Pareço perder a violência no que sinto. A compensação pelo nunca vivido se tornou a promessa feita pelo amanhã que nunca me sabe. Falta algo. Falta tanto, mas algo parece faltar mais. Não que cave buracos, não é isso. A sensação é a de que muito se tem para cobrir o pouco que foi. Eu queria reencontrar a violência no que sinto. Dava alguma cor ao invisível.
Não consigo explicar a dor nem a raiva. Percebo que inicio sempre o diálogo perdendo o tempo e, ao mesmo tempo, apelando para o outro. Em cinco segundos, lembro-me do céu, da temperatura, se ventou ou se peguei chuva. Assim inicio o tempo pelo tempo, do relógio ao relâmpago. Vou dizendo, mas ainda sem conseguir explicar. Lá parece não doer. Talvez o tempo despendido a tecer histórias pela boca como se minha a língua cozesse, alivie. Não sei, estou confuso - repito isso constantemente quando sou obrigado a falar de mim para o outro. Ele ali, parado, às vezes sonolento, com as cortinas pesando e a visão direcionada a mim, horizontando o nada e tentando me convencer de que não o engano. De que ele sabe do que eu não estou falando.
Quando anoitece, sou eu e os tantos. Hoje o aperto veio logo depois de um sono mortífero, relaxante, como imagino que seja a partida de quem falece oniricamente. Elaborando a inexistência no único lugar onde realmente somos felizes: no delírio do sonho. Abri a janela, o céu lá. Com costume de criança, olhei, novamente a fabulação, a loucura de falar telepaticamente com o vácuo do espaço. As drogas ajudam, elas tiram a culpa pela insanidade, desespero, pela solidão que nunca é preenchida com a presença do outro. Ele, ali, parado, às vezes mais imaginário do que nunca, pois jamais existiu ou existirá.
Agora dói. Já soa natural pensar no sofrimento que nunca passa. Agora dói de verdade. Talvez consiga descrever agora. Seria algo assim:
E quando eu me olhei, revi toda angústia. Lembrei das vezes em que não chorei por vergonha de ruir. Das outras que engoli o choro porque quem me cortava parecia querer-me como coisa, não como gente. Eu sofro quando me recordo que sempre quis fazer o bem aos outros, agradar, ser útil, ajudar, não porque me obrigavam, mas pelo fato de que eu não sabia sentir de outro jeito. Dói quando não me deixo esquecer do quanto de amor que eu sufoquei. Com as mãos em seu pescoço, apertei firme enquanto secavam seus lábios e molhavam seus olhos as lágrimas minhas. Eu o matei poucas vezes, mas todas doeram demais. Pouco é muito quando faz o tudo, o todo e o tanto.
É um rasgar lento. Vai me abrindo e deixando escorrer nada. Abre e não sai nada. Por que certos pensamentos se repetem sem parar? Sumir, fugir, não existir, isolar, esquecerem-me, deixarem-me, assim é melhor, assim eu sei como é, assim eu sei como é sofrer, assim eu sei como eu sou melhor sofrendo, assim eu sei que é melhor sofrer sendo eu do que o outro. Ele, ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa. Eu digo que agora dói. Finalmente, dói.
Não sinto as linhas do mundo amarradas ao meu corpo. Os laços, os nós, na garganta, em todo lugar, nós, eu e o outro, ele, ali, nós, na garganta, mas eu não me sinto preso ao mundo sendo sua marionete. Eu não sinto aquela ligação que me mantinha nele, com ele. Não sinto mais. Apagaram as luzes novamente. Eu e os tantos apagamos. Deste vez doeu como nunca. Um novo doer, um novo amanhecer igual. Eu desvejo o mundo e nele não me enxergo. Invisível, mas há outros tons. Eles, ali, pintados, um amarelo muito claro, beirando o branco, o outro poeira rosada, o profundo índigo e o azul mais claro remetendo à inocência. Eu acho que estou em órbita, agora na atmosfera, na moleira do mundo, solto. E triste.
Um balão vagava rumo ao infinito. Não havia mão alguma para segurá-lo. Enquanto existisse nada dentro de si, continuaria. Por onde passava, ninguém. Onde chegava, não há. Quando parava, não ia. Um balão negro que sobrou do mundo. Perdeu a linha, subiu pra cabeça, agora nada. Não se vai longe quando o destino é o infinito. Para sempre lugar nenhum. Nem longe, nem perto. O balão solto. E triste.
Se é algum tipo de doença incurável, não preciso saber. Sei que é porque sinto o que é. Passo as pontas dos dedos sobre o peito, deixo que tropecem nas ondulações ósseas e, então, esvazio os pulmões pressionando-os como se os quisesse reviver. Já não dói mais de tanto que dói. Sem lágrimas dói mais ainda. Sem lágrimas dói como nunca. Dói como nada, como ninguém. Dói tanto com ninguém. Dói como um novo amanhecer igual. Dói como o outro. Ele ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa.
- Se eu dormir agora, morro sem dor, como ninguém?
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