quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Itsuki

Quando você entrou em meu quarto, tive a certeza de que seria o fim. Eu já esperava por isso. Pensar que viajei tanto, por tantos mundos, paralelos e, ao mesmo tempo, desviantes, mas sempre vazios. Nenhum deles, entretanto, apresentou-me uma presença tão sutil como a sua. Nem no absoluto vácuo dos limites de universo senti tanta paz. Sua chegada era minha partida. Finalmente eu sentiria saudades de mim. Permitir-me-ia fazer falta a mim. Não fez. Hesitou.

Este mundo estranho tinha sua graça. A falta de sentido nas expressões era o que mais me interessava. Pareciam, propositalmente, destoarem de qualquer linha a tecer a malha das realidades. Riam de si mesmos e dos outros, num eterno ciclo de bocarras com caninos serrados. Não eram mais tão bestas, porém mantinham os caninos. Tudo era risório, descontinuado, saturado demais e, ainda assim, interessante. Da outra ponta da estrela já morta brilhava o planeta extinto que nunca parou de rir de si. Orbitava no passado de pura poeira sua graça, como anéis solitários na lembrança a insistir no brilho. Eterno brilho.

Assistimos juntos ao último capítulo que eu veria do meu programa de TV favorito. Era o seu também. Por isso, creio eu, não me tirou a vida de imediato. Achou graça no meu flutuar insosso e espiralado do corpo. Virei-me, olhei-te, rimos e vimos àquele paradoxo contínuo que nos fazia morrer de gargalhar em vez de silenciar antecipando o velório esperado. Eu não morri naquele dia. Você não me matou. Nascemos um para o outro e o parto foi normal. Natural feito o estranho gosto pelo programa insosso.

Você queria o fim de todos —menos de mim. Isso era o que eu mais amava. Sem ninguém ao redor, poderíamos ser as últimas faíscas na penumbra sideral. Não haveria ida nem chegada. Juntos, você com suas longas pernas dançando feito lâminas e eu com braços dos outros atravessando as fissuras que crio no tempo e no espaço, ligaríamos os distantes; chamaríamos os esquecidos; permitiríamos que os mundos se conhecessem ao tornar a teoria do espelho reflexo não mais invertido do saber universal —da linguagem tão significante que passa a dispensar o significado. Nós dois, entrelaçados, predicando o par de assujeitados.

Seu plano era o meu. Mesmo com minha coleção de dimensões o seu plano era o meu. Único, segui-o cegamente. Perguntou-me, nas noites que se seguiram: “Você pode engolir quantos mundos?”. Respondi indagando quantos ele conhecia. “Além do nosso, tantos vários, muitos. Disse a ele que poderia abocanhar todos, pois meu vazio desconhecia fim. Desta vez ele não riu. Não rimos. Segui-o silenciosamente.

Antes de ti, existi sem relógio. Atravessei espaços imaginários que brotavam de inconsciência alguma. Nem teriam como. Ausência de eu, de ele, de aquilo. Os verbos eram poucos, pois as ações praticamente não precisavam existir. O passar simplesmente se anemiava de qualquer pulsação. Sem relógio a coleirar minha presença. Sem parto normal. O corte era cesariano. Anunciava minha chegada como a de um rei sem súditos. Eu apenas passava sem significado. Insignificante.

Por não ter berçado dentro da boca da mãe, também não fui engolido. Aprendi a engolir os outros. Não com minha boca, mas com a daquele homem diferente. Ele não piscava. Os lábios eram grossos. Em vez de pele, sombra. Umbro demais. O rosto do universo, acredito eu. Encontrei uma forma de fazer com que ele tomasse pela boca o que eu não conseguia deglutir com os olhos. A troca era justa, penso hoje: ele devorava meus incômodos, eu o enganava ao encher sua goela com a indiferença cáustica de minha negligente razão. O homem escuro desconhecia as horas, os ponteiros e os três pilares do tempo: passado, presente e futuro. Era ele, o tal homem, um novo antielemento: o esquecimento —aquilo que pode ser passado, ocorrer no presente e ser a única certeza do futuro, a de que sempre, sempre, iremos esquecer de algo amanhã.

