Filho, vai comprar pão
Domingo. Manhã fria e tempo chuvoso. Acordo, com as meias nos pés gelados e três blusas de moletom. Duas calças, touca e lábios rachados. Tem que acordar com 10 toneladas de sono nos olhos. Vermelhos e colados, eles me impedem de ver direito. Mas os ouvidos estão no talo. Mãe grita: “filho, vai comprar pão”. No ato, a memória desperta. Esperta, já me dá a letra. Pego as moedas e notas com durex sem contar. Três pãezinhos e um leite C. Bom dia.
No caminho, a pele treme. Roupa, tênis, luvas. Tudo em vão. O frio aqui no Burgo Paulista é cruel. Gela a ponta do nariz e castiga os pulmões. Desço a rua sem nada de novo. Calçadas quebradas, espalhando pedras por todos os cantos. Merda molhada pedindo pra ser pisada, bituca de cigarro, garrafas de Coca-Cola e pacote de Cheetos. Choveu e a sujeira que a gente escondeu voltou. Cobrou espaço, chamou os ratos, acabou com a frescura na calçada da Dona Ermínia, contaminou a pista, a frente da minha casa e da sua.
Silêncio predomina. Ninguém quer sair. Os amigos devem estar na frente da TV, com aquele copo de Toddy quente, algumas bolachas “água e sal” e a pancadaria entre o Tom e o Jerry. O dia começava assim. Começava primeiro para as crianças. A gente viajava sem hora para voltar. De pijama, alguns tinham o Super Nintendo pra se entreter. Eu e meu irmão não tínhamos nada disso, mas a gente conseguia se divertir. Comandos em Ação, X-Men e bola de futebol. Quem vai dizer que não? Sem aquele papo de “pobre coitado”, só se submete quem não entender que tem gente que vai em frente sem precisar de muito presente. O sorriso no nosso rosto não nasce do mesmo solo. Brota do concreto, do quintal sujo e das paredes da casa que descascam mais do que a cara dos que são o que são porque têm, mas não conseguem ir além.
Apertei o passo e virei a esquina. Faltava pouco para a padaria. Mão no bolso. Dinheiro seguro. Moeda até ficava molhada de suor. Mas não podia soltar nem perder nada. A mãe ficava bruxa de raiva e o que eu podia fazer? Dinheiro contado até o dia 15, quando o pai recebia seu salário de miséria. Mais de trinta anos em uma empresa, explorado e desanimado. O patriarca desistiu de lutar e gostou do gosto da derrota. Mas quem vai julgar um pai que não quis mudar de vida, pois achou que nesta linha era capaz de sustentar a família? Sempre tem alguém pra julgar. Eu, por exemplo, julguei. Mas a vida ensina a corrigir os próprios erros e, principalmente, saber que o “sim” de hoje pode ser o “não” de amanhã.
A fila estava longa. O cheiro do pão maltratava meu estômago vazio. Três pãezinhos e um leite C. Nunca soube contar o troco então confiava no caixa. Se desse errado, a mãe mandava voltar e eu tinha que ensaiar a fala cheia de vergonha, diante do cara que nem se quer sabia meu nome. Ele estava certo. Eu, errado. Tudo normal. Na volta do caminho, encontro meu amigo. Ele tá indo atrás do pão dele, e eu voltando com o meu. Cada um com o seu. O pão nosso de cada dia. Ninguém dá nada. Tem que ir comprar mesmo. Já acordei e os olhos não estão mais tão colados. Ele marca o futebol de hoje. Mesmo com frio, a bola não parava de rolar. Já logo lançou a ideia: “ó, vou escolher você pro meu time”. Só que eu não sou desses que já fecha sem nem saber do proceder. Grosso e perna de pau, esse daí só queria me explorar no time. Eu gritava “ladrão”, ele nem tinha noção, perdia a bola, acabava com o lance, tomava rolinho e deixava o time sem chance. O gol ficava menor. Nem, tô legal, prefiro tirar “dedos iguais” e decidir assim. Não tô falando de sorte, tô falando de postura.
Mãe pega o pacote e conta o troco. Tudo certo. Toddy tá no copo. Escolhe o pão, corta, passa a margarina, aperta as duas partes e morde. Casca dura que corta o céu da boca, fica mole com um gole do chocolate. Começa assim, mais um domingo de 1995.
Agora vai me dizer que infância não é coisa de gente grande?
Vai buscar o pão, acorda que o dinheiro já tá na mão
Aperta bem e não perde nada
Pra depois não pedir moeda pra quem não te olha na cara
Sua responsabilidade começa cedo
Com olho pesado e sono cabreiro
O estômago diz “bom dia, só que não”
Se você não levantar o irmão vai cobrar com razão
A mãe não vai até lá, nem é maldade ou preguiça
É a sina de quem leva a casa toda na espinha
Sem tempo pra prosa e fofoca no portão ou na padoca
Sabe como é, ouvido de vizinho tá colado na desgraça aqui dentro de casa
Então a gente muda o caminho, aperta o passo e fecha a cara
E faz o que tem que ser feito, pão com margarina corta o céu da boca, não tem jeito
Agradece pelo pão nosso de cada dia, nessa vida escassa que se acaba, renasce e continua na desgraça.
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