sexta-feira, 16 de março de 2012
Dois dias
Eu poderia ter evitado logo de início. Eu sabia disso. E por este motivo não evitei. Considero importante saber a respeito daquilo que posso ou não fazer. Mas acredito ser fundamental a utilização da autonomia que me permite escolher o contrário. Eu tive tudo em dois dias.
Toda a atenção que sempre desejei e que não era fruto de interesses mesquinhos. Aquela que te faz existir dentro de um mundo que não é o seu. Você mantém o nome, mas perde todos os outros títulos que lhe deram. A necessidade de manter aquele contato sem toque, invisível e distante, fez de mim um poço de esperanças tolas. Ganhar uma barra de chocolate com sabor de vida. Ganhar sabor para temperar a vida insossa.
A voz quase muda e o jeito cuidadoso de escolher as palavras enfeitiçaram meus ouvidos. Eu queria escutar a todo o momento. Como se adentrasse em uma dança desconhecida esperei por alguém que fosse capaz de me conduzir. Dancei por dois dias. A valsa mais bela de todas. Aquela que não precisa de música.
Dois dias para ter o coração cheio novamente. Três para senti-lo vazio. O que eu teria dito, mas não disse? Certo:
“De repente, a folha com o plano prescrito pelo destino entrou em autocombustão. Vou resumir: tínhamos pouquíssimas chances de nos encontrarmos nesta situação. Mas cá estamos. Confesso que de início desconfiei bastante. Mas quis ver até onde iria tal atitude. Vi. E talvez fosse melhor nem ter visto. Na verdade, o problema foi ter sentido.
Desde a timidez até o chocolate, sabia que meu coração já estava partindo para outro caminho. Mas o que posso fazer? Eu sou assim, censurado pelo próprio silêncio e falta de fé em si mesmo. Deixei que seu sorriso partisse por medo de prendê-lo e nunca mais poder compartilhar daquela leveza espontânea. E jamais saberei o que, de fato, você sentiu por mim.
Obrigado por estes dois dias. Você foi o melhor.”
O que eu teria dito, mas não disse. No longo espaço entre um dia e o outro. Entre meu coração e o seu.
segunda-feira, 12 de março de 2012
A morte em tudo
Pessoas em meio ao apocalipse. Mortas. Dinossauros. Mortos. Galhos de "dama da noite". Mortos. Avó. Morta. Animais em páginas de enciclopédias. Mortos.
Hoje, lembrei-me de quando era criança e desenhava o apocalipse na contracapa dos livros. Era sempre a mesma imagem: um tornado gigante sugando tudo à sua volta e meteoros caindo do céu. Pessoas sendo carbonizadas e animais dilacerados. Para mim, a coisa mais normal de todas. Mesmo que não soubesse de onde vinha tal inspiração.
Também recordei dos dias em que eu arrancava pequenos galhos de uma "dama da noite" e os usava como personagens de alguma aventura. Geralmente, eram sereias que tentavam fugir do seu reino. Depois de escaparem eu as congelava em um copo de requeijão. Só as libertava no dia seguinte. Era a primeira coisa que eu fazia ao acordar. Ia até o congelador, pegava o copo, deixava-o debaixo d'água por alguns minutos e depois ficava observando o gelo se desfazer e a sereia ressurgir. Sempre fiz tudo isso sozinho e sem um motivo. Até tinha um. Eu gostava.
Adorava as enciclopédias de mamíferos dadas pelo meu pai. Naquela época eu não sabia ler. Mas observava as ilustrações de animais e ficava deslumbrado. Aos poucos, fui fazendo relações com a posição dos desenhos nas páginas e descobri do que cada animal de alimentava, qual eram os seus predadores e onde viviam. Aprendi o nome de todos, pois pedia que minha mãe os lesse. Em um dos meus aniversários, sentei com os amigos da minha prima - muitos mais velhos do que eu - e comecei a falar de cada criatura que habitava aquele livro de capa dura. Eles riam de mim. Eu não ria, apenas falava sobre alimentação, insetos consumidos, habilidades específicas...
