segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Banho-maria da solidão

Seu corpo já não era mais o mesmo. A cada final de dia, ele mostrava o desgaste. Rangia os cantos, doía as dobras, ressecavam-se as vigas. Era de se esperar, mas a vida não permitia sentar e aguardar. Pelos cômodos, zanzava de um lado para o outro, cuidando do lar, e não de si. Parecia até que morava fora da própria carcaça. Quando lhe sobrava algum tempo, pegava a faca e tirava as sujeiras debaixo das unhas, imaginando quando teria a chance de pintá-las novamente. Inclusive, imaginar ainda era o que lhe conferia algum alento. Alguma autonomia. Apesar de não ter mais patrão que ordenasse o que fazer, estava sabido de que a maior cobrança viera sempre de si mesmo. Não podia parar. Precisava se sentir útil, nem que custasse o esfarelar das paredes adentro e afora. 

Em tudo o que fazia, depositava um pouco de si. Se varria o pensamento, refletia sobre a vida. Enquanto lavava as mágoas, lembrava de amores passados. Na hora de cozinhar, a escolha dos temperos, dos legumes, da quantidade de água e intensidade do fogo, dividia espaço com o cantarolar de receitas que um dia tiraram da língua a insipidez das palavras não ditas. Enchia a boca de música, era o seu jeito. Ainda assim, mesmo nos instantes de abstração, permanecia em movimento, trabalhando sem parar. Ao seu lado, o cansaço, sem cansar, permanecia. Abstrair, no final das contas, era o banho-maria da solidão.

Certa manhã, enquanto tirava o pano de cima da farinha de milho para preparar o cuscuz, passou as costas da mão na testa e a levou até o meio da cabeça. Quando atingiu a moleira, fez-se um carinho. Neste instante, salgou a massa amarela com lágrimas. Há tempos não sabia o que era afago. Todas as dores que compunham as articulações se comoveram com aquela cena e deram alguns minutos de alívio a ele.

Enquanto seguia o instante, chorou e se deu a si mesmo. Cansou de buscar nos afazeres do dia a dia algo que apenas se adquire quando é o lado de dentro que assume o controle da situação: valor.  O tempo, senhor daqueles que contam com ele, trocou suas roupas leves e brilhantes pelo manto grosso e escuro da noite. Forrou-se, anunciando, assim o fim de suas atividades. Mas ele, o exausto, seguia trabalhando.

Foi então que a intervenção ocorreu: queda de energia, tudo se apaga. Sobra sobre a mesa uma vela. Ao olhar fixamente para ela, ainda apagada, tentou calcular quanto tempo duraria acesa. Duas, três horas, talvez? Até lá, teria voltado a luz? Não sabia, e não saber lhe atormentava. Foi até a porta da cozinha, olhou para a vastidão do quintal e avistou o jardim. Lá estavam as rosas, a camomila, guinés, abre-caminhos, as respostas todas. Um banho lhe cairia bem - e o levantaria daquele chão terroso. 

Antes, sentou-se à mesa e pegou a carta antiga que havia escrito, mas nunca enviado. Sabia a data de cór: trinta e um de janeiro - o último do primeiro. 

"Oi, sou eu.

Você me abandonou. Todos estes dias aqui foram despedidas. Sete, para ser mais exato. Antes eu não sabia, mas agora sei. Acho que isso me tirou um pouco da angústia. Eu sofri em silêncio. Talvez meu olhar fizesse algum barulho, só que era baixo. Quando eu mirava os pés, os meus e os seus, algo ecoava aqui dentro. Nem seu ouvido colado em meu peito conseguiria captar esse som, mas que algo ali chiava, garanto, chiava.