Dói vê-lo agora, em meus braços, tão ferido. São as marcas que provam o quanto de seu sangue você dedicou ao seu plano. Lutou bravamente, sem deixar de dançar. O olhar fixo foi sua marca de guerra, e confesso que admirei cada golpe que levou. Como não degustar a rigidez da sua carne ao repelir estocadas? Eu não abro a boca da cara por vergonha nela. Eu abro a do estômago, mas quem devora é o homem sombreado. Porém, no seu caso, fui eu que desejei, flexionei o maxilar e aconcheguei teu resto. Caído, o que me restou dizer foi que agora te levaria para um outro lugar onde não precisaríamos mais nos separar. Era, agora, a vez do meu plano.

Era agora. Foi neste momento. Aconteceu neste instante. Li certa vez, nas palavras de quem adormeceu sobre as colchas da obliteração, que a história não é o passado. Pelo contrário, por ter o dom de trazer ao presente o que aconteceu num passado qualquer, faz-se tão contemporânea quanto o irritante presente do indicativo. É história porque é agora e o “para ontem” se esvaziou de sentido. Eu conto sobre nós dois nesta dimensão estranha porque não há começo ou fim quando, ao entrar no meu quarto, a pessoa me fez esquecer, finalmente, do fim.

Eu só quis.

domingo, 17 de novembro de 2024

Carta 1

 Sentei pra te escrever. Acabei de fumar. Voltei, inclusive.

Por esses dias eu revirei uns CDs antigos com pastas mais antigas ainda e achei uma de nós dois. “Time for Heroes” é o nome dela. Estava lá, com algumas fotos nossas, especificamente de um dia em que fomos beber juntos pela primeira vez na Augusta. Foi Original de 600ml. Tocou-me. Senti falta do junto. Era bom. Amortecia a parte dura de mim e parecia que eu era tudo —que não precisava mais de nada.

Tem um vídeo nessa pasta. Primeiro, peço que você fale alguma coisa. “Alguma coisa”, responde você, rindo, e chamando sua fala de “clichê”. Em seguida, eu digo algo como “esta é sua chance de se declarar pra mim”. Você responde “olhe nos meus olhos...”, ri novamente, e o vídeo acaba.

Na noite seguinte sonhei contigo. Encontrávamo-nos em lugar algum e só me lembro do seu rosto e você a me dizer: “sabe em que momento eu comecei a amar você?”. Não houve resposta. Acordei e só.

O eu mora no centro de si. Abraçando-se, eu fica protegido por filetes de vidro cuja flexibilidade de topologia impossível cortina feito soprar morno os desejos todos. Orbitam o eu com as lâminas do medo.

Será que você ainda me lê? Aqui, talvez. Falou, um dia, que ainda passava na frente de minha casa e imaginava se ainda estaria ali. A gente se viu outras tantas vezes depois daquele dia da Original. Só que eu nem faço questão de lembrar delas. Só uma que valeu a pena ter vivido contigo, neste meio tempo: o dia em que ficamos no telhado da sua casa, sob céu estrelado.

Só sentei para te escrever  mesmo. Não terá beleza, estilo, estrutura ou o que mais precisasse ter para fazer disso aqui literatura alguma. Acabei de escrever duas palavras fortes entre metáforas e apagar. Entendeu? Não sai. Eu sei, eu sinto, eu tenho as palavras, mas não sai. Ainda assim eu sentei aqui para te escrever. Fumei e deu uma melhorada. Está tocado Smashing Pumpikins, a versão instrumental de “Tonight, Tonight!”. Sempre me faz lembrar de céu estrelado.

Era isso. Não sei se você ainda me lê. Espero que sim.

Escrevo mais depois.

 

 

domingo, 19 de maio de 2024

Se eu dormir agora

Pareço perder a violência no que sinto. A compensação pelo nunca vivido se tornou a promessa feita pelo amanhã que nunca me sabe. Falta algo. Falta tanto, mas algo parece faltar mais. Não que cave buracos, não é isso. A sensação é a de que muito se tem para cobrir o pouco que foi. Eu queria reencontrar a violência no que sinto. Dava alguma cor ao invisível. 

Não consigo explicar a dor nem a raiva. Percebo que inicio sempre o diálogo perdendo o tempo e, ao mesmo tempo, apelando para o outro. Em cinco segundos, lembro-me do céu, da temperatura, se ventou ou se peguei chuva. Assim inicio o tempo pelo tempo, do relógio ao relâmpago. Vou dizendo, mas ainda sem conseguir explicar. Lá parece não doer. Talvez o tempo despendido a tecer histórias pela boca como se minha a língua cozesse, alivie. Não sei, estou confuso - repito isso constantemente quando sou obrigado a falar de mim para o outro. Ele ali, parado, às vezes sonolento, com as cortinas pesando e a visão direcionada a mim, horizontando o nada e tentando me convencer de que não o engano. De que ele sabe do que eu não estou falando. 