Num dia chuvoso, minha avó me convidou para passear no centro da cidade. Eu adorava aquele lugar. O cheiro era diferente. As pessoas e os sons também. Tudo era enorme e velho. Muito cinza, azul, preto e verde escuro. Cores que gosto muito. O frio era grande e eu estava mais contente ainda. De mãos dadas, passamos por uma praça. Nela, muitas pessoas tentavam vender artesanatos e utensílios. Foi então que eu vi a coisa mais magnífica daquele tempo: um boneco de Tiranossauro Rex. Fiquei paralisado, olhando para aquele brinquedo incrível. Pedi com os olhos. Ela me entendeu. Ela sempre me entendeu, até mesmo no último encontro, quando lhe disse que não estaria em seu velório. Ela sorriu e partiu naquele mesmo instante. Jamais perderíamos a chance de nos despedirmos.
Eu dormia com aquele boneco. Tomava banho com ele. Mas diferente de outras crianças, eu não esqueci dos brinquedos mais antigos. Todos deveriam se reunir quando o novato chegasse para desafiá-lo. Geralmente, o forasteiro vencia a primeira batalha. Mas esta era a única "vantagem". Depois tudo voltava ao normal.
Desde pequeno eu era perfeccionista. Um defeito mínimo na pata esquerda do Rex me fazia gostar bem menos dele. O do meu irmão, como sempre, estava perfeito. E como sempre ele nem ligava para o objeto. Por questão de orgulho eu nunca quis trocar o meu pelo dele. Só por orgulho mesmo.
Depois minha avó me presenteou com fantásticas serpentes venenosas feitas de borracha e com um arame na parte interna. Assim, era possível modelar seus corpos esguios. As bocas eram abertas e pintadas de vermelho. Lembro-me da minha favorita: a coral. Eu simplesmente não permitia que ninguém brincasse com elas. Também tinha uma naja, mas esta passava a maior parte do tempo com meu irmão. Ele as queria apenas para não se sentir fora das brincadeiras. Ainda assim, eu passava meu tempo sozinho.
Certa vez, enquanto passava a noite na casa da minha tia, pensei sobre algo que até então não existira para mim: a morte. Perguntei para ela se as pessoas morriam. Sem pensar duas vezes, respondeu-me com um "sim" natural e tranquilo. Ainda insatisfeito, questionei se eu também morreria. E ela repetiu a resposta, desta vez complementando com a afirmativa de que todos nós morreríamos um dia. Tive certeza que neste instante a tristeza dominava meu ser. Tudo o que eu tinha feito até então estava sujeito à morte. Ao desaparecimento completo e anulação.
Nunca imaginei que hoje a morte já não seria mais um problema e sim a solução. Entendo a tranquilidade que envolveu aquele "sim" tão marcante. O Vinicius havia morrido naquele instante.
Hoje, lembrei-me de quando era criança e desenhava o apocalipse na contracapa dos livros. Era sempre a mesma imagem: um tornado gigante sugando tudo à sua volta e meteoros caindo do céu. Pessoas sendo carbonizadas e animais dilacerados. Para mim, a coisa mais normal de todas. Mesmo que não soubesse de onde vinha tal inspiração.
Também recordei dos dias em que eu arrancava pequenos galhos de uma "dama da noite" e os usava como personagens de alguma aventura. Geralmente, eram sereias que tentavam fugir do seu reino. Depois de escaparem eu as congelava em um copo de requeijão. Só as libertava no dia seguinte. Era a primeira coisa que eu fazia ao acordar. Ia até o congelador, pegava o copo, deixava-o debaixo d'água por alguns minutos e depois ficava observando o gelo se desfazer e a sereia ressurgir. Sempre fiz tudo isso sozinho e sem um motivo. Até tinha um. Eu gostava.
Adorava as enciclopédias de mamíferos dadas pelo meu pai. Naquela época eu não sabia ler. Mas observava as ilustrações de animais e ficava deslumbrado. Aos poucos, fui fazendo relações com a posição dos desenhos nas páginas e descobri do que cada animal de alimentava, qual eram os seus predadores e onde viviam. Aprendi o nome de todos, pois pedia que minha mãe os lesse. Em um dos meus aniversários, sentei com os amigos da minha prima - muitos mais velhos do que eu - e comecei a falar de cada criatura que habitava aquele livro de capa dura. Eles riam de mim. Eu não ria, apenas falava sobre alimentação, insetos consumidos, habilidades específicas...