As distâncias nunca foram novidade, não é sobre isso que me refiro quando falo que fui abandonado. Hoje, escrevo esta carta para retribuir o seu adeus. Sinto que fui abandonado porque percebi que eu não era a chegada, eu não era o retorno, sequer o começo ou recomeço. Eu era a passagem. Um momento que nasce só porque já sabe quando irá se findar. Se pensei que poderia finalmente ser o propósito, acabei por me enganar. Às vezes eu faço isso, eu me engano para conseguir viver uma vida mais humana, com os erros todos, com o sofrimento que nos faz lembrar de que ainda sentimos algo por que nos falta bastante. Se no fundo eu sabia que assim seria, nas bordas, queria dar voltas para achar um caminho diferente até nós dois, sabe? Não consegui. Errei. Sou gente mesmo. 


Você me abandonou quando desdenhou da comida que te preparei. Eu fiz com as mãos, tinha muito de mim ali. Fiz com gosto, com amor, mas não te fiz ficar. Também me abandonou quando olhava ao redor e tudo te irritava, mas não conseguia mirar em mim e achar aquele fim de tarde bom, onde a gente podia se trocar nos toques em nossos rostos mornos como se, ao invés de batê-las, deitássemos o sol nas palmas. Eu escrevo aqui, agora, pra ti, do jeito que sei dizer o que não te disse no momento certo. Eu sei que poderia ter falado tudo isso enquanto esteve aqui, mas o passageiro aqui era eu, não o que eu tinha para te dizer. Isso era para ficar. Você me abandonou quando veio porque sabia que não iria ficar. Meu erro foi duvidar desta certeza tão forte quanto o abraço que te dei em meio às malas.  

Meu coração sofreu demais. Você levou muito de minha felicidade contigo. Não te cobro ou culpo por isso. Eu a dei de bom gosto, sim. Digo que a levou para te lembrar que ainda a tem, caso esta fosse sua vontade. O pedaço de mim, esse não passageiro, mesmo viajando contigo. Não pude ir até onde está. Não sei se consigo ou se quero ir. Enfim...o que sei é que você foi. 

E agora que foi, não volte. Teu lugar em minha mesa é outro."

Com o balde cheio, arrastou o corpo cansado até o banheiro. Abriu a janela, deixou a noite entrar, e o prateado sutil da lua tingir a água. As ervas preparadas. A pele, os pelos, as palmas e solas, tudo em silêncio, esperando pelo fim do encardido. Aos poucos, foi se banhando e sentindo cada bocado daquele emaranhado de quereres calados, por vezes mal ditos, não atendidos, adiados, nervosos, impacientes, firmes. Sempre muito firmes, segurando o todo que ele chamava de "eu". Um nome submerso nas águas agora douradas pela mistura do bronze de sua marca com o argento minguante. 

Pronto, sangrou tudo o que tinha para sangrar. Salgou tudo o que faltava salgar. Mas o doce, este se manteve. Na maciez encontrava aquele pouco de açúcar que ainda lhe fazia sorrir os ânimos. Com o melaço escorrendo da ponta dos dedos, sentou-se nu à mesa e degustou o suor adocicado como se fosse a recompensa pelo dia tão custoso. Parou, olhou e disse, convencido: 

"Fiz com as mãos. Tem muito de mim aqui". 

  


 


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Lúcido

Quando saí pela culatra e fui atrás de você, eu sabia que era uma corrida sem fim. Um disparado sem rumo, um susto, aquela tentativa de evitar o retiro. Daqui, sei que a gente se pensa. Esta é a única certeza que guardei sobre nós. Vivemos o bastante para que se fizesse o para sempre.

Eu sei que o orgulho queima qualquer carta escrita e não entregue, mas as palavras que grafamos nela, isso não há como destruir. Cada escolha feita no momento de compô-la era mais do que comunicação. O que fazíamos ali era afago um no outro, sem tocar nos respectivos orgulhos. Maneira tola de achar que estamos nos preservando sem abrir mão daquele outro – você aí, eu, aqui – que nos complementa tanto. 

Suas visitas nos meus sonhos são as melhores. Eu, lá, posso me emocionar e chorar enquanto te abraço e digo que senti sua falta mais do que seu desprezo. Fazemos as pazes no meu inconsciente que, neste contexto de rompimento, é mais sensato e consciente do que o eu-acordado. Às vezes é difícil de lidar com o paradoxo de ter você sem precisar abrir mão de uma parte importante de mim.

