segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O sexto

Naquela manhã, fiz questão de acordar mais cedo. Além das tarefas habituais, decidi que iria colher alguns legumes para o almoço. Já havia passado a época das colheitas, no entanto eu sentia falta de vegetais frescos. O caminho era sempre o mesmo: estrada de terra e longas árvores nas laterais. E lá estava o sol a banhar todas as folhas verdes. Pois bem, era só mais um dia comum.

Não... Definitivamente não era.

Anos e anos na solidão. Depois que perdi meus familiares nunca mais sai daquele vilarejo. Éramos doze irmãos. Minha mãe costumava dizer que cada um de nós carregava uma constelação em nossas almas e, coincidentemente, cada um de nós nasceu em um mês do ano. Eu era a sexta constelação.

Asmin

O mais velho. Asmin tinha ombros largos e olhos flamejantes. Seus cabelo dourado o diferenciava dos demais irmãos. Seu espírito era vívido e criativo, parecia que estava sempre em combustão. Queria tudo ao mesmo tempo e sempre enchia os pulmões para gritar aos quatro ventos os seus desejos. Asmin, meu querido irmão, inquieto e valente. Seu coração não cabia dentro do peito.

Tenos

A rocha que jamais se moveria. Tenos era intransponível. Dominador e autosuficiente adorava cultivar todos os bens materiais que conseguia em suas aventuras. Cada conquista amorosa era como um diamante bruto que entrava para sua coleção. Tenos tinha a beleza como aliada. Mas não a beleza física e sim a beleza dos gestos. Seus braços fortes envolviam as moças carentes e davam coragem aos rapazes medrosos. Tenos era filho da terra e sua coragem não cabia dentro das palavras.

Nivad

O universo cabia dentro do sorriso de Nivad. Aquele que gostava de conversar e também de desafiar as barreiras entre pessoas. Meu irmão, que tantas vezes me fez cair no sono com suas longas estórias, vagava pelo mundo dos sonhos. Era como o vento e mudava sem avisar. Repudiava qualquer forma de dominação e lutava contra a rotina. Era inseguro, pois as suas bases se faziam no ar. Nivad - senhor da palavra e mestre na arte de reinventar-se - lutava para não demonstrar que seu maior medo era ter as asas cortadas por um amor qualquer. Era filho do céu, e sua liberdade não cabia dentro de casa.

Gamon

Com seus laços invisíveis, Gamon envolvia a toda a família. Fragmentou seu coração e para cada um de nós fez questão de deixar um pedaço. Conhecia o silêncio dos mortos, pois desde pequeno conversava com aqueles que já não mais habitavam este planeta. Gamon chorava e não tinha vergonha disso. Sabia muito sobre a água e seus mistérios. Contou-me, uma vez, que no fundo de cada rio existia uma bela moça com sorriso de pérola. Gamon era filho da água e suas lágrimas não cabiam dentro dos olhos.

Silas

Jamais conheci um espírito mais forte do que o de Silas. Seu espírito de liderança também era a fonte de arrogância que o fazia tomar frente da maioria das decisões. O que tinha em seu olhar não era coragem, de fato, mas sim força. E força está além da capacidade de arriscar-se. Força também se faz nos momentos de resignação. Silas gostava de exercitar-se à luz do sol. Dizia que sua alma passava a ser preenchida com o dourado celeste. Não aceitava um "não" como resposta, mas era forte o bastante para abrir mão do "sim". Era filho da luz e não cabia dentro do sol.

Eu...

Não agora... Não.

Chivat

Carregava a paz em seu colo. Sempre atento e pronto para equilibrar os ânimos, Chivat tinha uma beleza particular. Movimentava-se com graça e leveza. Optou pela razão e abriu mão do amor. Chivat queria viver num mundo onde tristeza e felicidade fossem aliadas. Acreditava com todas as forças na capacidade de extinguir-se e então voltar a existir como parte de um todo. Chivat, filho do silêncio, não cabia dentro das guerras.

Celos

Abençoado com olhos negros, Celos gostava de criticar os demais irmãos. Ele dizia que sua crítica nada mais era do que a ajuda que todos precisavam para crescer. Sempre atacava o ponto fraco de cada um, mas quando o seu era tocado, jurava vingança. Celos conhecia o lado difícil da vida, não porque tivesse sofrido, mas porque optou por isso. Encontrou no sofrimento derivado da solidão o recanto de suas forças. Meu irmão, que tanto me ensinou sobre a dor, não cabia dentro das próprias lamentações.

Dário

O protetor. Quantas vezes vi Dário deixar seu sono de lado para velar pelo dos demais irmãos. Ótimo atleta tinha olhos de falcão. Seus cabelos dourados o faziam parecer muito com Silas, ainda que os temperamentos se distanciassem. Dário vivia o amor eo queimava com todas as forças. Era um eterno apaixonado, mas sempre acabava sozinho. Vivia a frustração de suas próprias expectativas e esperava, em vão, pelo coração perfeito. Dário era filho do fogo e seu amor não cabia dentro das chamas.

