sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Negócios da alma

De tanto tocá-lo, o velho piano de papai já não precisava mais dos meus dedos para soar. Foi com música que conversamos sobre tudo e todos. Nunca nos demos bem com as palavras.

Ele se foi subitamente. Sem prefácio. Em seguida, mamãe se afogou na tristeza e, mesmo viva, definhava a cada dia. Era devorada aos poucos. E eu... bem... Precisávamos de dinheiro. Ainda havia algo que poderia ser vendido. Meu estômago doía menos do que os olhos ao verem aquela mulher ser consumida pela desistência. Venderia minha alma.

Ele veio até mim com uma fina capa preta. Suas mãos era delicadas e brancas. Pareciam peças de porcelana. Um único anel segurava a pedra vermelha. Não conseguia enxergar seus olhos, mas os sentia sobre mim. Sentados, saboreávamos a comida na mesa. Tentei controlar o nervosismo, entretanto só deixei mais evidente o meu pavor. E o desespero, claro.

Antes que eu tocasse no assunto, ele disse que precisava me contar algo. Um segredo capaz de me fazer mudar de ideia. Sem opção, concordei em ouvi-lo.

"Seu sangue não é puro. Nunca sentiu o perfume que ele tem? Algo como rosas... como macieiras. Seus pais não o queriam vivo. Ofereceram-me o que está a me ofertar antes mesmo que saísse do útero. O problema era o que corria em suas veias. Que ainda corre.

Quando jovens, os dois apaixonados vieram até mim. Cansaram das orações que não resultariam na solução imediata e escolheram as trevas. Tolice, pois sou eu feito de pura luz, ainda que não me caia mais sobre os ombros a responsabilidade de anunciar o nascer do dia. Fiz. E eles lhe fizeram. Aguardavam pelo preço que estipulara, contudo se decepcionaram. Não queria almas. Não queria a deles. Muito menos a sua. Eu precisava de um novo corpo. Era a minha alma a ser doada. Metade dela, pelo menos.

Eles entraram em pânico. Sabiam que minha presença arruinaria suas vidas. Seu pai deixou de falar, porém, assim como eu, amava a música. Sua mãe procurou aquela "luz" que considerava pura e divina. Não obteve retorno. Morreu.

E cá estamos nós."

Eu nunca existi. Nunca fui filho deles. Jamais me colocaram em primeiro lugar. Ou melhor, colocaram no momento em que precisam se livrar de um pacto.

Realmente, mudei o pensamento. Não venderia mais minha alma. Aceitaria a dele.


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