Quando anoitece, sou eu e os tantos. Hoje o aperto veio logo depois de um sono mortífero, relaxante, como imagino que seja a partida de quem falece oniricamente. Elaborando a inexistência no único lugar onde realmente somos felizes: no delírio do sonho. Abri a janela, o céu lá. Com costume de criança, olhei, novamente a fabulação, a loucura de falar telepaticamente com o vácuo do espaço. As drogas ajudam, elas tiram a culpa pela insanidade, desespero, pela solidão que nunca é preenchida com a presença do outro. Ele, ali, parado, às vezes mais imaginário do que nunca, pois jamais existiu ou existirá. 

Agora dói. Já soa natural pensar no sofrimento que nunca passa. Agora dói de verdade. Talvez consiga descrever agora. Seria algo assim: 

E quando eu me olhei, revi toda angústia. Lembrei das vezes em que não chorei por vergonha de ruir. Das outras que engoli o choro porque quem me cortava parecia querer-me como coisa, não como gente. Eu sofro quando me recordo que sempre quis fazer o bem aos outros, agradar, ser útil, ajudar, não porque me obrigavam, mas pelo fato de que eu não sabia sentir de outro jeito. Dói quando não me deixo esquecer do quanto de amor que eu sufoquei. Com as mãos em seu pescoço, apertei firme enquanto secavam seus lábios e molhavam seus olhos as lágrimas minhas. Eu o matei poucas vezes, mas todas doeram demais. Pouco é muito quando faz o tudo, o todo e o tanto. 

É um rasgar lento. Vai me abrindo e deixando escorrer nada. Abre e não sai nada. Por que certos pensamentos se repetem sem parar? Sumir, fugir, não existir, isolar, esquecerem-me, deixarem-me, assim é melhor, assim eu sei como é, assim eu sei como é sofrer, assim eu sei como eu sou melhor sofrendo, assim eu sei que é melhor sofrer sendo eu do que o outro. Ele, ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa. Eu digo que agora dói. Finalmente, dói. 

Não sinto as linhas do mundo amarradas ao meu corpo. Os laços, os nós, na garganta, em todo lugar, nós, eu e o outro, ele, ali, nós, na garganta, mas eu não me sinto preso ao mundo sendo sua marionete. Eu não sinto aquela ligação que me mantinha nele, com ele. Não sinto mais. Apagaram as luzes novamente. Eu e os tantos apagamos. Deste vez doeu como nunca. Um novo doer, um novo amanhecer igual. Eu desvejo o mundo e nele não me enxergo. Invisível, mas há outros tons. Eles, ali, pintados, um amarelo muito claro, beirando o branco, o outro poeira rosada, o profundo índigo e o azul mais claro remetendo à inocência. Eu acho que estou em órbita, agora na atmosfera, na moleira do mundo, solto. E triste. 

Um balão vagava rumo ao infinito. Não havia mão alguma para segurá-lo. Enquanto existisse nada dentro de si, continuaria. Por onde passava, ninguém. Onde chegava, não há. Quando parava, não ia. Um balão negro que sobrou do mundo. Perdeu a linha, subiu pra cabeça, agora nada. Não se vai longe quando o destino é o infinito. Para sempre lugar nenhum. Nem longe, nem perto. O balão solto. E triste.

Se é algum tipo de doença incurável, não preciso saber. Sei que é porque sinto o que é. Passo as pontas dos dedos sobre o peito, deixo que tropecem nas ondulações ósseas e, então, esvazio os pulmões pressionando-os como se os quisesse reviver. Já não dói mais de tanto que dói. Sem lágrimas dói mais ainda. Sem lágrimas dói como nunca. Dói como nada, como ninguém. Dói tanto com ninguém. Dói como um novo amanhecer igual. Dói como o outro. Ele ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa.

- Se eu dormir agora, morro sem dor, como ninguém?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Este quem aquém

Corri das situações dramáticas. Talvez tenha errado em não recorrer aos caminhos comuns, aqueles tanto indicados pelos outros. Escrevi uma mensagem curta apenas dizendo que precisava me recolher. Não deixei espaço para que oferecessem o pegar dos cacos no chão. Apavorou-me a possibilidade de querem. Num movimento que só eu conheço, aproximei-me e, na mesma velocidade, desapareci. Os poucos que acharam a mim ter alcançado erraram. Sem problemas, desde que não voltem a me procurar. 

