha avó.

Dona Maria Anita, com seu vestido azul escuro, floreado de lírios brancos. Tão brancos como seus cabelos curtos e bem alinhados. Ela não disse nada. Tocou minha mão e mais uma vez apaguei.
No fundo da cabeça, escutei uma voz dizendo: ‘A gente é eterno enquanto viver na memória de quem nos ama’.

Ô vó... Acho que entendi. Eu me vi em todos esses momentos. Hoje, sou eu que vivo pra sempre.” 

O “outro lado” é o do coração mesmo. Num tem mistério.

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