Benzar

Benzar podia trabalhar por uma década sem pausa que manteria a pose e a promessa feita. Conhecia as artes e não o cansaço. Era leal e justo, tinha nos olhos a lâmina de uma espada capaz de cortar as falsas aparências e revelar o que havia no interior de cada pessoa. Abandonava a si mesmo para poder ajudar aos demais e sua bondade não cabia dentro deste mundo.

Leucad

O misterioso. Para nós, era um desafio saber o que se passava na cabeça de Leucad. Falava com os olhos e sempre afogava o pensamento nos livros. Frio e distante nos amava de uma maneira bem peculiar. Seu sorriso era lindo, pois era raro. Com isso, valorizávamos até mesmo o mais simples gesto de afeto. Leucad amou muito outra pessoa, mas sua natureza não o permitiu se aproximar muito do calor de uma nova paixão. Leucad era filho da água e não cabia dentro daquele oceâno de incertezas.

Fermis

Seu rosto era como a lua. Iluminava qualquer escuridão. A beleza se definia no seu sorriso perfeito e olhos azuis como céu. Gentil e delicado, Fermis era protegido pelos outros e quase nunca se envolvia em conflitos. Sonhador e amoroso conquistou todos os corações a sua volta. Cantava com a alma e dançava como um peixe envolvido pelas correntezas do hedonismo. Fermis era filho das rosas, mas seu perfume não pertencia a nenhum jardim.

Eu...

Kalim

Enquanto voltava com a cesta cheia de belos legumes e frutas, aquela velha cena voltou. Pensei que nunca mais aconteceria algo do tipo, mas aconteceu. Ele veio até mim e disse:

"Kalim, lágrima que deixei escorrer e na terra foi parar, até quando vai me evitar? Sou seu pai, sua mãe, seu irmão, seu amor... Sou você, Kalim. Não deixe que o medo vença a guerra e te faça prisioneiro pelo resto da eternidade. Você, que carrega na mente o universo, que tem perfume de rosas, lida com o silêncio e sabe captar as palavras com o olhar. Kalim conheça-te a ti mesmo, meu filho. Não negue sua essência. Não abandone o que tens de mais precioso: sua própria alma".

Desde pequeno conversávamos muito. Um dia o questionei e então tudo mudou:

- Sinto-me solitário, mesmo com doze irmãos ao meu redor. Diga-me, estou sendo cruel, certo?
- Só serás cruel se assim se sentir, Kalim. Veja, todos nós precisamos de um momento de solidão.
- Até você?
- Sim, até mesmo eu.
- Nunca percebi.
- Já reparou na chuva?
- O que tem ela? Só atrapalha a brincadeira dos meus irmãos e me causa sono.
- Exato. Vocês simplesmente ficam reclusos, protegendo-se das minhas lamúrias.
- Sei...
- Por que esse olhar triste?
- Porque não posso falar com você sobre o que sinto.
- E por qual motivo, posso saber?
- Não encontro as palavras certas.
- Pois bem, vou ajudá-lo. Feche os olhos. Agora inspire. Certo. Solte o ar. Abra os olhos.
- Não vejo nada, mesmo com os olhos abertos! Estou cego!
- Calma, Kalim. Você está vendo sim, o que não consegue fazer é enxergar.
- Mas meus olhos estão abertos!
- Pois sua alma continua fechada.
- E o que eu faço? Como eu faço?
(silêncio)
- Vai me abandonar agora? Então é isso? Tirou de mim a capacidade de ver, apenas por capricho? Maldito seja! Acha que podes tudo apenas porque está dentro da minha mente. Mas veja, este mundo me parece velho e repetitivo. Não vejo sentido em viver aqui, muito menos em me relacionar com as demais pessoas. Elas são preguiçosas e mesquinhas. Eu não sou daqui, não quero ficar aqui.
(uma luz surge)
- Hum... Então era isso que você queria me dizer. Entendi.
- Estava aí o tempo todo? Covarde!
- Escute, Kalim. De fato, você está em outro nível. Este mundo já lhe é familiar há muito tempo. Sua essência, seu espírito e sua existência marcaram muitas vidas e no final do percurso você optou por voltar. Qual o sentido de viver num mundo cheio de sofrimento? Qual o sentido em se relacionar com pessoas cheias de defeitos e fraquezas? Para que levantar todos os dias e fazer tarefas que não preenchem o seu ser? Diga-me.
- Tudo isso, para viver. Presenciar o futuro que não me pertence e apostar no indefinido. Meu nome é Kalim, e eu não caibo dento de mim mesmo.
- Sim, Kalim, o menino que carrega em si o berço da luz. Nascido na lama, banhado pela vergonha de um mundo decadente, fez do seu sofrimento o caminho para a elevação. Ainda que esteja cansado, você, pequeno Kalim, trilhará na escuridão a estrada para que mais onze estrelas encontrem seu lugar no céu. Sei que não cabe dentro de si mesmo, pois no seu peito eu depositei o universo e suas constelações.
- Om.

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