Num dia chuvoso, minha avó me convidou para passear no centro da cidade. Eu adorava aquele lugar. O cheiro era diferente. As pessoas e os sons também. Tudo era enorme e velho. Muito cinza, azul, preto e verde escuro. Cores que gosto muito. O frio era grande e eu estava mais contente ainda. De mãos dadas, passamos por uma praça. Nela, muitas pessoas tentavam vender artesanatos e utensílios. Foi então que eu vi a coisa mais magnífica daquele tempo: um boneco de Tiranossauro Rex. Fiquei paralisado, olhando para aquele brinquedo incrível. Pedi com os olhos. Ela me entendeu. Ela sempre me entendeu, até mesmo no último encontro, quando lhe disse que não estaria em seu velório. Ela sorriu e partiu naquele mesmo instante. Jamais perderíamos a chance de nos despedirmos.
Eu dormia com aquele boneco. Tomava banho com ele. Mas diferente de outras crianças, eu não esqueci dos brinquedos mais antigos. Todos deveriam se reunir quando o novato chegasse para desafiá-lo. Geralmente, o forasteiro vencia a primeira batalha. Mas esta era a única "vantagem". Depois tudo voltava ao normal.
Desde pequeno eu era perfeccionista. Um defeito mínimo na pata esquerda do Rex me fazia gostar bem menos dele. O do meu irmão, como sempre, estava perfeito. E como sempre ele nem ligava para o objeto. Por questão de orgulho eu nunca quis trocar o meu pelo dele. Só por orgulho mesmo.
Depois minha avó me presenteou com fantásticas serpentes venenosas feitas de borracha e com um arame na parte interna. Assim, era possível modelar seus corpos esguios. As bocas eram abertas e pintadas de vermelho. Lembro-me da minha favorita: a coral. Eu simplesmente não permitia que ninguém brincasse com elas. Também tinha uma naja, mas esta passava a maior parte do tempo com meu irmão. Ele as queria apenas para não se sentir fora das brincadeiras. Ainda assim, eu passava meu tempo sozinho.
Certa vez, enquanto passava a noite na casa da minha tia, pensei sobre algo que até então não existira para mim: a morte. Perguntei para ela se as pessoas morriam. Sem pensar duas vezes, respondeu-me com um "sim" natural e tranquilo. Ainda insatisfeito, questionei se eu também morreria. E ela repetiu a resposta, desta vez complementando com a afirmativa de que todos nós morreríamos um dia. Tive certeza que neste instante a tristeza dominava meu ser. Tudo o que eu tinha feito até então estava sujeito à morte. Ao desaparecimento completo e anulação.
Nunca imaginei que hoje a morte já não seria mais um problema e sim a solução. Entendo a tranquilidade que envolveu aquele "sim" tão marcante. O Vinicius havia morrido naquele instante.
domingo, 11 de março de 2012
Low-fi
"Você é uma pessoa muito especial, como um irmão para mim. Só."
"Percebi que você estava gostando de mim, mas tive medo de falar alguma coisa e te magoar. Sabe como é."
"Você é uma pessoa para se ter algo sério e duradouro, entende? Só por isso não podemos ficar juntos."
"Você não aguentaria meu gênio e nós travaríamos uma briga por dia. Não acha?"
"Isto é o máximo que posso lhe oferecer. É o meu melhor."
"Também quero as mesmas coisas que VOCÊ. Mas ainda não encontrei alguém para compartilhar isso".
"Ainda estou fortemente ligado a outra pessoa. Não consigo superar isso e, consequentemente, não estou no momento certo para me relacionar com você".
"Acho que vai estragar nossa amizade."
"Quando você fizer 13 anos nós vamos namorar. Até lá, você terá mais mentalidade."
"Encontrei alguém que não fala de assuntos complexos, que não tenha interesse pelas coisas que eu me interesso. É bom, porque assim eu posso cuidar dele."