As luzes bonitas banhando as calaçadas. As luzes sempre passam pelo meu olhar, mesmo hoje, tempo estranho em que pareço ter me coberto de uma apatia esverdeada feito os contos de Poe. Ainda assim, presto atenção nas luzes. Parecem elas vir com música. Mitski, creio eu, no atual estado de psico que me encontro. Estado em que deixo um elemento de composição sozinho. Estado de abandono. 

E envelheço meio a isso tudo. Distante de uma forma de vigor irritantemente incapaz de aceitar seu fim. Eu já aceitei muito cedo, inclusive quando não tinha nem chances de vencer as tantas vontades que tendem a impulsionar a vida. Os empurrões todos, um inferno, um calor de gelar que parece ter a pressa dos atrasados juntos, esperando uns aos outros. 

De repente eu só quis querer. Tive muitas vontades de me sentir querendo muito do que eu, conscientemente, sei que jamais terei. Quis muitos eles pelo caminho, fui deixando-os sem, às vezes, jamais tê-los tido concretamente. Sabe-se lá por quais motivos minha mente se organizou assim. Quando te ensinam um único jeito de dobrar as roupas, é com essa mania que você seguirá dobrando, ainda que, vestidas, marquem a silheta errada de seu corpo. É o que é, como é, como sempre foi.

Querer tem disso, de desdobrar e não deixar traço que recupere as formas de antes. Por via das tantas dúvidas, acabo passando por onde o ferro desdobra. A sola fica quente, queima às vezes, mas ao menos não desamasso. Pelo menos eu quero sem ser querido. Quem quer gente toda amassada? Se alguém quis, afastei-me antes de sentir o querido em mim. 

Foi-se a poesia que nunca existiu aqui. Foi-se tudo. Foice que cortou até o que nem tinha. Dancei sozinho desde a primeira vez e acho que isso me passou. Daí em diante, toda vez que a tempestade se forma, eu me arrumo pra ficar descalso e amarrotado debaixo do vendaval e só toca meu corpo as ventanias todas.

Medo e raiva de trovão não tive e não tenho. Dancei perto das árvores, não debaixo. A segurança vinha daí. Delas. Sempre delas, as com raízes escuras e firmes, pacientes, centenárias, as antigas que sem medo do céu me permitiram herdar um pouco desta coragem. Só que eu me movimento demais. Não finco tanto. Por isso caí nas graças da fúria, balançando de envergar a espinha.

Desta vez eu sangrei menos. Não por falta de lasco. A verdade é que nunca tive muito o que escorrer e agora sobrou menos ainda. Nunca teve muito o que vazar de minhas brechas além do imenso tudo que eu ainda mantenho apertado naquele canto de quarto que tomo conta na forma da inocente criança que caiu no buraco de barro e de lá sozinha saiu. Sozinha se limpou, mesmo que terra não seja sujeira. Ela, a criança, com o todo imenso e amassado entre suas mãos, um querido, ele, por quem, hoje grande, teme que o queiram. Este quem áquem. É um quem aquém.









sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Maduro mole

Calor, pouca roupa, uma regata, um shortinho, pés descalços. Tudo em tons amarelos, azuis e verdes. Aqui é assim, a vida no calor perfuma feito azeite na brasa, escorre lenta como gota de suor e se acaba num mar de lágrimas, de onde vem o sal da terra. 

Sobe a maré, desce o luar sob as ondas, quente, tudo, sola, areia, coqueiro queimado, cerveja  —sol líquido, um copo suado, um corpo ao lado, querendo-se, sentindo seu peso, pena ou pesado, vai bater asas de qualquer jeito quando sobrevoar as ideais do outro, os desejos dos outros, igual carcara faminto. 

Quem se quer no verão nunca mata a sede. Continua bebendo de todas as fontes, ri e dança, a música ganha outro tom, uma época diferente, mais livre, pelando à flor da pele e no cabelo fazendo arranjo.

É assim quando se olha pra ela, com os olhos de oliva, com os fios relampejando no mangue dos pelos cujo douro vem do fogo no topo do céu, a amolecer moleiras. Um cheiro de fruta no rosto, a boca ainda melada, os dedos brilhando e quando toca, gruda. Aí a gente não se larga mais. 

