Não há paz para as almas que nasceram contra a própria vontade. O martírio da concepção não passa do primeiro castigo, ao invés do primeiro pecado. A placenta é mais pura e limpa do que a alma coberta por carne. Bem mais pura e limpa.
Chegar a este mundo e, com o passar do tempo, absorver a massa cinzenta que paira pelo céu. Diariamente, pílulas e mais pílulas de placebo para evitar o suicídio. Algumas poucas razões para continuar vivo e a família, o alicerce. A base. O chão frio que estará sempre ali para receber seu corpo caído. Morto ou vivo, terá o chão, nada além do chão. Nada além da família. Sempre rígida. Pronta para te parar e reparar os cacos que se espalharam depois de ter saltado do 7º andar. O andar da criação.
Minhas veias são parte da cidade. Estão por todos os lados. Nos esgotos, nas paredes pintadas, nos parques infectados e nas aves cinzentas, manchadas com a cor enferma da metrópole. Confundem-se com as nuvens carregadas de ácido e carbono. Não poderia ser outra ave para esta cidade senão a pomba. Desgraçada, humilhada, compara aos vermes invisíveis. Paz nenhuma se faz em suas penas, mesmo que estas - por pena e piedade de deus - se tinjam de branco. Nem a sua morte causa comoção. Salta todos os dias do 8º andar, entretanto, nunca morre. A covardia lhe faz voar. O 8º andar... sim, o andar sem fim.
Antes de dormir, evito pensar, mas penso. Nem os remédios ajudam mais. Basta fechar o olhos que surge aquele enxame de coisas que não vivi no dia incompleto. E as vontades começam a devorar meu corpo. Se senti frio, agora queimo de calor. Se estava envolto por ar quente, agora gelo só de imaginar quanta vida há lá fora, e quanta morte se hospeda dentro de mim. O 2º andar da minha casa guarda dois quartos. Ambos repletos de negatividade, pessimismo, depressão, angústia, falta de vontade e ânsia por um "querer maior". O 2º andar... morada da tristeza.
Contudo, se a música não parar, paro eu de tentar saltar. Fecho minhas asas antes mesmo de projetar o corpo para fora. Porque preciso ouvir cada nota, cada palavra e cada toque do piano ecoar dentro do que sou. Mesmo sem conseguir uma definição, busco me explorar. Parto todos os dias sem intenção de retornar. É uma viagem sem volta que me fará apagar o passado.
Em cada esquina contarei uma nova história sobre o que sou. Pouco importará o que serei num futuro próximo. Sem paradeiro não somos nada além de borrões num mapa. Somos trechos não interpretados. O ruído na comunicação de rádio. Na verdade, não somos absolutamente nada.
Enquanto ela canta, meu corpo consome-se em chamas. A eletricidade estimula o coração pela última vez. Sangue e mais placenta. Ela chora. Eu não faço um barulho se quer. Nasci. O médico se frustra. Todos se frustram. Em silêncio, eu anunciei o porquê de ter nascido: vim para anular-me diante de todos.
Na verdade, não sou nada.
domingo, 30 de setembro de 2012
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Morar um dia para o resto de todos
Era o segundo dia naquela casa. Ainda não havia me
acostumado com o novo cheiro de madeira velha. Mas as cores me eram familiares.
Cinza, azul e marrom... Delicadamente espalhadas pelos móveis antiquados e
duros. Pareciam estar vestidos em um terno de corte perfeito. Com a palma da
mão, senti a poeira anunciar que houve vida naquele local, pois só há fragmentos
se onde algo tiver queimado até a última chama. Mais cinzas.
Era tudo o que meu coração precisava. Um local para repousar
e deixar que o passado se confundisse com as fantasias do presente. Naquele
instante, a vida renascia como uma fênix. Mas os cômodos não se iluminaram e
ainda era cedo para anunciar um novo dia. Você estava em tudo. Absolutamente
tudo. Encobria a luminosidade. Era a saudade em forma de neblina.
Com o passar dos meses, fundi-me com aquele ambiente. Mais
rígido do que nunca, viva em constante estado de hipnose, levado por músicas que
nunca se cansavam de tocar. A espera pelo inevitável. Deixei de viver. Mas
vivia. Se hoje escrevo é porque ontem senti algo que me fez continuar...
acordar... levantar...
Demorei até receber as primeiras visitas. A porta sempre
esteve trancada, mas era hora de ver os poucos amores que ainda me restavam. Minha
mãe tinha as mãos cansadas e cheias de marcas concebidas pelo seu carinho
infinito. Queimou-se ao cozinhar nossas refeições, furou-se enquanto costurava
nossas roupas, cortou-se diversas vezes para que o choro fosse dela e não
nosso. Como não destrancar as portas do coração? Como impedir que uma criatura dessas
entrasse em minha casa? O único referencial de amor verdadeiro.