Para nossa infelicidade, fui criado num contexto de despedidas, partidas, de abandono e solitude. Acabei me tornando bom em partir e péssimo em voltar. Mas será que nunca tentarei melhorar? Deveria, eu sei. Admito. 

Queria saber como está. Porém, não consigo te procurar. Ao menos eu sei de algo: você está sem mim. 

E isso, tenho certeza, ainda te faz pensar em nós. Então, pelo menos aí, sei que estamos juntos, nem que por alguns poucos segundos do seu dia.

Do seu consciente.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Do que é feita a gentileza

Se eu não suporto o toque de desconhecidos, com certeza é porque existe uma boa razão para isso. Não é algo que explico, ainda mais se for para alguém qualquer a esbarrar em minha vida. Odeio que toquem em mim e ponto. 

(...)

Quando sentei para escrever a história de Antônio, busquei reunir apenas os brinquedos espalhados de sua infância. Pelo chão de barro batido encerado com pasta vermelha, era preciso tomar cuidado para não furar os pés com os bois feitos de galhos secos, ou os cangaceiros cujas armas eram facas cegas de outras épocas. Queria contar para quem quer que lesse que Antônio não era uma pobre criança largada na caatinga da minha imaginação. Não, pelo contrário. O menino era tão rico, mas tão rico, que podia se dar ao luxo de viver sem o mesmo nos momentos de descontração. Antônio era filho de coronel, rosado, nada ágil, uma criança feita para ficar parada, esparramada no chão igual aos seus passatempos. Foi então que se aproximou de mim alguém sem nome e, como se não bastasse, tocou-me o ombro direito. 

Reagi com rapidez e tirei sua mão com a minha, colocando-a sobre a mesa. O pedido de desculpas dele veio, mas não a minha simpatia. Enquanto os olhos ferviam, a boca se matava para não deixar o fogo escapar. Nesta luta incessante contra o forte desejo de mandar um "vai tomar no seu cu", resumi tudo em: "o que foi?". 

- Desculpe te interromper. Queria saber se você tem isqueiro. 
- Não. 
- "Não" me desculpa ou "não" tem isqueiro? 
- Não e não. 
- Poxa, já que o pedido de desculpas não adianta... posso te pagar uma dose do que você está bebendo para compensar o incômodo. 
- Não precisa. Basta me deixar aqui com minha ocupação. 
- E sobre o que é sua ocupação? 
- Olha... eu estou tentando não perder a educação...
- Gente, para que tudo isso? Só estava tentando ser gentil... 
- Sente-se, então. 
- O quê? 
- Sente-se, e vou lhe dizer do que é feita a gentileza. 

Ele sentou. Eu olhei para Antônio e pedi que me esperasse ali mesmo onde estava, envolto por seu folguedo sádico. Ele me ignorou - o que é sinal de que entendeu meu recado. Agora, livre, pude voltar a atenção para o desconhecido candidato a gentil. Dei-me sete segundos de silêncio para analisá-lo. Depois, comecei. 

