O toque calejado não sente muito do topo da gente. Escorrega pela casca esfregando as montanhas secas sem cachoeira, secas e ressacadas, sobre a pele ressentida. Não se sente muito, mas passa a mão mesmo assim. Toca pra chamar, num frio momento em que se tenta soprar a brasa do tempo, uma fagulha de chance, um carinho qualquer pro cansaço próprio. Toque de recolher.
As horas passadas e ultrapassadas
do dia sem fim nunca chegam. Nunca bastam. Seguem firmes e fixas no infinito
buraco das obrigações. Contas choram mais do que filhos que nem se tem, dívidas
cobram mais que rancores muitos tidos, sustento pesa tanto quanto o corpo
suspenso no ar, caindo sobre a cama arrumada para a manhã de amanhã. Leva-se,
lava-se, alguns segundos a mais, só, como as gotas a cair e acariciar a moleira
sempre fervente a benzer os fios crespos do profundo cabelo em quente momento que
corta o frio. A geada do esquecimento puxa as datas perdidas e as enrola com a
toalha. Demora para sair, merece o atraso, é sua vez de não estar.
Quando se cuidou por último?
Quando teve medo de se perder? De morrer sem um grande final? De embranquecer o
olhar e encontrar, no fim do túnel, um retorno indesejado? Precisa voltar,
precisa trabalhar e responder às tantas bocarras cheias de notificações. Caninas,
molares, sempre impacientes como dor de dente, amolando e pedindo tudo para ontem –que começou
desde hoje, já na hora de ser a manhã de amanhã. De um cômodo ao outro, não
cabe mais. Esbarra o cotovelo na quina que range a madeira e prensa a
mandíbula. Sua língua não desenrola faz tempo. Não encontra outras, não dança,
mas cabe inteira no céu acima. Algo tem que caber na boca.
E os dedos, e as pegadas
invisíveis sobre a madeira, elas ficam. Quando sair, quem fincará? Seu cheiro
vai e se pega contigo e com o outro que chegar. Você não o sente, mas ele sim.
Autorreconhece-se como aquele que cobre a mudança para evitar poeira. Um novo
lugar para recomeçar o cotidiano. Sobre as caixas, aquele velho manto que
esfarela a cada fim de dia. Pó de si e o véu da fragrância original numa
dialética imóvel dos móveis que, amanhã, já serão parte da manhã.
O cansaço não muda. As horas
também não. Mesmos, conhecidos, manjados. Na nova solidão, cheira a própria
carcaça. “Com o que me farejo?”. O que vai nas paredes? Algumas fotos, um
quadro. De novo? Nada. São os mesmos também. Há de se ter o gasto como parte da
existência custosa. Só de conseguir desempacotar tudo e colocar o melhor de si
nas prateleiras já deixa fechado com que chave a porta será aberta para os de
fora. Colocou no bolso do outro, mas não trocou pela nova. Espera sua visita tocar
a campainha, espera sua visita tocar sua mão e entrar, espera sua visita sorrir e lhe abraçar.
Enfia a mão no bolso dele, tira a velha, coloca a nova, senta e assiste, de
dentro para a fora, a porta, mais uma vez, ser aberta. Não se despede. Apenas
admira quem lhe faz sentir em casa na sua casa.
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