Meu irmão continuava forte e vivo. Mas seu signo tinha sido
batizado pelo vento. Percebia a leveza em seu olhar e a vontade absurda de
viver livremente. Evitava endereços como um gatuno que evita a prisão. Observou
cada parede e, assim como minha mãe, viu toda a tristeza estampada pelos
corredores.
Conversamos pelo olhar. Calados, apreciamos o almoço sem
gosto e deixamos as palavras de lado. Estavam frias demais para se deglutir. Eu
queria oferecer muito mais a eles. Contudo, o peito me cobrava toda e qualquer
chama de vida. Qualquer fonte de energia. Se não atendesse às suas exigências,
morreria. E sei que isso seria pesar demais para os dois. Vivo por eles, literalmente.
Um cordão umbilical invertido.
Madalena deixou a rosa avermelhada na mesa - uma vela
envolva por trevas. Vitor partiu e esquentou meu corpo gélido com um abraço
sincero - a batida de seu coração fez com que o meu recobrasse o passo. Dançou
algumas vezes, mas logo se cansou. Fechava-se a porta, mais uma vez. E o amor é
quem me dizia “adeus”. Nada a mim. Só a deus.
Naquela mesma noite, cai de joelhos, diante da janela do meu
quarto. Olhava fixamente para o céu e deixava que minha pele fosse banhada pelo
véu prateado da lua. Aos poucos, percebi que as estrelas destacavam-se não por
sua luz. O que as destacava era justamente a escuridão do universo. A imensidão
é escura, negra como os seus olhos costumavam ser. E nós, aqui presos, somos
pequenas faíscas. Pela primeira vez me senti parte do todo. Senti que não era
apenas cinza, azul e marrom. Não era faísca, era preto também. No meu peito,
profundo feito uma cova, nada restava na forma de um coração. Jazia ali o
universo.
Sobre o móvel antiquado, depositei as folhas em branco e, em
seguida, entrelacei os dedos numa caneta. Palavra por palavra, preenchi aquela
vastidão com pequenas penas de fênix, futuras cinzas, tudo o que ainda queimava
em meu sangue. A porta continuava fechada, mas se alguém batesse, não seria
mais a angústia que atenderia ao chamado. Ou melhor, não seria só a angústia.
Nego-me a dizer que se trata apenas de voltar à vida
cotidiana. Trata-se de não ter medo de morrer. Afinal, foi para isso que
nascemos.
Logo mais estarei aí com você, meu eterno amor. Esta casa é
apenas o primeiro degrau para te alcançar. Serei eu a imensidão que dará
destaque à sua luz.
(...)
De tempos em tempos sinto vontade de ter minha própria casa.
Um espaço recluso onde sou e deixo de ser sem avisar ou pedir aprovação.
Reprovo-me e, de fato, esta sim é a única reprovação de levo a sério. Preciso
da solidão tanto quanto necessito do abraço.
Construo nos textos os cômodos, cheiros, cores e espaços que
supostamente irão compor minha morada. Meu compromisso se firma apenas com a
vontade de “me morar”. Habitar meu âmago. Controlar o pequeno “microverso” e
ser deus das minhas próprias conquistas e desgraças.
Lembro- me que ainda quando crianças, por volta dos 7 ou 8
anos, eu dizia à minha mãe: “Meu sonho e ter um apartamento e morar sozinho”.
Ela achava que eu dizia isso por não gostar deles ou rejeitar o pouco – porém essencial
– que podiam me oferecer. Não era nada disso. Eu os levaria no meu coração.
Queria apenas espaço para desaparecer todos os dias.
Enquanto essa hora não chega, faço deste texto o primeiro
degrau para me alcançar. Serei eu a imensidão que dará os tons daqueles móveis
antiquados e rígidos.
domingo, 23 de setembro de 2012
O contorno do nunca
Aos poucos, conformei-me com o inevitável. Jamais viveria o amor que tanto sonhei. Ele permaneceria para sempre como o contorno do nunca, aquele que dá forma à frustração.
Acordar e ver seu rosto sereno. Deitar e imaginar como seria bom entrelaçar meus braços nos seus. A distância física de alguns metros contra as milhas que separam nossos sentimentos. Sinto como se uma ampulheta sussurrasse nos meus ouvidos: "O tempo está escorrendo e vocês continuam esperando que a areia trague o amor que lhes é de direito". Corto-me, mas a carne já não é capaz de chamar a atenção da dor. Dói muito, mas num local onde não se pode alcançar.