Precisa rodar, ficar tonto, amortecer os lábios e se sentir dono do mundo. Por alguns segundos, o delírio saboroso da caminhada pelo deserto sem oásis. A corrida pelo sertão seco, montado nas carcaças amanhecidas.

Café quente na mesa, língua mergulhada no amargor perfeito do bom dia sem resposta. Não existe previsão do tempo. É sempre hora. É sempre calor. É sempre muito. É todo muito, sempre hora. 

Se a pele está boa, o coração e tudo de dentro também está. Se o cheiro é de gente, sinal de saúde. Se arrepia, não é de frio, é de vontade daquelas que torra. Abana, sopra, só aumenta a brasa.

Não tem idade sob o sol. É todo mundo mole de tão maduro.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Será que ainda?

Foram as poucas verdades que trocamos capazes de colocar sua presença como o teto das minhas ideias, para onde olho antes de dormir e tento imaginar a quantos anos luz estão os meus quereres dos seus. De longe, sinto sua falta, mas nego. Antes, queria saber se você sente a minha.

O silêncio que nos define, hoje, marca também uma insegurança compartilhada. Tento eu tratá-la como orgulho, como vingança, qualquer outro sentimento que não me coloque de joelhos, novamente, diante da vontade de te ver, conversar contigo, sentir seu cheiro quase indetectável, ouvir a voz suave e cansada de quem, no fundo, gostaria de ter vivido o pleno pico da sua energia vital.

Eu queria conversar e não consigo porque me limito à pequenez do que me resta de brio. Assim os meses se vão. No lugar, um branco absoluto que nada marca para a memória do amanhã. Nós dois estamos escrevendo o tempo perdido e dele só recordaremos, talvez, da vontade oculta de se encontrar mais uma vez.

Falo por mim e por você porque ainda te sinto. Não vir atrás de mim, ficar aí no seu canto, com sua vida, interagindo com outras pessoas como se tudo o que passamos não fosse nada além de uma época fadada a crescer e se tornar chata, entristece-me. É uma tristeza diferente, porque identifico nela a mim mesmo. 

Marca-me a pele do espírito como se desse a ele corpo. A tristeza diferente que dói, mas não indigna. Diferente porque é conhecida e atende pelo meu nome, mas estranha quando conto sobre o que machuca. Parece que nunca me viu e desaparece quando eu a vejo. Diferente porque é paradoxal, trata o mais do mesmo como nunca visto antes. Quando escrevo sobre ela, sou descrito.

Tentar definir o amor é fuga para não lidar com a falta de certeza que ele essencialmente carrega. Se ama, treme. Perde base, vive em risco. E eu não sei se amo como tratam por amor as letras das músicas que gosto de ouvir quando estou triste. Defino que é amor porque assim fica mais fácil sofrer. Fica mais comum, diferente da tristeza – aquela estranha.

Diga se ainda pensa em mim, mas não para mim. Diga a você mesmo. Façamos diferente desta última vez.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Fruta

O descalço da terra sob os pés amacia a passada. Gira, gira, cai no calor do entardecer, suado rodopiante, sozinho. Escorrega bastante, entregue ao tombo, ainda quente, como se tivesse acabado de nascer. Cai de maduro com mel na casca escorrendo devagar, suando os olhos dos outros, colando de leve na pele de quem por ele passar. O perfume de fruta, o olhar de fruta, o peso de fruta, sabor de ninguém. Só dele, só ele se sabe.

Não é festa, é agonia. Queima por dentro e por fora num azeite-desejo sem fim –cheirando a cara toda. O vizinho olha pela fresta da janela e se arrepia. Sua boca abre até a goela fazer bico. Nada sai, nada entra, fica lá olhando o outro semeando.

Queria um dia pegar um vagalume com as mãos e manter sua luz acesa dentro da mais profunda penumbra. Desejo de criança e de adulto, de velho também, esse de manter alguma luz. Nada do calor passar, nem a noite esfria. Pra dormir é mais de um banho. Tem que toda hora se molhar. A pele tá boa, forte, aprendeu a lidar com o olho do sol. Não descasa, só muda de pele quando precisa sumir.

