quarta-feira, 7 de março de 2012

As três lágrimas de Lúcifer

Não sei como nasci. A primeira lembrança foi a voz Dele dizendo-me como abrir minhas frágeis asas. Sua paciência era inesgotável. Ao meu redor, os muitos irmãos e irmãs. Miguel ria do meu jeito atrapalhado. Eu ria de seu sorriso cativante. Suas quatro asas eram fortes e pareciam ter vida própria. As minhas seis eram pesadas e lentas. Mas tinham sua beleza.

Fui apresentado à música. Cada som parecia preencher a minha existência. Em pouco tempo, ele me escolheu como o maestro celestial. Agradeci.

Miguel gostava de treinar com as espadas. Eu também. Enquanto Ele nos ensinava a empunhar tais armas, imaginávamos nossas futuras armaduras. Novamente, era eu o atrapalhado. Durante as tardes, Miguel treinava outros movimentos e eu tocava lira, inventando notas e conduzindo o som por vias desconhecidas. Enquanto isso, Ele nos observava orgulhoso.

Fomos levados até o mundo material. Não podíamos tocar em nada.

Ele pediu para que ajudássemos a organizar os elementos e posicionar as montanhas. Passamos dias neste processo, até que recebemos o chamado para retornar.

Ele nos banhou com amor e carinho. Causou-nos uma felicidade descomunal. Afastei-me por alguns instantes e pela primeira vez me senti só. Estava comigo mesmo, apenas. Foi neste instante que o sorriso abandonou meu rosto. Percebi que o festejo era a recompensa por uma tarefa realizada, e que se eu não tivesse executado tal função talvez não fosse um dos que ali se esbaldavam na bonança. Quis sumir e foi o que fiz.

Desci até o mundo. Cuidadosamente, deixei que meus pés tocassem o chão. Senti. Nunca havia sentido com o corpo antes. Então, a primeira lágrima escorreu.

Aquela pequena gota refletia o luar. Fiz com que flutuasse entre minhas mãos. Jamais imaginei que fosse capaz de materializar algo. Por que fui privado disso?

O líquido tocou meus dedos e o levei até a boca. O incrível aconteceu. O sabor me foi apresentado. Subitamente, a gota mudou de cor. Tornou-se vermelha. Seu gosto era outro também. Metalizado. Sangue.

Quando a língua terminou sua degustação, algo estranho aconteceu. Uma brisa cortou minha pele e tremi com força. Estava com frio. Em seguida, a fome. Comi de tudo. E senti prazer. A fome é capaz de lhe causar desejos e estes só são saciados com o prazer. Era magnífico. Senti que a vida finalmente me dava à luz. Eu, a estrela da manhã, brilhei com minha própria luminosidade. Era hora de retornar. Subi. Mas já não era mais o mesmo.

Pela manhã, abri minhas seis asas e anunciei o começo de mais um dia. Trouxe a luz pura de amanhecer. Na hora da primeira ópera, toquei o mais belo ode de todos e Ele chorou, assim como Miguel. Mas foram choros diferentes. Miguel me admirava enquanto Ele sentia pena de mim. Naquela manhã não nos falamos.

Fui praticar com Miguel em campo aberto. Empunhando nossas espadas – já com as respectivas armaduras – demos início à batalha.

Miguel investia contra mim, usando toda a sua força. Mas eu já não era mais o mesmo. Com um único movimento, arremessei seu corpo para longe e no mesmo segundo estava sobre ele. Olhei profundamente em seus olhos até encontrar aquela criatura amável e submissa. Ele, a lebre e eu a serpente albina.

Alguma coisa batia forte e ritmada por debaixo do peito. Só conseguia pensar em Miguel. Queria senti-lo, da mesma forma que senti a lágrima na noite passada. Mordi a ponta de minha língua. O líquido vermelho começou a fluir. Queria que ele sentisse também. Lentamente, fui aproximando meus lábios dos dele e quando o toque dependia apenas de mais um segundo, uma força puxou minhas seis asas e as jogou ao ar. Ele mostrou-se furioso, como nunca tínhamos visto antes. Era fúria. Senti o mesmo.

Olhei para o chão e vi que mais uma lágrima havia caído. Esta era de raiva. Miguel voltou para o grande jardim e eu resolvi andar pelo mundo. Desci. Mas já não era mais o mesmo.

Estava confuso e só queria alimentar minhas necessidades. Senti muito frio e aquela fina túnica não era suficiente. Encontrei uma criatura. Ele havia começado a criá-las. Chifres chamativos e uma pelugem macia. Algo estimulava minhas mãos. Empunhei a espada e perfurei sua carcaça. Cobri-me e então pude partir.

Lá, todos me olhavam com curiosidade. Tapavam a boca. Miguel veio até mim e me deu um forte abraço. Pouco se importou com minha aparência. Juntos, fomos até Ele. Lembro-me da pele de bode sendo transformada em cinzas. Nu e com uma sensação ruim, lidei com a vergonha pela primeira vez. Miguel cobriu meu corpo e desapareceu com Ele.

Voltei para mundo e lá passei dias e dias refletindo sobre tudo o que havia acontecido. Por que estava sendo tratado daquele jeito? Por que não me era permitido perguntar? Por que fui privado de todas aquelas sensações? Por que não podia amar Miguel ao meu modo? Endureci.

Quando retornei, chamei muitos e a eles fiz as mesmas perguntas que eu havia feito anteriormente. Alguns praguejaram. Outros me apoiaram. Propus que todos fossem ao mundo para experimentar o que eu havia vivido. Só assim me compreenderiam.

Antes de chegar aos limites do campo, uma legião se pôs diante de mim. Sabia o que aquilo significava. Empunhei minha lâmina e abri caminho. Em seguida, estiquei minhas asas e todos caíram de joelhos. Foi então que Miguel apareceu.

Eu já conseguia criar minha própria luz, sem que “ele” me alimentasse. Miguel estava frio, mas os olhos chafurdavam nas chamas. Atacou-me.

Só podia me esquivar, e assim continuei até que ele me perguntou: “Por quê?”. Só pude responder: “Porque te amo, mas não tanto quanto a mim mesmo”.

“Ele” tentou intervir e passou a queimar meu corpo. Mais uma vez abri minhas asas e afastei sua mão invisível. “Ele” apenas disse: “Veja o que você fez com Miguel”. Dilacerado, ele havia protegido seu criador e agora estava prestes a desaparecer. Desespero.

Atirei-me sobre seu corpo, abri as seis asas, mordi meu pulso, aqueci meu sangue com ma mais pura alquimia até que se transmutasse em prata e o depositei no peito de Miguel. Ele despertou e, sem exitar, perfurou meu corpo. Olhei profundamente em seus olhos e a última lágrima caiu. Tristeza. Fugi, mas não de mim, afinal, já não era mais o mesmo.

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