Quando se é rejeitado, nada mais pode ser feito. As melhores frases não soarão como as melhores. Todas as declarações serão chatas e vergonhosas. E se demonstrar carência, não expressará nada além de cobrança. Como se para dar certo qualquer relacionamento necessitasse de valer a pena logo no primeiro instante. Mas uma vez o contorno do nunca me desperta dos sonhos que insistem em embalar com música e angústia o berço do coração natimorto.
E por que manter este sentimento vivo dentro de mim? Por que cultivar esse buraco negro? Por que permitir que cada brecha, cada olhar seu, cada palavra e contato apaguem os traços do impossível? A resposta é uma e é simples: porque eu tenho certeza de que é amor.
E por que é amor? Porque me faz abrir mão do orgulho que sustentei por anos. Faz-me acordar com um gosto amargo dado pelo tom platônico que ilude meus olhos e ainda assim sorrir. E ainda assim permitir que eu lute com ambos os punhos. Vê? Lutar mesmo com a sensação permanente de derrota. Lutar sem perspectiva de vitória. Lutar para se manter erguido. Para ser capaz de escrever todas estas palavras aqui e, outra vez, marcar no peito a frase que melhor rotula minha essência: "sem controle".
Pois se é para desapegar tem que antes deixar fluir. Tem que sentir o que há no âmago, faminto por conhecer a si mesmo. Só assim se encontra o pó, a borra e todo o restante que temperou a alma com isso que chamo de amor. Precisa cair, queimar as asas no sol, trocar os dentes por moedas e com elas descer até o submundo, tudo isso pra sentir que acabou. Para se enganar mais uma vez.
Reuni aqui minha contestação fantasiada de conformidade. Tentei fazer o que há pouco classifiquei como "inútil". Cá estão todas essas frases recheadas de carinho e melancolia, perdidas no vácuo de uma leitura abandonada. E, como um texto que foi escrito para "nunca" ser lido por quem o inspirou, contorno de lápis o "nunca" em nós, pois sei que um dia o apagarei.
Enquanto isso, que o "nunca" continue sendo a única certeza. Só assim a vida valerá mais do que a falsa promessa do "Felizes para sempre".
Acordar e ver seu rosto sereno. Deitar e imaginar como seria bom entrelaçar meus braços nos seus. A distância física de alguns metros contra as milhas que separam nossos sentimentos. Sinto como se uma ampulheta sussurrasse nos meus ouvidos: "O tempo está escorrendo e vocês continuam esperando que a areia trague o amor que lhes é de direito". Corto-me, mas a carne já não é capaz de chamar a atenção da dor. Dói muito, mas num local onde não se pode alcançar.
Quando se é rejeitado, nada mais pode ser feito. As melhores frases não soarão como as melhores. Todas as declarações serão chatas e vergonhosas. E se demonstrar carência, não expressará nada além de cobrança. Como se para dar certo qualquer relacionamento necessitasse de valer a pena logo no primeiro instante. Mas uma vez o contorno do nunca me desperta dos sonhos que insistem em embalar com música e angústia o berço do coração natimorto.
E por que manter este sentimento vivo dentro de mim? Por que cultivar esse buraco negro? Por que permitir que cada brecha, cada olhar seu, cada palavra e contato apaguem os traços do impossível? A resposta é uma e é simples: porque eu tenho certeza de que é amor.
E por que é amor? Porque me faz abrir mão do orgulho que sustentei por anos. Faz-me acordar com um gosto amargo dado pelo tom platônico que ilude meus olhos e ainda assim sorrir. E ainda assim permitir que eu lute com ambos os punhos. Vê? Lutar mesmo com a sensação permanente de derrota. Lutar sem perspectiva de vitória. Lutar para se manter erguido. Para ser capaz de escrever todas estas palavras aqui e, outra vez, marcar no peito a frase que melhor rotula minha essência: "sem controle".
Pois se é para desapegar tem que antes deixar fluir. Tem que sentir o que há no âmago, faminto por conhecer a si mesmo. Só assim se encontra o pó, a borra e todo o restante que temperou a alma com isso que chamo de amor. Precisa cair, queimar as asas no sol, trocar os dentes por moedas e com elas descer até o submundo, tudo isso pra sentir que acabou. Para se enganar mais uma vez.