A casa é pequena, de longe não dá pra ver. Está rodeada de bananeiras, uma cerca de madeira capengando no arame banguela, uma mexeriqueira seca, o que mais couber na vista de desocupado. Ascende a luz alaranjada pra não esbarrar nas coisas que nem tem. Toma cuidado porque não há mais do que cuidar. O que cuidar. O dia passa junto da noite, começam e encerram juntos. Ele fica ali, na sua vida medíocre, achando que o mundo já é grande demais para ele alargar com suas ideias. 

 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Mas só

No meu azul afundo em busca do que ainda não descobri sobre mim. Acompanhado pelo passado que reflete cada rosto a me abandonar no passado, finjo passear pelo por vir como quem desfila numa calçada qualquer, brincando de ser importante. O que move é a promessa do depois, aquele em que nem acredito, mas mantenho porque não acreditar em nada me obrigaria a ter fé no que resta: eu mesmo. Não me vejo, sou cego para mim, nem espelho dá conta.  

Tento, então, ler-me através dos outros. Poucos, mas outros, com quem tive magnetismo uma noite e na outra despertei com repulsão. Amanhecer é agonizante. Sempre fui de anoitecer, mas não se escapa da matina sedenta. 

A carta dos olhos castanhos e cabelos longos 

Você é incisivo. Perfura com o olhar afiado e fatia minha alma sem deixar que sangre. Quando falo contigo, percebo o quanto me observa com interesse - e isso me interessa. Às vezes é duro nas palavras, mas compensa quando decide ser doce, carinhoso. Eu me sinto livre contigo, porque sei que podemos dançar de qualquer jeito, sem se importar com os demais. Você não liga para meu jeito desleixado, nem reclama do fato de eu não usar desodorante. Sei que te incomoda, mas você não reclama. Prefere me observar e colher nos detalhes das minhas tantas falas uma brecha para demonstrar seu amor. Acabei percebendo tarde demais. Quando eu te quis, você já não me olhava.  

A carta da pele macia e do toque molhado 

Eu insisti em nós. A gente nunca chegou a se beijar ou algo do tipo, mas estávamos sempre juntos e para mim era como se fosse um relacionamento a dois. Amizade, no caso, mas eu sentia que de você fluía outro tipo de sentimento. Você nunca tentou nada, mas foi justamente seu recuo, seu silêncio, que sempre me disse tanto. Eu sentia seu calor enquanto o meu tocava a sua pele poucos centímetros de distância entre meu pegar e seu pescoço. Lembro dos cheiros, do tempo abafado, de tudo. Do céu frio à noite, de você me esperando e fingindo que não. Minha mão transpirava quando fazia algo que você pudesse recriminar. Perdi as contas de quantas vezes senti a dureza de suas palavras. Mágoa, sim, só que não era maior do que o prazer de te ter por perto. Perto não, em mim, ainda que sem contato direto. Você, na verdade, sempre me tocou onde ninguém mais chegou a tocar. 

A carta da voz funda e do sorriso quebrado 

Se eu pudesse, tomaria seu cérebro para mim. Tomaria sua vida, seu jeito, tudo. Porque sempre amei, desde o primeiro encontro. Eu querendo me mostrar superior, indiferente, e você - naturalmente indiferente - me deu uma lição logo de cara. Na suavidade do seu despropósito, olhou-me diretamente e sorriu como se estivesse revendo alguém que há tempos procurou. Eu te procurei, em vários e várias. Acabei achando só em ti mesmo. Quando levei um filme para nós, quando estava ao seu lado, quando quis e você não entendeu, quando você entendeu e quis, quando quisemos e fizemos, eu te procurei. Depois sumi, porque somos assim. De partida. Mesmo sol sobre a cabeça, mesma sombra no sorriso, mesma voz de despedida.

A carta da bondade alta e dos braços longos 

Talvez te abraçar me fizesse sentir proteção das grandes. Você, menor, aconchegava as ideias sempre em ebulição e o calor delas me envolvia por inteiro. Era como se a segurança se materializasse em alguém que eu finalmente conseguia alcançar. Assim a gente se amou, longos abraços, curtos momentos. O fim se prolongou junto da distância inevitável. Quando me perdi, você foi me buscar. Quando encontrei em nós o primeiro traço de amor, errei, traí sua confiança, mas amadureci sem ela e hoje sei o quanto vale. A gente, de tempos em tempos se reencontra. Eu com meus braços querendo seu calor e você com seu silêncio vulcânico me lembrando de que não mais posso te ter. 

