domingo, 11 de novembro de 2012

Tempo o insuficiente

Fiz minha mãe chorar. Fiz com que ela visse em mim um abismo tão profundo que seus olhos, feridos pelas cataratas do tempo, cegaram-se antecipadamente. Ela tentava me alcançar de qualquer jeito, mas eu já estava distante demais. Nem mesmo o chamado do amor foi capaz de me fazer recuar. Saltei dentro de mim mesmo e quando percebi, estava colado ao chão. Inseparáveis... eu e o fundo do poço. Lá do fundo dos m(s)eus olhos.

Entrei na sala e percebi que ele me observara dos pés à cabeça. Sem fazer questão de ser discreto. Quando me aproximei para dizer "bom dia", senti que seus dentes rangiam tanto quanto os ponteiros do relógio no canto superior esquerdo do consultório. Depois de acomodado, ele apenas pediu que eu dissesse o que estava me deixando triste.

Dentro de mim, uma enorme onda de sentimentos e palavras começou a se formar. De longe, os pássaros da razão começaram a voar frenéticamente numa direção oposta a do tsunami. Minha mente se tornou praia deserta e a boca não conseguiu dar espaço para tanta água. Calei.

Segundos depois, a angústia me cobrou mais do que tinha a oferecer. Sem sal no rosto. O único sal que não arde os olhos. O sal das lágrimas. Sem sal e sem palavras, o que mais eu tinha a perder? Nada. Foi aí que comecei a falar.

Convidei-o para passear pelos labirintos da minha mente. Ele se achava treinado demais. Tentava construir novas passagens só com o olhar e a maldita caneta que não parava de tentar - inutilmente - desenhar mapas com as vias dos meus pensamentos. Não me censurava com as palavras. Fazia isso com o silêncio. Mas eu falei, e falei bastante. Falei bastante mentira. Jamais iria me revelar para um estranho, pior ainda se fosse um estranho que achasse mesmo ter acesso ao que sou no âmago.

Fiz questão de desafiá-lo. Acendi um cigarro e comecei ali uma batalha de pequenos gestos. Pediu para que eu falasse olhando em seus olhos. Não pediu para que eu cessasse a fumaça. Nada é mais irritante do que ver a pessoa provocada se esquivando com maestria da provocação. Pois bem, entendi o recado e apaguei o cigarro. Dessa vez foi ele que entendeu a afronta.

Pediu para que eu discorresse a respeito da infância. Contei dos meus devaneios, da vontade de ficar sozinho e de brincar apenas comigo mesmo. Tudo porque não suportava a falta de ordem e destreza das outras crianças, que quebravam os brinquedos e faziam movimentos bruscos. Não sabia  mover o punho do boneco para simular um soco. Não sabiam girar o corpo do soldado para que esse realizasse uma cambalhota. Por que eu iria brincar com eles se só serviam para quebrar a dança simétrica que dava graça à batalha? Eu era meu inimigo e herói. Eu decidia o final. E nem sempre o vilão era o derrotado.

Depois de abordar o tema "família", tentou recolher algum fragmento que justificasse aquela amargura. Amargura que exalava de mim desde o início da consulta. Falou do coração. Percebeu que ele estava mais soterrado do que o cinzeiro que me oferecera há poucos minutos. Não fiz questão de esconder. Disse que jamais amaria se o sentimento tivesse que atender a requisitos, fossem eles provenientes do destino ou de qualquer outra força invisível. Fui infantil ao ponto de deixar claro que preferia a solidão do que aceitar um amor morno. Foi então que ele teve a medida do quanto eu menti quando falei da época de criança. Eu nunca quis ser sozinho. Eu aprendi a ser sozinho.

Não se surpreendeu com minha aparência. Não achou nada de errado na minha dieta vegetariana. Drogas? Também não especulou muito. Apenas me alertou que elas só serviriam para me conduzir a um dos diagnósticos mais comuns de depressão profunda: tendência ao suicídio. Engoli suas perguntas e aos poucos me senti bem, pois foi baseado em mentiras que contei que o ego, sempre faminto, ganhou bons quilos. Cada farsa vestira no meu interior uma roupa de festa até então distante do meu orçamento e pior, distante do meu porte físico. Eu cabia em tudo, menos dentro de mim mesmo.

Horas se passaram até que ele finalmente chegou ao seu veredicto. Disse que não seria necessário uma série de encontros. Aquele bastava. Eu já me via sedento por explicações. Abandonei o personagem e todas as defesas. Queria ouvir daquele homem de meia idade, cabelos menos acinzentados do que seus olhos e rosto esculpido em marfim uma cura. Uma salvação ou qualquer coisa que tivesse valido o encontro forçado.

Fitou-me pela última vez e, com a voz fria de quem nada se surpreendeu, surpreendeu-me. Disse, sem rodeios: "Você precisa fazer apenas o que tem vontade de fazer, faça. Seja lá o que for, mas esteja ciente das consequências. Não há outra cura para o desejo, senão realizá-lo. E o seu mal, assim como o de todos os humanos de verdade, é querer."

Tempo insuficiente para que eu conhecesse o melhor psicólogo de todos: eu mesmo.


Um comentário:

F. Pinto disse...

Escreves de forma nua e crua. É fantástico ler isto, o teu talento para a escrita é inegável!