Reuni aqui minha contestação fantasiada de conformidade. Tentei fazer o que há pouco classifiquei como "inútil". Cá estão todas essas frases recheadas de carinho e melancolia, perdidas no vácuo de uma leitura abandonada. E, como um texto que foi escrito para "nunca" ser lido por quem o inspirou, contorno de lápis o "nunca" em nós, pois sei que um dia o apagarei.
Enquanto isso, que o "nunca" continue sendo a única certeza. Só assim a vida valerá mais do que a falsa promessa do "Felizes para sempre".
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
Negócios da alma
De tanto tocá-lo, o velho piano de papai já não precisava mais dos meus dedos para soar. Foi com música que conversamos sobre tudo e todos. Nunca nos demos bem com as palavras.
Ele se foi subitamente. Sem prefácio. Em seguida, mamãe se afogou na tristeza e, mesmo viva, definhava a cada dia. Era devorada aos poucos. E eu... bem... Precisávamos de dinheiro. Ainda havia algo que poderia ser vendido. Meu estômago doía menos do que os olhos ao verem aquela mulher ser consumida pela desistência. Venderia minha alma.
Ele veio até mim com uma fina capa preta. Suas mãos era delicadas e brancas. Pareciam peças de porcelana. Um único anel segurava a pedra vermelha. Não conseguia enxergar seus olhos, mas os sentia sobre mim. Sentados, saboreávamos a comida na mesa. Tentei controlar o nervosismo, entretanto só deixei mais evidente o meu pavor. E o desespero, claro.
Antes que eu tocasse no assunto, ele disse que precisava me contar algo. Um segredo capaz de me fazer mudar de ideia. Sem opção, concordei em ouvi-lo.
"Seu sangue não é puro. Nunca sentiu o perfume que ele tem? Algo como rosas... como macieiras. Seus pais não o queriam vivo. Ofereceram-me o que está a me ofertar antes mesmo que saísse do útero. O problema era o que corria em suas veias. Que ainda corre.
Quando jovens, os dois apaixonados vieram até mim. Cansaram das orações que não resultariam na solução imediata e escolheram as trevas. Tolice, pois sou eu feito de pura luz, ainda que não me caia mais sobre os ombros a responsabilidade de anunciar o nascer do dia. Fiz. E eles lhe fizeram. Aguardavam pelo preço que estipulara, contudo se decepcionaram. Não queria almas. Não queria a deles. Muito menos a sua. Eu precisava de um novo corpo. Era a minha alma a ser doada. Metade dela, pelo menos.
Eles entraram em pânico. Sabiam que minha presença arruinaria suas vidas. Seu pai deixou de falar, porém, assim como eu, amava a música. Sua mãe procurou aquela "luz" que considerava pura e divina. Não obteve retorno. Morreu.
E cá estamos nós."
Eu nunca existi. Nunca fui filho deles. Jamais me colocaram em primeiro lugar. Ou melhor, colocaram no momento em que precisam se livrar de um pacto.
Realmente, mudei o pensamento. Não venderia mais minha alma. Aceitaria a dele.
Ele se foi subitamente. Sem prefácio. Em seguida, mamãe se afogou na tristeza e, mesmo viva, definhava a cada dia. Era devorada aos poucos. E eu... bem... Precisávamos de dinheiro. Ainda havia algo que poderia ser vendido. Meu estômago doía menos do que os olhos ao verem aquela mulher ser consumida pela desistência. Venderia minha alma.
Ele veio até mim com uma fina capa preta. Suas mãos era delicadas e brancas. Pareciam peças de porcelana. Um único anel segurava a pedra vermelha. Não conseguia enxergar seus olhos, mas os sentia sobre mim. Sentados, saboreávamos a comida na mesa. Tentei controlar o nervosismo, entretanto só deixei mais evidente o meu pavor. E o desespero, claro.
Antes que eu tocasse no assunto, ele disse que precisava me contar algo. Um segredo capaz de me fazer mudar de ideia. Sem opção, concordei em ouvi-lo.
"Seu sangue não é puro. Nunca sentiu o perfume que ele tem? Algo como rosas... como macieiras. Seus pais não o queriam vivo. Ofereceram-me o que está a me ofertar antes mesmo que saísse do útero. O problema era o que corria em suas veias. Que ainda corre.
Quando jovens, os dois apaixonados vieram até mim. Cansaram das orações que não resultariam na solução imediata e escolheram as trevas. Tolice, pois sou eu feito de pura luz, ainda que não me caia mais sobre os ombros a responsabilidade de anunciar o nascer do dia. Fiz. E eles lhe fizeram. Aguardavam pelo preço que estipulara, contudo se decepcionaram. Não queria almas. Não queria a deles. Muito menos a sua. Eu precisava de um novo corpo. Era a minha alma a ser doada. Metade dela, pelo menos.