- Eu tenho isqueiro. Parei de fumar, mas mantenho ele sempre comigo porque sei que a qualquer momento posso voltar a tragar cada um dos 22 cigarros que um maço tem. Então, além de mentir para você, também minto para mim. Você ainda quer o isqueiro? 
- Sim, por favor. 
- Aqui está. 
- Você quer um cigarro. 
- Não. 
- Está mentindo agora...
- E você aprendendo. Quero. 
- Tome. 
- Acende para mim? 
- De repente, parece que estou diante de outra pessoa. Primeiro, arrancou minha mão do próprio ombro, agora quer que eu acenda o cigarro em sua boca...
- São toques diferentes. No primeiro, você me invade. Neste segundo, sou eu que invado você. 
- Não entendi. Como assim me invade?
- Deixe pra lá. Eu estava escrevendo sobre Antônio. 
- E quem é esse? 
- Ele é muitos. Um conjunto de pessoas que conheci ao longo da vida e que, aos pedaços, foram me parindo Antônio, mesmo ele não sendo meu. Despois de costurado, tive que assumi-lo. Sempre quis ser pai, então, apeguei-me a isso. 
- Antônio ainda é uma criança? 
- Sim, saudável e quieta. Vive em seu mundo. Não me dá muito trabalho. 
- E você decidiu escrever sobre ele  por quê? É alguma carta para alguém? Para a mãe dele, ou pai (sorri com o canto daquele traço fino e sem graça que lhe parece ser a boca). 
- Escrevo sobre Antônio porque precisa sempre me lembrar de como mantê-lo vivo. 
- Não sei se entendi bem, mas, enfim... Não queria ter atrapalhado de qualquer forma. 
- Já que atrapalhou, diga-me, por que acha que lhe pedi para sentar aqui? 
- Por que te deu vontade de fumar acompanhado? 
- Realmente você está aprendendo. 
- Então, está me ensinando algo, é? 
- Acredito que sim. Uma lição diferente, talvez um pouco dura. Estou lhe ensinando sobre a mediocridade. 
- Com assim? Não ia me dizer sobre do que era feita a gentileza? 
- Antônio é uma criança que tem tudo porque seu sangue enriqueceu com o dos outros. Seu sangue é a herança mais valiosa que ele poderia ter. O moleque é filho de coronel. 
- Pensei que você fosse pai dele.
- Pensou errado, mas como está em processo de aprendizagem, tudo bem. O que tenho por Antônio é a vontade de ser pai, sem sê-lo. Mas a questão se volta para a gentileza e a mediocridade. 
- Acho que a conversa está estranha demais, você me desculpe, mas preciso voltar para minha mesa. 
- Antes, queria lhe agradecer pelo cigarro. Nunca mais toque em uma pessoa desconhecida sem o consentimento dela. 
- Ok, já pedi desculpa. 
- Meu isqueiro. 
- Aqui está. Valeu. 

Fito seu semblante arrastado saindo e desaparecendo entre os desinteressantes. Eu ainda queimava pelas vistas. Não adiantou muito tentar trucidá-lo ali na mesa. Quando eu estava terminando de colocar pressão na arapuca para, depois, lambuzar a ponta dos espetos com veneno, ele fugiu. 

Voltei para Antônio. Continuava lá, agora com um carcará das penas de palha e bico de semente. Suas mãos elevavam o pássaro que sobrevoava o cercadinho com a boiada. Parecia farto, não patrulhava em busca de caça. Talvez, apenas estivesse se planejando para a janta.

Perguntei a Antônio se ele não estava com fome. Ficou quieto por uns segundos e mordeu o porco de batata doce. Aquela criança era realmente simples, pura e simples como toda a criança. Pronta para ser corrompida pelos arredores. 

Foi o tempo de pular de um parágrafo pelo outro que, de longe, sentindo a pressão do ar mudar, novamente chega o boca de jabuti. 

- Eu já estou indo, não encostei em você, mas quero saber por que disse que estava me ensinando sobre do que é feita a gentileza e a mediocridade? 
- Tem mais um cigarro? 
- Tenho. O último. 
- Não quero. Não fumo o último do maço dos outros. 
- Por quê? 
- Porque não gostaria que pedissem o meu. E não daria também. 
- Gentil da sua parte. Só um minuto...

(Afasta-se, vai até outra mesa com uma garota fumante, pede um cigarro, ganha, retorna e me entrega o mesmo). 