"Você vai encontrar alguém que mereça seu sentimento. Eu não mereço."
"Não posso entrar num mundo que mal conheço. Se eu acordar do sonho, o que terei de real?"
"Quem sabe um dia? Muita coisa pode acontecer. Hoje não."
"Eu quero ter uma família mesmo, entende?"
"Você tem que sair e conhecer novas pessoas. Certeza que vão se apaixonar pelo seu jeito de ser. Eu não me apaixonei, mas o problema está realmente em mim, acredite."
"Não sei o que você viu em mim. Certeza que poderá encontrar algo melhor."
"É isso. Boa noite. Nos falamos depois."
Por amor, compreendi todas elas.
quarta-feira, 7 de março de 2012
As três lágrimas de Lúcifer
Não sei como nasci. A primeira lembrança foi a voz Dele dizendo-me como abrir minhas frágeis asas. Sua paciência era inesgotável. Ao meu redor, os muitos irmãos e irmãs. Miguel ria do meu jeito atrapalhado. Eu ria de seu sorriso cativante. Suas quatro asas eram fortes e pareciam ter vida própria. As minhas seis eram pesadas e lentas. Mas tinham sua beleza.
Fui apresentado à música. Cada som parecia preencher a minha existência. Em pouco tempo, ele me escolheu como o maestro celestial. Agradeci.
Miguel gostava de treinar com as espadas. Eu também. Enquanto Ele nos ensinava a empunhar tais armas, imaginávamos nossas futuras armaduras. Novamente, era eu o atrapalhado. Durante as tardes, Miguel treinava outros movimentos e eu tocava lira, inventando notas e conduzindo o som por vias desconhecidas. Enquanto isso, Ele nos observava orgulhoso.
Fomos levados até o mundo material. Não podíamos tocar em nada.
Ele pediu para que ajudássemos a organizar os elementos e posicionar as montanhas. Passamos dias neste processo, até que recebemos o chamado para retornar.
Ele nos banhou com amor e carinho. Causou-nos uma felicidade descomunal. Afastei-me por alguns instantes e pela primeira vez me senti só. Estava comigo mesmo, apenas. Foi neste instante que o sorriso abandonou meu rosto. Percebi que o festejo era a recompensa por uma tarefa realizada, e que se eu não tivesse executado tal função talvez não fosse um dos que ali se esbaldavam na bonança. Quis sumir e foi o que fiz.
Desci até o mundo. Cuidadosamente, deixei que meus pés tocassem o chão. Senti. Nunca havia sentido com o corpo antes. Então, a primeira lágrima escorreu.
Aquela pequena gota refletia o luar. Fiz com que flutuasse entre minhas mãos. Jamais imaginei que fosse capaz de materializar algo. Por que fui privado disso?
O líquido tocou meus dedos e o levei até a boca. O incrível aconteceu. O sabor me foi apresentado. Subitamente, a gota mudou de cor. Tornou-se vermelha. Seu gosto era outro também. Metalizado. Sangue.
Quando a língua terminou sua degustação, algo estranho aconteceu. Uma brisa cortou minha pele e tremi com força. Estava com frio. Em seguida, a fome. Comi de tudo. E senti prazer. A fome é capaz de lhe causar desejos e estes só são saciados com o prazer. Era magnífico. Senti que a vida finalmente me dava à luz. Eu, a estrela da manhã, brilhei com minha própria luminosidade. Era hora de retornar. Subi. Mas já não era mais o mesmo.
Pela manhã, abri minhas seis asas e anunciei o começo de mais um dia. Trouxe a luz pura de amanhecer. Na hora da primeira ópera, toquei o mais belo ode de todos e Ele chorou, assim como Miguel. Mas foram choros diferentes. Miguel me admirava enquanto Ele sentia pena de mim. Naquela manhã não nos falamos.
Fui praticar com Miguel em campo aberto. Empunhando nossas espadas – já com as respectivas armaduras – demos início à batalha.
Miguel investia contra mim, usando toda a sua força. Mas eu já não era mais o mesmo. Com um único movimento, arremessei seu corpo para longe e no mesmo segundo estava sobre ele. Olhei profundamente em seus olhos até encontrar aquela criatura amável e submissa. Ele, a lebre e eu a serpente albina.