A carta das lágrimas doces e do coração salgado 

Não sei bem por que estou aqui. Sempre ficou evidente de minha parte que não lhe amaria para além da amizade. E não amei mesmo. Sem amar, entretanto, vivemos juntos por anos. Juntos numa proximidade íntima e só nossa. Só a gente entende - e nem sempre, às vezes. Entre desentendimentos, brigas, mágoas, voltamos, nem sempre melhores, nem sempre inteiros, mas querendo o outro ainda na história da vida. Eu, sinceramente, não consigo imaginar o quando me amou, mas tenho a mágoa sua e as entrelinhas de cada palavra que não me disse - nem me escreveu - como sinais de que doeu. De que eu te inundei muitas vezes, apenas por ser franco demais. Por nunca ter imaginado para nós uma vida a dois que envolvesse mais do que a admiração e carinho, cuidado, o amor mesmo que sentimos um pelo outro. Escrevendo assim até parece romântico. E é, só não me entenda mal. Daqui não vai brotar nada. 

A carta dos lábios acinzentados e corpo nu

Se tivesse que ser com alguém, seria com você. Por isso aconteceu. Mas só. Eu não tenho nada além disso para dizer. Há como chamar de carta apenas três ou quatro linhas? Não vou dizer que foi ruim nem nada, vou dizer que lembro, que foi bom. Na verdade, assim como o outro ali, não sei por que estou aqui. Acho que isso estragou a gente, sei lá. Talvez você espere algo ainda. Espero que não. Você é importante. Eu te amo, mas só. Cinco linhas já dá uma carta, será?

Só. 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Uma vela para a indiferença

As mais sinceras desculpas. Uso-as porque poupa da discussão inútil. Recentemente, senti falta de romper com alguém que amo até doer. Toda aquela faze de angústia que destrói a saúde me faz perder os quilos que não tenho e me sentir morto. Um amargo que não tem gosto. A boca até procura, a língua tenta se lamber, mas nada. Tem a raiva na saliva que espuma, sim, a vontade de ver o outro sofrer ao ter que lidar com sua própria falta de caráter - ou simplesmente falta que faz em mim. 

O que sei é que assim vão. Dias, meses, espelho sem meu reflexo, porque não consigo me olhar quando estou desse jeito, em trabalho de parto daqui para nunca mais voltar. Retiro os rastros, passo um pano molhado nos passos dados sobre minha memória vingativa e não quero lembrar o caminho. No fundo, se passa este ciclo de tempestades, eu sei que vou admitir tranquilamente que tudo aconteceu porque eu, ainda hoje, amanhã sempre, tenho dificuldade em acreditar que as pessoas são capazes de permanecer. Não são.

Começa como um fio. Estala a espinha e arrepia a pele. O olhar congela porque não quer perder mais de vista. E tudo o que ele faz parece interessante, principalmente o que não é. Entra nas suas ideias e não se incomoda com a desordem delas. Vai ficando, quando viu já fez um mês, um ano, seis, passaram-se dez e ainda estamos aqui, eu escrevendo e ele nem sabendo. Enrola há tanto tempo que já tenho uma malha de lembranças de molho. 

Se existe alguém para quem eu tenha rezado mais nessa vida foi para a indiferença. Não há salvadora maior. Todos os dias eu peço para que se instale em mim. Todos os dias eu peço para sentir menos, para fazer jus ao meu jeito fechado que não compartilha quase nada daquilo que se cria pelos meus cantos. Se é por fora indiferente ao mundo, por dentro por que não? É como se tivesse algo ou alguém que simplesmente se recusasse a me deixar ser tão miserável quanto a vida leva a ser por meio das convenções sociais todas que impõe. Parece que há uma criança que não me deixa esquecer daquilo que impede a indiferença de entrar. Então esqueço eu dela. Fecho as janelas.  

Por favor, seque-me. Não deixe nada. Eu prometo que te vendo minha alma se isso existir mesmo. Só leve tudo, ele por completo, e os que virão também. Deixe-me preparado sempre para o pior, faça-me nem duro nem mole, faça-me intocável, alguém que passa, que todo mundo passa e nem percebe. Alguém que já vem para ir, chega para partir, alguém que passa. Por favor, não quero ficar, não quero mais toque e apego, não quero acordar na casa dos outros e voltar para a minha sozinho, todas as vezes, não quero ficar por ficar, isso nunca me fez bem, sempre me tirou do sossego que eu mantenho ao fingir ter controle sobre os caminhos da vida que quebram minhas esquinas. É só tudo isso que te peço, faz-me como você, assim, apática, de pé, inabalável, nêmese inexpressiva. Amanhã eu quero acordar como por vezes já me senti: vazio, comigo mesmo. 

