Era o segundo dia naquela casa. Ainda não havia me
acostumado com o novo cheiro de madeira velha. Mas as cores me eram familiares.
Cinza, azul e marrom... Delicadamente espalhadas pelos móveis antiquados e
duros. Pareciam estar vestidos em um terno de corte perfeito. Com a palma da
mão, senti a poeira anunciar que houve vida naquele local, pois só há fragmentos
se onde algo tiver queimado até a última chama. Mais cinzas.
Era tudo o que meu coração precisava. Um local para repousar
e deixar que o passado se confundisse com as fantasias do presente. Naquele
instante, a vida renascia como uma fênix. Mas os cômodos não se iluminaram e
ainda era cedo para anunciar um novo dia. Você estava em tudo. Absolutamente
tudo. Encobria a luminosidade. Era a saudade em forma de neblina.
Com o passar dos meses, fundi-me com aquele ambiente. Mais
rígido do que nunca, viva em constante estado de hipnose, levado por músicas que
nunca se cansavam de tocar. A espera pelo inevitável. Deixei de viver. Mas
vivia. Se hoje escrevo é porque ontem senti algo que me fez continuar...
acordar... levantar...
Demorei até receber as primeiras visitas. A porta sempre
esteve trancada, mas era hora de ver os poucos amores que ainda me restavam. Minha
mãe tinha as mãos cansadas e cheias de marcas concebidas pelo seu carinho
infinito. Queimou-se ao cozinhar nossas refeições, furou-se enquanto costurava
nossas roupas, cortou-se diversas vezes para que o choro fosse dela e não
nosso. Como não destrancar as portas do coração? Como impedir que uma criatura dessas
entrasse em minha casa? O único referencial de amor verdadeiro.
Meu irmão continuava forte e vivo. Mas seu signo tinha sido
batizado pelo vento. Percebia a leveza em seu olhar e a vontade absurda de
viver livremente. Evitava endereços como um gatuno que evita a prisão. Observou
cada parede e, assim como minha mãe, viu toda a tristeza estampada pelos
corredores.
Conversamos pelo olhar. Calados, apreciamos o almoço sem
gosto e deixamos as palavras de lado. Estavam frias demais para se deglutir. Eu
queria oferecer muito mais a eles. Contudo, o peito me cobrava toda e qualquer
chama de vida. Qualquer fonte de energia. Se não atendesse às suas exigências,
morreria. E sei que isso seria pesar demais para os dois. Vivo por eles, literalmente.
Um cordão umbilical invertido.
Madalena deixou a rosa avermelhada na mesa - uma vela
envolva por trevas. Vitor partiu e esquentou meu corpo gélido com um abraço
sincero - a batida de seu coração fez com que o meu recobrasse o passo. Dançou
algumas vezes, mas logo se cansou. Fechava-se a porta, mais uma vez. E o amor é
quem me dizia “adeus”. Nada a mim. Só a deus.
Naquela mesma noite, cai de joelhos, diante da janela do meu
quarto. Olhava fixamente para o céu e deixava que minha pele fosse banhada pelo
véu prateado da lua. Aos poucos, percebi que as estrelas destacavam-se não por
sua luz. O que as destacava era justamente a escuridão do universo. A imensidão
é escura, negra como os seus olhos costumavam ser. E nós, aqui presos, somos
pequenas faíscas. Pela primeira vez me senti parte do todo. Senti que não era
apenas cinza, azul e marrom. Não era faísca, era preto também. No meu peito,
profundo feito uma cova, nada restava na forma de um coração. Jazia ali o
universo.
Sobre o móvel antiquado, depositei as folhas em branco e, em
seguida, entrelacei os dedos numa caneta. Palavra por palavra, preenchi aquela
vastidão com pequenas penas de fênix, futuras cinzas, tudo o que ainda queimava
em meu sangue. A porta continuava fechada, mas se alguém batesse, não seria
mais a angústia que atenderia ao chamado. Ou melhor, não seria só a angústia.
Nego-me a dizer que se trata apenas de voltar à vida
cotidiana. Trata-se de não ter medo de morrer. Afinal, foi para isso que
nascemos.
Logo mais estarei aí com você, meu eterno amor. Esta casa é
apenas o primeiro degrau para te alcançar. Serei eu a imensidão que dará
destaque à sua luz.
(...)
De tempos em tempos sinto vontade de ter minha própria casa.
Um espaço recluso onde sou e deixo de ser sem avisar ou pedir aprovação.
Reprovo-me e, de fato, esta sim é a única reprovação de levo a sério. Preciso
da solidão tanto quanto necessito do abraço.
Construo nos textos os cômodos, cheiros, cores e espaços que
supostamente irão compor minha morada. Meu compromisso se firma apenas com a
vontade de “me morar”. Habitar meu âmago. Controlar o pequeno “microverso” e
ser deus das minhas próprias conquistas e desgraças.
Lembro- me que ainda quando crianças, por volta dos 7 ou 8
anos, eu dizia à minha mãe: “Meu sonho e ter um apartamento e morar sozinho”.
Ela achava que eu dizia isso por não gostar deles ou rejeitar o pouco – porém essencial
– que podiam me oferecer. Não era nada disso. Eu os levaria no meu coração.
Queria apenas espaço para desaparecer todos os dias.
Enquanto essa hora não chega, faço deste texto o primeiro
degrau para me alcançar. Serei eu a imensidão que dará os tons daqueles móveis
antiquados e rígidos.
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