Alguma coisa batia forte e ritmada por debaixo do peito. Só conseguia pensar em Miguel. Queria senti-lo, da mesma forma que senti a lágrima na noite passada. Mordi a ponta de minha língua. O líquido vermelho começou a fluir. Queria que ele sentisse também. Lentamente, fui aproximando meus lábios dos dele e quando o toque dependia apenas de mais um segundo, uma força puxou minhas seis asas e as jogou ao ar. Ele mostrou-se furioso, como nunca tínhamos visto antes. Era fúria. Senti o mesmo.
Olhei para o chão e vi que mais uma lágrima havia caído. Esta era de raiva. Miguel voltou para o grande jardim e eu resolvi andar pelo mundo. Desci. Mas já não era mais o mesmo.
Estava confuso e só queria alimentar minhas necessidades. Senti muito frio e aquela fina túnica não era suficiente. Encontrei uma criatura. Ele havia começado a criá-las. Chifres chamativos e uma pelugem macia. Algo estimulava minhas mãos. Empunhei a espada e perfurei sua carcaça. Cobri-me e então pude partir.
Lá, todos me olhavam com curiosidade. Tapavam a boca. Miguel veio até mim e me deu um forte abraço. Pouco se importou com minha aparência. Juntos, fomos até Ele. Lembro-me da pele de bode sendo transformada em cinzas. Nu e com uma sensação ruim, lidei com a vergonha pela primeira vez. Miguel cobriu meu corpo e desapareceu com Ele.
Voltei para mundo e lá passei dias e dias refletindo sobre tudo o que havia acontecido. Por que estava sendo tratado daquele jeito? Por que não me era permitido perguntar? Por que fui privado de todas aquelas sensações? Por que não podia amar Miguel ao meu modo? Endureci.
Quando retornei, chamei muitos e a eles fiz as mesmas perguntas que eu havia feito anteriormente. Alguns praguejaram. Outros me apoiaram. Propus que todos fossem ao mundo para experimentar o que eu havia vivido. Só assim me compreenderiam.
Antes de chegar aos limites do campo, uma legião se pôs diante de mim. Sabia o que aquilo significava. Empunhei minha lâmina e abri caminho. Em seguida, estiquei minhas asas e todos caíram de joelhos. Foi então que Miguel apareceu.
Eu já conseguia criar minha própria luz, sem que “ele” me alimentasse. Miguel estava frio, mas os olhos chafurdavam nas chamas. Atacou-me.
Só podia me esquivar, e assim continuei até que ele me perguntou: “Por quê?”. Só pude responder: “Porque te amo, mas não tanto quanto a mim mesmo”.
“Ele” tentou intervir e passou a queimar meu corpo. Mais uma vez abri minhas asas e afastei sua mão invisível. “Ele” apenas disse: “Veja o que você fez com Miguel”. Dilacerado, ele havia protegido seu criador e agora estava prestes a desaparecer. Desespero.
Atirei-me sobre seu corpo, abri as seis asas, mordi meu pulso, aqueci meu sangue com ma mais pura alquimia até que se transmutasse em prata e o depositei no peito de Miguel. Ele despertou e, sem exitar, perfurou meu corpo. Olhei profundamente em seus olhos e a última lágrima caiu. Tristeza. Fugi, mas não de mim, afinal, já não era mais o mesmo.
Fui apresentado à música. Cada som parecia preencher a minha existência. Em pouco tempo, ele me escolheu como o maestro celestial. Agradeci.
Miguel gostava de treinar com as espadas. Eu também. Enquanto Ele nos ensinava a empunhar tais armas, imaginávamos nossas futuras armaduras. Novamente, era eu o atrapalhado. Durante as tardes, Miguel treinava outros movimentos e eu tocava lira, inventando notas e conduzindo o som por vias desconhecidas. Enquanto isso, Ele nos observava orgulhoso.
Fomos levados até o mundo material. Não podíamos tocar em nada.
Ele pediu para que ajudássemos a organizar os elementos e posicionar as montanhas. Passamos dias neste processo, até que recebemos o chamado para retornar.