Eles entraram em pânico. Sabiam que minha presença arruinaria suas vidas. Seu pai deixou de falar, porém, assim como eu, amava a música. Sua mãe procurou aquela "luz" que considerava pura e divina. Não obteve retorno. Morreu.
E cá estamos nós."
Eu nunca existi. Nunca fui filho deles. Jamais me colocaram em primeiro lugar. Ou melhor, colocaram no momento em que precisam se livrar de um pacto.
Realmente, mudei o pensamento. Não venderia mais minha alma. Aceitaria a dele.
terça-feira, 4 de setembro de 2012
Parto
A verdade que nunca quer calar. É justamente aquela que
sufoquei durante muitos anos da minha vida. Por me sentir culpado. Por achar
que todos os meus pensamentos eram traiçoeiros e proibidos. Fui meu próprio
juiz e carrasco. Cavei minha cova, ajustei a corda e pulei do banco. Desde o
início, fui envolvido pelo silêncio fúnebre. E a garganta... bem, foi enforcada
pelo cordão umbilical.
Era a vida reivindicando seu posto na existência e a
autonomia abandonando meu corpo. Eu tinha que viver, pois antes de mim outras
pessoas já haviam decidido isso. O parto, momento em que muitos consideram “a
batalha final pelo direito de nascer”, não passa da primeira obrigação a ser
realizada. Religiões e doutrinas milenares tentam amenizar o impacto do cansaço
que faz renegar as dádivas superiores. A vida é o que é porque o trabalho
precisa de mão de obra. A natureza precisa de um câncer.
Mas se não tivesse nascido, estas palavras seriam órfãs. A
existência em si é algo muito integrante. Falar de desistência, suicídio e
desgosto mostra o quanto ainda estamos ligados a este mundo. O desapego só vem
quando não dizemos mais nada e, acompanhados do silêncio, decidimos encenar a
última apresentação.
E eu quero viver. Só não posso abandonar o desgosto que se
misturou ao meu sangue. Renegar as origens ou algo do tipo. Sim, sinto o
descontentamento pulsando nas minhas veias. Realmente, é quase físico. Não amarga
a boca, pior, tira o sabor. Veja, ainda estou vivo. Vivendo.
Mas dias de fraqueza sempre aparecem. Hoje, olhei para as
minhas mãos e vi os pequenos arranhões. Durante alguns minutos, lembrei que
tinham sido feitos pela minha gata de estimação. E com mais alguns minutos,
recordei da época em que eu era o autor de tais marcas.
Bom, preciso partir. Ah, e alguém quer falar. Pediu-me
licença. Com vocês...
“Tenho medo do futuro. Medo de perder meus pais e irmãos. Medo de ficar sem meus animais ou de não ter onde dormir. Crescer é isso? Sofrer ou ter que sofrer para não sofrer mais ainda? A promessa de uma vitória? Mas eu nem queria vencer. Muito menos guerrear.
“Tenho medo do futuro. Medo de perder meus pais e irmãos. Medo de ficar sem meus animais ou de não ter onde dormir. Crescer é isso? Sofrer ou ter que sofrer para não sofrer mais ainda? A promessa de uma vitória? Mas eu nem queria vencer. Muito menos guerrear.
Por isso que estou escrevendo essa carta. Provavelmente, meu
corpo deve estar frio e inchado. Não queria que fosse dessa forma. Mentira, eu queria
sim. Chega de censurar meus pensamentos.
Queridos amigos e familiares, sei que lhes deixem com muita
tristeza no coração. Mas nem mesmo o amor que sinto por todos vocês foi capaz
de vencer essa angústia sem nome. Lutei com todas as minhas forças, porém,
admiti a derrota. Não vou pedir perdão, muito menos que me compreendam. Esta
carta só registra a consciência que tenho que tudo.
Meu estado mental não estava alterado e nem a depressão
seria justificativa para o que fiz. Simplesmente, cansei de viver. Ainda que
considere válida e admirável a gana que muitos têm pela própria existência, eu
mesmo pouco me importei. Vejam, não há mágoa. Fui porque a alma precisava
viajar. Estou em paz.
No momento do parto, todos me tiraram a autonomia e,
conforme fui crescendo, perdi cada vez mais a capacidade de decidir por conta
própria. Então, apelei para a única escolha que ainda me era permitida. Anulei-me.
Parti com amor. E sei que a minha eternidade se fará nos corações
de cada um que entregar aos olhos esta simples carta.
Boa noite.”
Nem tudo se resume no “vencer”. Boa noite.
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