segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Morar um dia para o resto de todos



Era o segundo dia naquela casa. Ainda não havia me acostumado com o novo cheiro de madeira velha. Mas as cores me eram familiares. Cinza, azul e marrom... Delicadamente espalhadas pelos móveis antiquados e duros. Pareciam estar vestidos em um terno de corte perfeito. Com a palma da mão, senti a poeira anunciar que houve vida naquele local, pois só há fragmentos se onde algo tiver queimado até a última chama. Mais cinzas. 

Era tudo o que meu coração precisava. Um local para repousar e deixar que o passado se confundisse com as fantasias do presente. Naquele instante, a vida renascia como uma fênix. Mas os cômodos não se iluminaram e ainda era cedo para anunciar um novo dia. Você estava em tudo. Absolutamente tudo. Encobria a luminosidade. Era a saudade em forma de neblina. 

Com o passar dos meses, fundi-me com aquele ambiente. Mais rígido do que nunca, viva em constante estado de hipnose, levado por músicas que nunca se cansavam de tocar. A espera pelo inevitável. Deixei de viver. Mas vivia. Se hoje escrevo é porque ontem senti algo que me fez continuar... acordar... levantar...  
Demorei até receber as primeiras visitas. A porta sempre esteve trancada, mas era hora de ver os poucos amores que ainda me restavam. Minha mãe tinha as mãos cansadas e cheias de marcas concebidas pelo seu carinho infinito. Queimou-se ao cozinhar nossas refeições, furou-se enquanto costurava nossas roupas, cortou-se diversas vezes para que o choro fosse dela e não nosso. Como não destrancar as portas do coração? Como impedir que uma criatura dessas entrasse em minha casa? O único referencial de amor verdadeiro. 

Meu irmão continuava forte e vivo. Mas seu signo tinha sido batizado pelo vento. Percebia a leveza em seu olhar e a vontade absurda de viver livremente. Evitava endereços como um gatuno que evita a prisão. Observou cada parede e, assim como minha mãe, viu toda a tristeza estampada pelos corredores.
 
Conversamos pelo olhar. Calados, apreciamos o almoço sem gosto e deixamos as palavras de lado. Estavam frias demais para se deglutir. Eu queria oferecer muito mais a eles. Contudo, o peito me cobrava toda e qualquer chama de vida. Qualquer fonte de energia. Se não atendesse às suas exigências, morreria. E sei que isso seria pesar demais para os dois. Vivo por eles, literalmente. Um cordão umbilical invertido. 

Madalena deixou a rosa avermelhada na mesa - uma vela envolva por trevas. Vitor partiu e esquentou meu corpo gélido com um abraço sincero - a batida de seu coração fez com que o meu recobrasse o passo. Dançou algumas vezes, mas logo se cansou. Fechava-se a porta, mais uma vez. E o amor é quem me dizia “adeus”. Nada a mim. Só a deus.

Naquela mesma noite, cai de joelhos, diante da janela do meu quarto. Olhava fixamente para o céu e deixava que minha pele fosse banhada pelo véu prateado da lua. Aos poucos, percebi que as estrelas destacavam-se não por sua luz. O que as destacava era justamente a escuridão do universo. A imensidão é escura, negra como os seus olhos costumavam ser. E nós, aqui presos, somos pequenas faíscas. Pela primeira vez me senti parte do todo. Senti que não era apenas cinza, azul e marrom. Não era faísca, era preto também. No meu peito, profundo feito uma cova, nada restava na forma de um coração. Jazia ali o universo. 

Sobre o móvel antiquado, depositei as folhas em branco e, em seguida, entrelacei os dedos numa caneta. Palavra por palavra, preenchi aquela vastidão com pequenas penas de fênix, futuras cinzas, tudo o que ainda queimava em meu sangue. A porta continuava fechada, mas se alguém batesse, não seria mais a angústia que atenderia ao chamado. Ou melhor, não seria só a angústia.  

Nego-me a dizer que se trata apenas de voltar à vida cotidiana. Trata-se de não ter medo de morrer. Afinal, foi para isso que nascemos. 

Logo mais estarei aí com você, meu eterno amor. Esta casa é apenas o primeiro degrau para te alcançar. Serei eu a imensidão que dará destaque à sua luz. 

(...)

De tempos em tempos sinto vontade de ter minha própria casa. Um espaço recluso onde sou e deixo de ser sem avisar ou pedir aprovação. Reprovo-me e, de fato, esta sim é a única reprovação de levo a sério. Preciso da solidão tanto quanto necessito do abraço. 

Construo nos textos os cômodos, cheiros, cores e espaços que supostamente irão compor minha morada. Meu compromisso se firma apenas com a vontade de “me morar”. Habitar meu âmago. Controlar o pequeno “microverso” e ser deus das minhas próprias conquistas e desgraças. 

Lembro- me que ainda quando crianças, por volta dos 7 ou 8 anos, eu dizia à minha mãe: “Meu sonho e ter um apartamento e morar sozinho”. Ela achava que eu dizia isso por não gostar deles ou rejeitar o pouco – porém essencial – que podiam me oferecer. Não era nada disso. Eu os levaria no meu coração. Queria apenas espaço para desaparecer todos os dias. 

Enquanto essa hora não chega, faço deste texto o primeiro degrau para me alcançar. Serei eu a imensidão que dará os tons daqueles móveis antiquados e rígidos.

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