terça-feira, 23 de agosto de 2011

O inverno e seus gravetos



Cortaram minhas asas, pois alegaram que não sabia aproveitar a liberdade que tinha. Tiraram as minhas penas. O motivo? Não era digna da beleza reluzente que elas traziam ao meu ser. Arrancaram meus pés e me condenaram a comer poeira pelo resto da eternidade. Contudo, ensinaram-me o que era vingança. Então, coloquei em prática tudo o que aprendi.

Eu passava os olhos por aquela pilha de livros sobre animais. Ainda não sabia ler, mas admirava com toda a força os traços e cores que a natureza havia utilizado no momento em que criou a fauna. Imaginava o que cada palavra dizia sobre as criaturas fantásticas que a terra gerava... Eu ainda os admiro, confesso.

Naquela noite, fui até os fundos de casa olhar os cavalos. Percebi que estavam inquietos e, sem pensar duas vezes, comecei a cantarolar alguma coisa. Esses animais eram como as asas que sempre quis ter. Com eles, eu era capaz de voar e sentir o vento e o mundo como nunca ninguém havia sentido antes. Eu os amava mais do que a mim mesmo. E um dia a ganância os tirou da minha vida. Ela alegou que eu mal sabia fazer uso do meu tempo livre e, ao invés de procurar conseguir mais bens materiais, eu gastava meu dia cavalgando sem rumo.

A tristeza veio, claro, mas não me rendi. Minha irmã nunca disse uma palavra. Recusou-se a falar desde o nascimento. Deixou os médicos perplexos quando saiu do ventre de minha mãe. Era uma garotinha de olhos vivos e espertos, mas com a boca cerrada. Só que nós conversávamos muito à noite. Ela não precisava de palavras, só tinha que ter seus lápis coloridos e uma folha em branco. Naquele dia, disse-me que eu podia voar mesmo sem cavalos, o que precisava fazer era fechar os olhos e sentir o vento como nunca havia sentido antes.

No jardim, sentei próximo à árvore que minha avó tinha plantado. Era uma tarde quente e de pouca brisa. Esfregava minha mão na terra como se tentasse sentir algo a mais. Sentir algum pulso de vida que viesse das entranhas do solo. As folhas da grande árvore pousaram-se sobre mim. Meu corpo estava coberta por uma outra pele. Eu sentia a tal pulsação. Uma respiração única que entrava em perfeita sintonia com as nuvens que caminham sem pressa pelo céu. A chuva era anunciada e de repente a mão de alguém me puxou. Tirou as folhas que me acolhiam e a voz de trovão disse que não devia me sujar daquele jeito. Que minhas roupas novas não eram dignas de tal imundice trazida por tais folhagens.

O inverno chegou. As casas desapareciam e as pessoas eram como fantasmas. Eu já me conformava com a solidão dos próximos meses e buscava na escrita algum conforto. Certa manhã, acordei e decidi que iria buscar gravetos para fazer uma fogueira e esperar pelo anoitecer. Queria ficar do lado de fora, queria respirar o ar gelado. No meio do caminho percebi que alguém me seguia. Ele tinha o meu tamanho e os meus gravetos nas mãos. Evitei seus olhos por alguns instantes, mas depois percebi que os mesmos tinham um tom de amarelo único. Ele me entregou a madeira e seguimos juntos para o coração do bosque. Lá, contei a ele como haviam arrancado minhas asas e por quais motivos tiraram as folhas que um dia cobriram meu corpo. Sem expressar espanto, contou-me sobre todas as coisas que era obrigado a fazer apenas por ser filho de quem era.

Um abraço e nada mais. O frio se afastou rapidamente. Permiti-me aproveitar tal momento como se fosse o último e de fato foi. Uma mão me puxou pelo braço e então cortou meus pés. Trancou-me em casa e disse que jamais sairia novamente. Falou sobre a vergonha de ser o que eu era e então me privou de congelar para sempre aquele instante. Desde então, optei pelo chão frio do quarto - revestido por uma madeira envelhecida - e a poeira que nasceu da saudade tornou-se minha companheira. O frio e o chão de madeira, o inverno e os gravetos que nos uniram. Seus olhos amarelos voltam durante o verão e eu, que tanto aprendi com a vingança, só lhe ofereci uma doce maçã.

Você me libertou e eu te trouxe o mundo e seus mistérios. Troca justa.

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