Ele nos banhou com amor e carinho. Causou-nos uma felicidade descomunal. Afastei-me por alguns instantes e pela primeira vez me senti só. Estava comigo mesmo, apenas. Foi neste instante que o sorriso abandonou meu rosto. Percebi que o festejo era a recompensa por uma tarefa realizada, e que se eu não tivesse executado tal função talvez não fosse um dos que ali se esbaldavam na bonança. Quis sumir e foi o que fiz.
Desci até o mundo. Cuidadosamente, deixei que meus pés tocassem o chão. Senti. Nunca havia sentido com o corpo antes. Então, a primeira lágrima escorreu.
Aquela pequena gota refletia o luar. Fiz com que flutuasse entre minhas mãos. Jamais imaginei que fosse capaz de materializar algo. Por que fui privado disso?
O líquido tocou meus dedos e o levei até a boca. O incrível aconteceu. O sabor me foi apresentado. Subitamente, a gota mudou de cor. Tornou-se vermelha. Seu gosto era outro também. Metalizado. Sangue.
Quando a língua terminou sua degustação, algo estranho aconteceu. Uma brisa cortou minha pele e tremi com força. Estava com frio. Em seguida, a fome. Comi de tudo. E senti prazer. A fome é capaz de lhe causar desejos e estes só são saciados com o prazer. Era magnífico. Senti que a vida finalmente me dava à luz. Eu, a estrela da manhã, brilhei com minha própria luminosidade. Era hora de retornar. Subi. Mas já não era mais o mesmo.
Pela manhã, abri minhas seis asas e anunciei o começo de mais um dia. Trouxe a luz pura de amanhecer. Na hora da primeira ópera, toquei o mais belo ode de todos e Ele chorou, assim como Miguel. Mas foram choros diferentes. Miguel me admirava enquanto Ele sentia pena de mim. Naquela manhã não nos falamos.
Fui praticar com Miguel em campo aberto. Empunhando nossas espadas – já com as respectivas armaduras – demos início à batalha.
Miguel investia contra mim, usando toda a sua força. Mas eu já não era mais o mesmo. Com um único movimento, arremessei seu corpo para longe e no mesmo segundo estava sobre ele. Olhei profundamente em seus olhos até encontrar aquela criatura amável e submissa. Ele, a lebre e eu a serpente albina.
Alguma coisa batia forte e ritmada por debaixo do peito. Só conseguia pensar em Miguel. Queria senti-lo, da mesma forma que senti a lágrima na noite passada. Mordi a ponta de minha língua. O líquido vermelho começou a fluir. Queria que ele sentisse também. Lentamente, fui aproximando meus lábios dos dele e quando o toque dependia apenas de mais um segundo, uma força puxou minhas seis asas e as jogou ao ar. Ele mostrou-se furioso, como nunca tínhamos visto antes. Era fúria. Senti o mesmo.
Olhei para o chão e vi que mais uma lágrima havia caído. Esta era de raiva. Miguel voltou para o grande jardim e eu resolvi andar pelo mundo. Desci. Mas já não era mais o mesmo.
Estava confuso e só queria alimentar minhas necessidades. Senti muito frio e aquela fina túnica não era suficiente. Encontrei uma criatura. Ele havia começado a criá-las. Chifres chamativos e uma pelugem macia. Algo estimulava minhas mãos. Empunhei a espada e perfurei sua carcaça. Cobri-me e então pude partir.
Lá, todos me olhavam com curiosidade. Tapavam a boca. Miguel veio até mim e me deu um forte abraço. Pouco se importou com minha aparência. Juntos, fomos até Ele. Lembro-me da pele de bode sendo transformada em cinzas. Nu e com uma sensação ruim, lidei com a vergonha pela primeira vez. Miguel cobriu meu corpo e desapareceu com Ele.
Voltei para mundo e lá passei dias e dias refletindo sobre tudo o que havia acontecido. Por que estava sendo tratado daquele jeito? Por que não me era permitido perguntar? Por que fui privado de todas aquelas sensações? Por que não podia amar Miguel ao meu modo? Endureci.
