Havia um homem apagado naquela casa. Os portões quase caindo não mais serviam no bem-vindo. Sem convites, ninguém entrava. Alguém, às vezes, saía.
Pelas caminhadas solitárias da rua que abrigava seu passado, ia indo. Restava-lhe apenas o cotidiano. Horas iguais, dias iguais em quadrados diferentes de calendários atualizados a cada 1 de janeiro pelo dono da mercearia. Não dava bom dia. Seu silêncio era sua principal defesa. Ninguém sabia dele. O desconhecido causa medo. Tentaram lhe atacar, mas como atingir um ser que presente nunca se faz? Tal qual fantasma, vulto, aparição, não tocava os pés no chão ao flutuar, dia após dia, rumo aos mesmos endereços.
Não queriam acabar como ele. Sem família, sem continuidade, aguardando a chegada da morte. Outros se sentiam desprezados e atribuíam ao homem uma arrogância descabida. Como, tão pobre, poderia desprezar os demais à sua volta? No fundo céu de sua boca cerrada estavam as tantas histórias que ele poderia lhes contar, mas não quis. Nunca quis dividir com ninguém tudo o que lhe partiu por décadas. O quanto dele tiraram, o quanto dele levaram, nada disso saía do poço que se tornou o homem sem fundo. Um ponto-final que a todos incomodava.
Sem cheiro, sem rastro, dentro de sua casa imperava a penumbra que só conforta aos paridos sem choro. Como seria o fim do universo? Tão misterioso quanto os cômodos daquela velha construção esfarelada pelo cansaço cimentado. Seu lixo, o que sobrava do prato, nada, não havia como traçá-lo. Desistiram, então, os vizinhos. Que fosse ali, com aquele homem, o fim do saber, a morada do caso perdido, do sem assunto. Não valia a pena tentar ajudar quem não quer ser ajudado. O povo perdeu. Sentiu que perdeu. Não cumpriu seu papel de comunidade, não salvou uma alma doída, não fez sorrir o rosto recolhido. Aquele homem era a prova de que o povo, tal qual a voz de deus, era inútil para desalmados. Aceitaram, as pessoas, que aquele ali já não estava mais entre elas. O que se via era o que não existia. Um retrato fiel da ausência. Sem cheiro, sem rastro.
Sua vida, despedida de adjetivos, ganhava valor apenas na fala alheia. Miserável, desgraçada, abandonada, desenganada, injustiçada, penosa, patética. Sentenças dadas em julgamentos inocentes. Cada um que analisava, à luz de suas convicções e moralidades, a decadência do sujeito que vive condenado à sua exclusiva - e inevitável - companhia, sentia-se um tanto mais vivo, um tanto mais vigoroso e sortudo, um tanto mais roliço e bem pago, bonito e amado, querido, desejado, alinhado à graça divina que é acordar pela manhã e saber que não é, o um dentre os cada, o homem.
Eu não sou o homem.
Nos séculos que se passaram, empilhados nas prateleiras de sua estante de livros, morava ele. Ali, viveu e vive. Vai e volta. Recobra, recupera, cicatriza e sangra. Leu e lê. Foi e ficou. Somente ali era possível encontrá-lo, acessá-lo. Escreveu e escreve. Sobre a mesa, o último de seus lembretes. Sobre o mundo, as notas que revelavam cantos nunca antes relevados nas linhas dos grandes historiadores. Sem falar com ninguém, conversou, com sua exclusiva - e inconsolável - companhia. O que lhe restou era o que lhe recolhia.
"Eu não sou o homem?
Não é que não escuto quando falam. Eu escuto. Muito menos que não digo, do diafragma à goela, alguma resposta que satisfaça o outro. Não me escondo quando olham, e olho quando não se escondem ao olhar. Eu estou ali, não estou? Lá também. Consigo sentir meus passos, os ossos estalando e o que me resta de articulações animando este corpo de antigamente. Eu estou ali, juro! Lá também já estive, sei que estive.
Quando disse que me machucavam as palavras sobre quem sou, eu não estava ali? Quando defendi meu espírito das maldições lançadas por falsos iluminados, eu não estava ali? No dia em que deixei de aguentar calado os toques, os puxões, a lâmina fria abrindo minha carne e a mão mais fria ainda buscando nas minhas entranhas a resposta que comprovasse incapacidade natural, eu não estava ali? Meus dentes, meus olhos, meus lábios, meu peso, tamanho, o que era meu, dado pelos meus, de antes, de ontem, de séculos, quilômetros, páginas e mais páginas, de histórias, quando a tudo removeram, eu não estava ali?
E quando amei, fui amado, e depois jogado à marginália de minha própria intimidade, eu não estava ali? Quando escrevi com a nigrosina de meu tom posto e imposto como manto a cobrir o mais incendiário dos corações, eu não estava ali? Quando calei de ódio, quando sorri de raiva e indignação, quando perdi a tudo e todos, eu não estava ali?
Quando cantaram minhas músicas e eu tapei meus ouvidos para não destruir a memória límpida que tinha delas, eu não estava ali? Quando me deram tudo o que eu precisava para continuar existindo e sobrevivendo num mundo que não me era manso, eu não estava ali? Quando me deram a chance de continuar vivo pelo bem de seu sadismo, sem viver junto deles e delas, sempre distante, inalcançável, intocável, eu não estava ali? Deram-me tudo o que eu precisava para existir: as lembranças físicas e intangíveis de quando eu estive ali. Na carne, no âmago.
Eu não sou o homem? Eu estava ali! Não sou? Não sei. Pouco me importa saber, agora, se sou o homem. Todas as vezes que fui, preferia não ter sido.
Eu estava ali quando me bateram por diversão. Estava ali quando me violentaram a alma, a carne, o cálcio dos ossos, o marfim envolvendo meus olhos, em cada canto, eu estava ali quando me levaram para ser o homem e pagar por isso. Estava ali quando procuravam o homem que roubou de bolsos vazios, que matou sem arma, que trapaceou sem jogo. Eu sempre estive ali quando procuraram pelo homem.
Quando não morria fácil, também procuravam pelo homem que contaria boas histórias sobre o terror que o secou o sangue. Eu estava ali. Estive quando ele me olhou e disse que amava o homem que eu era. Nos anos em que me fez sentir que sabia, eu, o que era ser homem para outro homem, afirmo, estava ali. Quando partiu e me deixou sem adeus também.
Eu estava ali, em todos, em tudo, só não como homem, apenas. O artigo que me precedia e perseguia especificava também a necessidade que os outros tinham de me alcançar para estraçalhar o que viam, ouviam, sentiam do odor forte de quem exalava fogosidade. Eu nunca ardi. Nunca. Eram os fitares dos outros que me queimavam. Eu nunca pelei mais do que pelou o peito quando precisava tirar dele o calor para lutar. Por fora, eu nunca ardi. O fogo é neles, não em mim.
Eu não sou o homem? Para eles, quando convinha, sim. Comigo, sozinho, não. Fui eu muitos, demais, em excesso, abundância, uma estante farta de livros e seus instantes mirrados. Definido no 'o', não caibo. Diluído no um, sumo sem ser visto e deixo rastro ou cheiro algum.
Eu não sou o homem.
Sempre estive entre eles. Nunca com eles.
Só, sempre só, homem. Assim estive quando estive."
Homem, ele, por mais um dia, não se esqueceu de quem nunca foi, mas esteve.
Quando esteve.