- Então, você ia me falar sobre gentileza e mediocridade... 
- Antônio é uma criança que, de longe, segue observada por mim - alguém que não é seu pai, mas que o cria, assume sua existência, responde por e para ela. Naquele gigante quarto, o pequeno corpo se fixa como um ponto no meio da frase, uma quebra brusca que obriga a narrativa a abrir a porta e perguntar se está tudo bem. Ele não responde e segue naquele mundo, um mundo dentro do meu, que o olha a distância. O pivete brinca com seus artefatos rústicos, desafiando o conceito que temos de tempo. Ali, Antônio prova que nada além de sua atenção miúda é o que importa, o que conta e o que passa. O mundo, para ele, é uma batata doce com quatro palitos de madeira que formam as patas do "porco". Eu, mesmo vendo Antônio naquela situação agonizante de inércia no vácuo do quarto-universo, ainda assim não encosto nele. Não me sinto à vontade para interromper aquele marasmo em meio ao silêncio castigador da caatinga. Quem sou eu para achar que minha vontade de chacoalhar aquele projeto de pessoa e dizer - "Antônio, menino, você viu meu isqueiro?" podia ser importante o bastante se filho - ou algo do tipo - a gente cria para o mundo? Ponho-me no meu lugar de observador e faço jus a ele. Às vezes, o que me resta é ficar no meu canto, em meio à opulência do herdeiro de coronel e a pobreza da minha narrativa. Antônio permanece lá, consigo mesmo, sabendo pelo calor do meu hálito raivoso que, de longe, eu ainda zelo por sua segurança. O que ele precisa, eu, como seu provedor, dou: atenção. Sem sentir meu toque, ele sabe que nem eu nem ele somos tão importantes assim para valer a interrupção das entrelinhas em que fomos escritos. 
- E o que isso tem a ver com mediocridade? 

(pego sua mão e a coloco no meu ombro direito). 

- Eu sou Antônio.  

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Tempo da terra

Dias secos. Com a poeira do passado sendo soprada pelas bocas desconhecidas, resta-nos fechar os olhos para tentar nos proteger da aridez da realidade. O ontem não se resolveu, e veio cobrar do hoje a solução. 

Ao seguir o ritmo do tempo imposto, calendário balança feito roupa no varal. Começa se movimentando lentamente por conta do peso da água, depois, com o calor, seca e passa a se mover compulsoriamente, descontroladamente, livremente. Tempo livre feito roupa no varal, presa apenas pelo compromisso de continuar servindo. Cabendo. Dia após dia.

Um após o outro, a folhinha na parede nos recorda: sirva e caiba. 

Quando paro, no instante em que a boca do prendedor afrouxa e posso sentir meus ombros novamente como meus, confiro quantas marcas meu rosto ganhou. Uma aqui, outra ali, vão se encontrando. Se olho para o céu, elas parecem camisa amassada. Se baixo a cabeça triste a ponto de me enrugar mais, deparo-me com o espelho trincado, refletindo as rachaduras do chão  - agora na cara - seco, árido, lembrando que o pisar das solas secas no que pela manhã lavei enquanto rosto não pararia no amanhã. 

Um após o outro, seria assim, dali em diante, todo vez que acordasse, alguém me pisaria a face - fosse pessoa ou o tempo mesmo. 

Trabalhar com a ponta dos dedos dando ordens, com o restante de mim obedecendo, com a cabeça queimando a própria moleira e o coração sentado numa cadeira da cozinha, quieto, sem pegar uma maçã ou banana, apenas olhando a mãe limpar para, depois, conseguir lhe comprar maçã e banana. Pequeno, ele fica lá, esperando ser grande o bastante para trabalhar também. Para poder dar de comer à mãe. Dar amor. 

No fim, antes de a noite esfriar o lombo, mexo um pouco na terra já umedecida pelo suor. Salgada, luta para que não sequem os brotos antes mesmo de saírem em busca do sol. Não é falta de água nem excesso de sal. O que lhe seca são os dias. 

Um após o outro. 

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Coral

Costumo desenhar situações. Literalmente, espalho os lápis coloridos sobre a superfície fina da minha intuição e rabisco todas as possibilidades que podem traçar os dias seguintes. Às vezes isso me toma tempo. Outras, tira-me o espaço para enxergar além do que poderíamos chamar de “expectativas”. Com tempo ou sem espaço, o que sei é que em cada linha desenhada, em cada rastro de cor que se destaca, há um desejo meu, forte, daqueles que marca no peito tudo o que coração tenta sombrear.