Quando retornei, chamei muitos e a eles fiz as mesmas perguntas que eu havia feito anteriormente. Alguns praguejaram. Outros me apoiaram. Propus que todos fossem ao mundo para experimentar o que eu havia vivido. Só assim me compreenderiam.
Antes de chegar aos limites do campo, uma legião se pôs diante de mim. Sabia o que aquilo significava. Empunhei minha lâmina e abri caminho. Em seguida, estiquei minhas asas e todos caíram de joelhos. Foi então que Miguel apareceu.
Eu já conseguia criar minha própria luz, sem que “ele” me alimentasse. Miguel estava frio, mas os olhos chafurdavam nas chamas. Atacou-me.
Só podia me esquivar, e assim continuei até que ele me perguntou: “Por quê?”. Só pude responder: “Porque te amo, mas não tanto quanto a mim mesmo”.
“Ele” tentou intervir e passou a queimar meu corpo. Mais uma vez abri minhas asas e afastei sua mão invisível. “Ele” apenas disse: “Veja o que você fez com Miguel”. Dilacerado, ele havia protegido seu criador e agora estava prestes a desaparecer. Desespero.
Atirei-me sobre seu corpo, abri as seis asas, mordi meu pulso, aqueci meu sangue com ma mais pura alquimia até que se transmutasse em prata e o depositei no peito de Miguel. Ele despertou e, sem exitar, perfurou meu corpo. Olhei profundamente em seus olhos e a última lágrima caiu. Tristeza. Fugi, mas não de mim, afinal, já não era mais o mesmo.
terça-feira, 6 de março de 2012
A dança
Ficar em casa. Dentro do quarto. Dentro da zona de conforto. Não sair e nem atender ao telefone. Estes eram meus planos para o domingo. Mas como bem sei, planos só servem para serem destruídos. Quando percebi, já estava passando a chave na porta e ajeitando os óculos.
Caminhei pelas ruas do bairro. O frio tirava as pessoas do caminho e só assim eu conseguia enxergar as belas árvores nas alamedas. Passei diante de uma casa velha e na varanda um garoto me observava. Seus sapatos verdes com detalhes em marrom me lembraram das árvores que há pouco tinha visto. Com seu pequeno violão, tocou algumas notas e cantarolou qualquer coisa. Fingi não ter visto e segui mais adiante. Subi algumas ladeiras até chegar à praça. Tudo vazio, menos eu.
Senti os passos atrás de mim e quando me virei, o garoto estava lá. Sorriu e se convidou. Havia planejado caminhar sozinho, mas como disse os planos só... Ouvi suas notas por muitas horas. Quando voltei, os ouvidos já não eram mais os mesmos. Algo os tinha atingido.
Outro domingo, e desta vez fiz diferente. Havia uma festa para ir então fui. O plano era evitá-la, mas... Enfim. Ao chegar no local, todas as pessoas mais populares se arrastavam pelos cômodos, como se buscassem algo fundamental para as suas vidas. Anos mais tarde eu descobriria o que era tão importante.
Sentado e afogado na bebida, olhava o chão para conseguir manter o mínimo de foco. Foi quando avistei aqueles sapatos que me faziam lembrar de hortelã e dias chuvosos. Músicas irritantes, as vozes agudas, não. Eu queria o grave de um baixo, o clima tenso de um fundo de bar e a paz daquele sorriso. Os olhos eram sempre os mesmos, mas lá no fundo havia algo de diferente.
Saímos daquele inferno e fomos buscar nosso próprio purgatório. No telhado da casa, saquei do bolso um player de música e dividi o fone. Suavemente, meus braços foram encostando-se aos dele. Quase perdi o equilíbrio, mas sua tranquilidade me conduziu com segurança. Foi então que a melodia envolveu toda aquela atmosfera. E o céu sobre nós converteu-se em inveja. Fomos banhados pelo luar e os olhos estáticos cintilavam como nunca. “Quer dançar comigo?”. Sim.
Mirou os ouvidos, mas acertou meu coração. Era a última dança. A última música. A última chance. Foi tão simples. Dançamos sobre os corpos esquálidos dos que nunca entenderiam aquele momento. Dois para cá e sete bilhões para lá...
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