domingo, 30 de setembro de 2012

Sem paz

Não há paz para as almas que nasceram contra a própria vontade. O martírio da concepção não passa do primeiro castigo, ao invés do primeiro pecado. A placenta é mais pura e limpa do que a alma coberta por carne. Bem mais pura e limpa.

Chegar a este mundo e, com o passar do tempo, absorver a massa cinzenta que paira pelo céu. Diariamente, pílulas e mais pílulas de placebo para evitar o suicídio. Algumas poucas razões para continuar vivo e a família, o alicerce. A base. O chão frio que estará sempre ali para receber seu corpo caído. Morto ou vivo, terá o chão, nada além do chão. Nada além da família. Sempre rígida. Pronta para te parar e reparar os cacos que se espalharam depois de ter saltado do 7º andar. O andar da criação.

Minhas veias são parte da cidade. Estão por todos os lados. Nos esgotos, nas paredes pintadas, nos parques infectados e nas aves cinzentas, manchadas com a cor enferma da metrópole. Confundem-se com as nuvens carregadas de ácido e carbono. Não poderia ser outra ave para esta cidade senão a pomba. Desgraçada, humilhada, compara aos vermes invisíveis. Paz nenhuma se faz em suas penas, mesmo que estas - por pena e piedade de deus - se tinjam de branco. Nem a sua morte causa comoção. Salta todos os dias do 8º andar, entretanto, nunca morre. A covardia lhe faz voar. O 8º andar... sim, o andar sem fim.

Antes de dormir, evito pensar, mas penso. Nem os remédios ajudam mais. Basta fechar o olhos que surge aquele enxame de coisas que não vivi no dia incompleto. E as vontades começam a devorar meu corpo. Se senti frio, agora queimo de calor. Se estava envolto por ar quente, agora gelo só de imaginar quanta vida há lá fora, e quanta morte se hospeda dentro de mim. O 2º andar da minha casa guarda dois quartos. Ambos repletos de negatividade, pessimismo, depressão, angústia, falta de vontade e ânsia por um "querer maior". O 2º andar... morada da tristeza.

Contudo, se a música não parar, paro eu de tentar saltar. Fecho minhas asas antes mesmo de projetar o corpo para fora. Porque preciso ouvir cada nota, cada palavra e cada toque do piano ecoar dentro do que sou. Mesmo sem conseguir uma definição, busco me explorar. Parto todos os dias sem intenção de retornar. É uma viagem sem volta que me fará apagar o passado.

Em cada esquina contarei uma nova história sobre o que sou. Pouco importará o que serei num futuro próximo. Sem paradeiro não somos nada além de borrões num mapa. Somos trechos não interpretados. O ruído na comunicação de rádio. Na verdade, não somos absolutamente nada.

Enquanto ela canta, meu corpo consome-se em chamas. A eletricidade estimula o coração pela última vez. Sangue e mais placenta. Ela chora. Eu não faço um barulho se quer. Nasci. O médico se frustra. Todos se frustram. Em silêncio, eu anunciei o porquê de ter nascido: vim para anular-me diante de todos.

Na verdade, não sou nada.




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