Hoje, a situação me levou até alguém distante. Envolto numa densa nuvem escura, ele estava lá, parado, no pico das ideias, observando a cidade mudar da ansiedade do dia para a melancolia da noite. Sua cor era escura, azul profundo que mais parecia me puxar para dentro dele. Índigo. Hipnotizante.

Aquela atmosfera de mistério combinava perfeitamente com o desenho que fiz antes de sair de casa – e que tinha no tom rosa do lápis mais nanico – por ser o mais usado – o desgaste da minha imaginação, aquela que não se cansa de rabiscar o que projeta em segredo. Segredo, não. Mistério.

Pensei em mil frases a serem ditas, mas nos últimos dias acabei calado. Tinha minhas questões para pensar e junto com essa responsabilidade vinha o desânimo em expelir qualquer que fosse a frase que tentasse expressar o que sentia. Ou melhor, o que eu não conseguia sentir. Nestas últimas semanas eu pouco rabisquei. Passei mais tempo tentando apagar. Agora me vejo aqui, no entardecer, com estas cores que eu já havia imaginado antes mesmo de ver. Tudo que ontem só ficava dentro de minha cabeça explodiu naquele infinito cravejado de estrelas e, pela primeira vez, senti como se conseguisse mostrar para o mundo todo, para toda aquela cidade lá embaixo, para aquele rapaz ali em cima, as cores das minhas vontades. Eu entardeci. Nasci no fim de um dia diferente do meu aniversário e ainda assim me fiz aniversariante só porque sabia que o presente estava por vir.

Verifiquei se não havia perdido o que eu trazia nos bolsos. Tudo certo. Queria dar algo a ele. Sentia que precisava dar algo a ele. Já havíamos aprendido a nos comunicar pela linguagem dos silêncios, então, era mais do que justo que eu dissesse, sem emitir uma palavra, o que ele necessitava tanto ouvir. Nem a penumbra daquele pico conseguiu me esconder. Aquecido no moletom coral, eu cheguei como quem não quer nada, querendo tudo. Pensei comigo mesmo: “que cor teria essa situação?”. Não tive tempo de me dar a resposta, pois já estava sentando ao lado dele.

- Trouxe algo pra você relaxar

O menino mais leve que o vento

Quando foi a última vez que o ar acariciou o rosto ao invés de bater nele? Quando foi a primeira vez que se sentiu como o vento – livre o bastante para não ir, apenas ocupar o espaço vazio, suavemente, como brisa leve? É tanto pesar dentro da mente onde os pensamentos deveriam apenas flutuar feito nuvens e, leve como elas, apenas deixar chover ideias, que dá vontade de soprar a cabeça como se assopra um machucado. Em que momento o tempo fechou dentro de si e aquilo que chamava de alívio se tornou sufoco? São muitas perguntas para respostas ainda indefinidas, mas querer saber faz sair pelo mundo – de dentro e de fora – em busca de algo que encha novamente os pulmões. Algo que dê fôlego.

O ar, o vento e a necessidade de sentir o sopro da liberdade arrepiar os pelos do braço. Um misto de alívio com risco. Algo parecido com o medo de ser feliz – ou o medo de não aguentar a felicidade. Há quem fale sobre leveza, porém, não é toda hora que os ponteiros da vida permitem relaxar. Cada segundo passado parece uma vida perdida. O peso dos dias corridos, talvez, seja o que faz do ar, do vento, algo angustiante, já que não se pode tocá-los nem sentir, por um instante, que a liberdade está em suas mãos. Livre o bastante para se manter preso nas próprias escolhas – estas que, por sua vez, nunca são livres o bastante.