Se hoje eu acender uma vela, algo que não faço, será para a indiferença.  




Criança quieta

Com as mãos pequenas e egoístas, querendo tudo ao seu alcance, esmagou o mundo. Não sobrou nada, nem ninguém. Só sangue e pedaços de gente de ontem, passada, gente que não mais faria visita. Criança tem desculpa, pra tudo, pode tudo, porque não sabe ainda do tamanho que é o nada do futuro adulto. Criança pode, por isso nunca morre, fica dentro da gente - a que mata e não que morre, por décadas, até se cansar. Criança pode, com as mãos, esmagar o mundo. 

Não precisa gritar. Não faz birra. É criança das quietas, aquelas vistas como piores, ruins desde sempre, que vão, fazem e não deixam rastro. Nem as manchas nas palmas conferem culpa. Assim, como quem não quer nada, faz porque é criança. Porque pode. Sabe que será guardada e protegido no melhor lugar dentro da gente. Na morada do egoísmo que sempre quer, faz e não leva culpa. 

Quando penso na criança, vejo ela num quarto amadeirado, com uma janela de altura mediana, da qual se pode ver o mundo do pescoço, pendurado, prestes a se enforcar. Não precisa ficar na ponta dos pés, é uma visão confortável. Neste pequeno espaço, uma cama com cobertor de céu estrelado. Para a criança do meu quarto, morrer é se cobrir com o céu e dormir, enquanto flutua a cama para onde não sabemos. Esta criança precisa deste quarto. Um precisa do outro e eu dos dois, em mim, igual gente besta que sozinha não consegue ir além do que limita a camada da pele, a de baixo, não a que pela. A que sangra. 

Quieta, não precisa de mãe ali pra lhe mandar calar. Ela é naturalmente quieta. Nasceu sem choro, sufocada pela vida prematuramente custosa. Quando voltou à vida, antes mesmo de ter chagado nela, também não chorou. Chorou pouco essa criança, mas quando chorava, o mundo implorava para ser esmagado por ela. Tão boa, tão solícita, criança pura, daquelas que acredita porque não vê na mentira cor alguma. Acredita em tudo porque a cor é de verdade, verde, azul, vermelha, mas principalmente azul, às vezes a verdade é amarela feito sorriso da gente toda que merece ser esmagada. Nada pior do que ver o mar nos olhos daquela criança rebentando ondas pra fora dos cílios, correndo pelo rosto. Pior ainda era ser a causa de seu silêncio. Pois da sua boca só saía aquela doce palavra de carinho genuíno. O mundo ia dormir torcendo para não acordar. 

Doeu cedo. Sem entender, a criança foi. Acreditou. Sem saber, confiou. Sem saber, soube depois. A inocência é, antes de tudo, um escudo. Uma malha de aço impenetrável, mas com aparência de vidro. Vê-se através dela o que a criança não sabe esconder - porque nunca precisou. Sua fé nos outros e de que os outros ali estão para lhe proteger. Fé e transparência, é disso que são feitas as crianças caladas demais. As mais fáceis de serem esmagadas por gente. 

Esta, em especial, vive no quarto, protegida do afora. Sente falta de ter com quem conversar, mas às vezes eu consigo ter um tempo para ir visitá-la. Conta-me dos seus pensamentos, de como organizou as constelações todas por tamanho, de como as manchas no universo são tão coloridas, que ali há verdade pura e transparente, que o universo é independentemente da gente. E ele se finda também independentemente da gente. A criança observa tudo isso e suas mãos já pouco importam. Sangue não é sujeira. Sangue é gente pra escorrer. Esmagou todas elas antes que elas mesmas se esmagassem e, antes, fizessem da criança um mundo todo para explorar. Gente não esmaga criança porque prefere destruí-la ao longo da vida. Cabe a nós protegê-las no mais seguro de todos os lugares: aquele que não contamos o endereço. 

Dentro, bem nos confins de quem já não suporta mais ter que viver do outro lado da janela média, a criança redesenha o tempo e se conta de traz para frente. Esperando que, finalmente, o dia do seu não nascimento seja parido. Quem sabe assim a gente deixa a criança em paz. 

Hoje, ela só quer ficar quieta.