Passei as férias tentando escrever mais algumas páginas de um livro que não sai da minha cabeça há anos. Nem um ponto sequer. Manteve-se dentro de minhas ideias. Recentemente, inclusive, só consigo pensar em cigarro. Digo “recentemente”, mas na verdade é cotidiano. Persegue-me esta vontade inegociável. Engano a mim mesmo dizendo que “amanhã eu compro um maço ou vou atrás de tabaco orgânico”. Amanhã nunca chega.
Também me acompanha as tantas angústias. Na verdade, não sei por qual motivo ainda me lembro do que não esqueço. Cigarro, angústia, a necessidade de vir escrever para registrar o que não lerei nos dias futuros. Não leio o que escrevo e isso nada tem a ver com arrogância de escritor. Não leio porque não me desperta curiosidade. Eu já sei o bastante de mim. Quando, às vezes, subitamente, descubro algo novo sobre mim, guardo. Nunca se sabe por quanto tempo durará – se é para sempre ou momentâneo. Nos últimos dias, comecei a pensar mais no futuro. Ansiedade provavelmente é a razão. Não sei pelo que espero, mas sei que é sempre pelo pior.
Enterrar alguém sem ter que ir ao enterro, não conseguir pagar as contas, ver a casa desmoronar, não sei, mas sei – é o pior, sempre. Pode parecer cruel, mas desejo fumar e me ver sozinho, por completo, sem ninguém dependendo de mim. Talvez porque eu saiba como lidar com meus problemas, porém odeio ter que lidar com o dos outros. Cobro-me demais quando sou requisitado por outro. Se não consigo ajudar, carrego, então, a desgraça alheia junto da minha. Dobro o peso no lombo e não peço ajuda. Meus amigos sempre vão dizer que preciso de tratamento, terapia. Estão certos, mas eu já sei o bastante de mim para entender que não desejo conhecer nada novo ou revirar o velho. Estar como estou não é bom, só é pior quando há pessoas evolvidas. Gente ligada a mim. Eu não quero. Queria gente por perto, mas que não estivesse ligada a mim, dependendo de mim, esperando por mim. Ensaiei uma resposta para meus amigos quando perguntassem “o que você gostaria de ganhar”. Pensei em dizer: amor de quem, por ventura, eu amasse. Nunca perguntaram. Nunca responderia isso também. Amor não é dependência, mas amar é.
Morre o jovem que nunca nasceu. Ele, também, uma promessa vaga. Vai-se o tempo, a vontade, a gana, fica o que sobrar. A gente come sem sentir sabor, parece até que fumou demais e perdeu o paladar. Não se fuma para sentir gosto, pelo contrário. Ter-me-ias querido ser insípido no beijo, na fala, na cala, no céu cavado da boca. Não fui. Traguei demais, camuflei-me na névoa que perfuma o fim com cara de fim, sem riso, sem abraço, sem gosto de fumante com língua de cinzeiro na do amante. Estourei meu peito.
Que os dias durem menos - como um maço - quando se há o que entregar de si para o mundo. Durem mais - como o último cigarro - nas vezes em que não somos encontrados. Nos poucos dias em que nos tornamos inalcançáveis, incansáveis. Mão nenhuma nos toca, a polícia não nos pega a troco de nada, ninguém mais nos vê pelo contraste de nossa cor. Somos só nós, eu, você, longe e sem contato, sabendo um do outro mais do que o suficiente. Eu te imagino fumando.
A mim, mais um dia. Depende de como ele for, eu fico mais anestesiado. Olho sempre para meus dedos e vejo o quão tortos são. Lembro de minha vó, de ter sentido, a vida toda, que já nasci com mãos envelhecidas. Mãos de bruxa que, com um cigarro por entre os dedos, ganhavam vida no desgaste. Amarelavam as unhas, pareciam lentes antigas de óculos ou durex de décadas colado em alguma foto, caixa ou controle remoto. Amarelam com o tempo. Fica o medo estampado. Quem fuma tem medo de quê? Se o maior deles é a morte, pode ser que seja dela. É possível ter medo sem se amedrontar. Também é possível amar sem depender. Já vi nas histórias dos outros, só na minha que ainda não.
Este livro será escrito, eu sei. Amanhã eu fumarei, sei disso.
Amar, depende.
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