Do berço cair, pelo chão se arrastar, nos móveis buscar apoio e nos olhares equilíbrio. Erguer-se, desde pequeno, é um ato de coragem. É o primeiro contato com o peso, tamanho, com a densidade de algo que se carregará para o resto da vida: si mesmo. Se mesmo nos primeiros anos já se pode superar a gravidade da situação que é nascer neste mundo, por que se perde na poeira das expectativas não vividas justamente aquilo que se há para viver? Se pequeno se levantou, por que grande não caminha? Por que gigante não alcança? Por que alto não enxerga além do baixo muro da realidade aparentemente intransponível? Mais perguntas, menos respostas. A mesma necessidade de fôlego.

Respirar o ar. O próprio ar. Quando foi a última vez que o fôlego veio do âmago e não do boca-a-boca alheio? Quando...?

Há dias em que as lembranças guardam as verdadeiras respostas para as tantas perguntas que o vento traz.  Nestes dias, há de se encontrar entre as fotos bagunçadas nas gavetas da memória aquilo que, em situações sufocantes, fará toda a diferença: o respiro.

Inspirar e espirar. O subir e descer do peito será a prova que ainda há vida mesmo no corpo cansado; na mente exausta. Trata-se de jamais prender a respiração novamente.

Trata-se de libertá-la. Finalmente.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Índigo




Deixo o azul escorrer pra sentir a espinha gelar. Daqui do alto, eu vejo as luzes da cidade e elas, da outra ponta, também conseguem me enxergar. Brilhamos distantes, como toda beleza deveria ser. Brilhante e distante.

Olho e sinto, como se o tom tivesse mesmo o dom de me tocar. É frio, mas é bom, não corta, mas também não faz carinho. Ao mesmo tempo que me dá vontade de fazer absoluto silêncio, ele, o tom, passa da cor pro som, e me faz ouvir o movimento do sono no ar... É como se fosse uma lenta respiração de todo o planeta adormecido, cujo barulho de “inspira e espira” praticamente soasse tal qual uma canção de ninar.

Ali, em meio àquele azul todo do céu que cobria a cidade, eu lembrei que quando era criança, acreditava que o sonho nada mais era do que ser levado para o topo do universo pela própria cama e se cobrir com as estrelas todas. Sonhar, pra mim, era estar no céu, coberto de azul, brilhando distante. Pensando aqui, agora, como é que a gente se perde tanto ao crescer e não mais crer nestas explicações para os fenômenos mais simples da existência? Sei lá, viu... Sei lá.

Cometi o erro de tentar pensar na vida hoje e hoje mesmo eu desisti. Não da vida, mas de pensar em como ela seria. Tudo frustra, justamente porque exige de mim o que eu mesmo jamais exigiria. Vem de fora, de pessoas que nem conheço, vem de uma voz que não me soa familiar. Por isso que eu vim para cá, bem no pico de sempre, ficar ausente lá embaixo.

Aqui o azul predomina e resfria meu rosto como sopro bom pra tirar o ardor de machucado, o roxo do olho, o vermelho do sangue pisado, e fazer casca no ralado... É bem assim que eu quero ficar, pelo menos no que sobrou do dia. Só que você me mandou mensagem dizendo que estava chegando.

- Trouxe algo pra você relaxar.
- Eu disse que estava nervoso?
- Se não disse antes, acabou de dizer agora.
- O que é?
- Música. “Bad Dream/No Looking Back”.
- Só ela me faria subir até aqui pra ver sentido em todo esse horizonte sem propósito aí na frente.
- A vista aqui é diferente mesmo, né? A gente não consegue ver o tanto de cobrança que há ali por entre as ruas.
- Sim. Aqui, eu consigo ver cores nos sons, ouvir sons quando lembro de rostos, consigo entrar numa relação diferente com o tempo.
- Ele para?
- Não, ele circula. Vai e volta, dá um abraço de “oi” e logo em seguida um de “tchau”. Tô viajando nas ideias, eu sei...
- Até aí, normal, né? Eu sei do que você precisa.
- Sabe, é?
- Não só sei como te darei.
- Você tá ligado que se errar, as chances de eu nunca mais botar uma fé na sua capacidade de saber do que eu preciso são grandes, certo?
- Certíssimo.
- Então vai, diz aí do que eu preciso?
- Esmalte nessas unhas.
- Caralho... Pior que não tem como eu discordar de você.
- Pois muito que bem. Tô com a cor aqui.
- E qual vai ser?


quarta-feira, 4 de março de 2020

Como

Quando me sai o passo, eu não acompanho o que fica ao lado. Parece que vou, indo apenas, já ciente de que o final estarei sozinho. Odeio esperar os outros, mas não tenho pressa. O ódio vem da aversão à sensação de abandono. Coisas que só uma pessoa como eu poderia saber. 

