domingo, 10 de fevereiro de 2013
O diabo e o tempo
O sono se foi. Olhos fechados e milhares de imagens dentro da cabeça. De repente, corpo, cama e travesseiro se tornam quentes demais. A paz se foi.
Desci as escadas lentamente, sentindo de longe a presença que esbarrava no silêncio da casa. Não imaginei que ele viria naquela noite. Quando acendi a luz da cozinha meus olhos se depararam com seu velho casaco preto. Havia muito para se conversar.
- Disse que não demoraria a voltar.
- Disse mesmo. E aí está você, na busca pelas migalhas que sustentam teu império.
- Não sei o porquê de tanta agressividade.
- Insônia. Fico irritado quando não consigo dormir.
- Imagino. Também imagino que você anda dormindo pouco ultimamente, certo?
- Sim. A cabeça não para. Já tentei de tudo. Drogas, chás, terapias... Até rezas.
- Por favor, não seja ridículo. Rezar? A que ponto chegamos?
- Você não está ajudando. Faça um café para nós.
- Tudo bem. Mas sem açúcar.
- Sem problemas. O amargo está de bom tamanho.
O café perfuma a pele. Desce pela garganta queimando o hálito. Escuro demais, não se mistura com o sangue e desvia o caminho das veias. Faz sua própria rota pelo corpo, acorda os músculos, atormenta o estômago, desperta o sonolento coração e busca abrigo no cérebro. O café censura a febre. Faz-se quente o bastante para reanimar a alma. Tinge-a de preto.
- Bem, você sabe o motivo da minha visita. Não temos muito tempo.
- Sei sim. Mas não mudei de ideia.
- Nem queria que mudasse. Mas, é importante você saber que não haverá mais volta. Lá, o tempo não existe. Muito menos resiste.
- Que seja. Ela será toda sua. Assim foi o trato, não é mesmo? Você me daria o sabor daquele amor e eu lhe entregaria minha essência. Trato é trato. Eu tive o que pedi.
- Nunca teve, de fato. Sabe que lido apenas com ilusões. Ele nunca te amou de verdade. Ele amou sua casca, seus artifícios, sua personalidade. Entretanto, nunca chegou tão fundo a ponto de enxergar seu âmago.
- Eu vivi momentos felizes. É o que importa.
- Não. Você sabe que não. Eu só lhe dei mais uma dose do seu veneno favorito. Sabe, nada pessoal, mas é minha missão. Missão, é esse o termo que usam, correto?
- É. É sim.
- Pois bem. Acabei de dizer que não cumpri totalmente o nosso trato, então ainda há uma chance de você continuar aqui.
- Não quero. Não há castigo pior do que vagar em um mundo que não nos recebe a cada manhã e não nos nina a cada noite. Não durmo quando a lua chega, cheia. Não desperto quando sol boceja, alaranjado. Percebe quantos "não" na minha fala?
- O que for pior para você é melhor para mim. Entenda, eu sou o tal mal necessário.
- Dispenso apresentações. Você precisa de mim tanto quanto eu precisei de você.
- Isso é verdade. Nem eu sou capaz de acumular um universo inteiro dentro do peito. Realmente, preciso de você.
O vácuo preenche o vazio. Infla o peito e encontra espaço entre as costelas. Folga suas longas asas por debaixo dos pulmões e lá se cria. A anulação. O ar dos sufocados. Espaço inutilizado e impossível de ser preenchido, pois o excesso de ausência faz das cavidades a morada do nada. O vácuo evita o vivo. Faz-se frio para disfarçar as mágoas.
- Já que você não faz questão alguma de aproveitar os últimos momentos aqui, levarei o que é meu por direito.
- Fique à vontade.
- Mas antes queria que você fosse franco comigo. Em nenhum momento você temeu nosso acordo?
- Temi.
- Ah, sabia! Então existe arrependimento dentro de você.
- Não. Sem arrependimentos, como já deixei claro. Meu medo era só meu. Medo de mim. De ter que continuar aqui. Entenda, eu quis perder tudo. Quis deixar que você fosse o vencedor. Tudo isso por razão nenhuma. A vida me levou qualquer justificativa. Qualquer vontade de argumentar contra suas imposições. Contra o destino.
- Que seja. Cansei dessa conversa. Vamos lá, está na hora de partir. Mostre-me o que é meu, anda.
- Aqui está. A caixa de carvalho e a chave.
- Excelente! Vamos abri-la logo. Quero ver o que você esconde aí dentro e que já é meu!
- Fique à vontade.
A caixa de carvalho guarda o coração. Madeira que chora travestida de pedra. Range mesmo sem dentes. Rústica, acolhedora, num tom marrom que pinta a imagem do conforto e do aconchego. Aquele abraço de mãe. Aquele chacoalho de pai. A segurança. A residência. A essência. Seu interior é vermelho como sangue. O artefato dos enamorados. Espólio dos amantes. A caixa de carvalho escraviza o amor. Faz-se amiga para transmutar apego em apelo.
- O quê?! Mas o que é isso?!
- É isso. Só que o "isso" não existe.
- Vazia? Impossível?! Você respira, come, fala, anda! Está vivo! Por que não há nada aqui dentro?
- Porque nunca houve nada dentro de mim. Eu sou o reflexo da sua frustração. Sou a linha que divide o divino do profano. Sou nulo por natureza. Tentei me preencher com o amargo do café, com o vazio do vácuo e com o amor que negociei com você. Mas minha caixa continuou anêmica. Do criador eu exigi um sabor para minha vida, mas recebi apenas aquela água negra. Dos homens tentei buscar preenchimento com as substâncias químicas e prazeres mundanos, porém só aumentei o tamanho do universo solitário que se expande debaixo do meu peito. E de você eu quis o amor. Quis que me vendesse tal sentimento. Blefei. Coloquei em jogo um coringa marcado. Não há nada aqui para nós. Eu sou aquilo que não existe nem resiste. Eu sou o tempo.
- Maldito seja! Você sempre esteve por perto.
- Perto o bastante para ter sido, ser e vir a ser. Infelizmente, todos me tem por um período, usam a mim sem se importarem com o que sou. Gastam-me e depois de cometerem todos os erros possíveis, imploram pela minha volta. Esquecem-se que eu só faço sentido no presente. Bom, agora preciso ir.
- Para onde?
- Vou dormir. O sono chegou.
- Mas o tempo não para, como você pode dormir?
- Só existe uma forma de aceitar todas as chagas que a vida impõe...
- E qual é?
- Dando tempo ao tempo. Boa noite.
- Vá para o inferno!
O relógio educa o tempo. Aos ponteiros, a ponta que aponta o "quando". O toque eterno e ritmado que marca apenas aquilo que passou. O relógio não deixa O Tempo dormir. Sempre alerta, desperta com ou sem despertador. Há tempos que O Tempo não encontra um segundo de paz. Sua mente não para. Orgulhoso demais para voltar. Medroso demais para avançar. Condenado a viver sob as vontades da relíquia dos condicionados. O relógio adianta as horas quando há amor. E retarda a passagem dos dias quando há dor. Faz-se senhor do tempo, do café, do vazio e da caixa de carvalho. Da dor, do dissabor, da angústia e do amor.
Pontualmente desagradável.
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