“Uma pessoa como eu...”. Como? 

Quando entrei na casa de Bernardo e Sofia, senti que nada ali bem me recebia. As duas crianças, com uniformes limpos de marinheiro e marinheira, olharam-me com desgosto. Pensaram, acredito eu, que aquela criança que chegaria para brincar com elas não se pareceria com o próprio brinquedo quebrado. Minhas canelas finas e acinzentadas, a cor que destoava do ambiente ebúrneo, a fome tão constante quanto a vergonha, os olhares baixos e a boca seca. Sim, eu era realmente a imagem de algo quebrado. Tão pequeno, tão quebrado. 

Fui ensinado a não aceitar comida na casa dos outros. Mãe tinha aflição de parecer que estava levando os filhos apenas pra comer e também temia dar trabalho para os donos da casa. Ela, empregada desde sempre, sabia que pra fazer um lanche pro menino mirrado alguém teria que deixar de fazer o lanche de Bernardo e Sofia em primeiro lugar. A barriga roncava e eu não conseguia me desenvolver nas brincadeiras que o casal de irmãos propunha. Tudo para mim era sem graça e cansativo, batia aquele sono que vem do bocejo disfarçado de cansaço. Aguentei, calado, até o almoço. Um prato de macarrão com molho que, naquele momento, era a comida mais deliciosa do mundo. Eu comia, eles riam e cochichavam.

Com a barriga cheia, senti a indigestão me causava aqueles dois. Eu comecei a prestar atenção em seus movimentos. Duas crianças patéticas e limitadas, que pareciam acomodadas à limitação de suas capacidades cognitivas por conta da faixa etária. Em outras palavras, foram educados à base da servidão. Não precisavam se esforçar muito para conseguir as coisas. A pele branca, os cabelos lisos e os nomes sem propósito lhes garantiam a vida de quem teve a luta pela sobrevivência amputada desde o nascimento - de quem não precisa chorar pra mamar. Bernardo e Sofia eram filhos da patroa de minha Tia avó – empregada da família que trabalhou por anos esfregando a imundice dos patrões incapazes de realizar auto-higienização. 

Os dois, então, vieram até mim e começaram a perguntar “Por que seu cabelo é assim? Por que sua roupa é assim? Por que você é tão magro? Por que você é mais escuro?”. Lembro bem que cada pergunta era seguida de um risinho débil. Eu, que desde cedo conheci a malícia e crueldade de outra criança – branca -, já sabia lidar com elas de uma maneira efetiva. O ódio.

Sim.

Crianças negras são forçadas a lidar com este sentimento desde cedo. Muito cedo. E como esse ódio de manifestava? 

“Como esse ódio se manifestava?”. Como? 

Eu os fazia olhar para si mesmos da maneira como os via. Começava, então, a dissertar sobre tudo o que aparentavam pra mim. Os uniformes patéticos de marinheiro, as risadas de rato, as caras rosadas iguais as de porcos, a incapacidade de subir numa árvore, de correr mais do que eu, de dar uma estrelinha, de fazer estilingue com elástico. Eu começava a questionar o que eles, de fato, sabiam fazer de interessante. Praticamente nada. Apenas riam como ratos. 

A fúria vinha e logo a única arma que tinham: o choro e o pedido para que me tirassem da casa. Os adultos, donos do antigo imóvel numa rua de classe média do Rio, olharam-me com nojo. Tia e mãe vieram me questionar e eu só disse que eles estavam me provocando e resolvi responder. Não disse o que, mas nem precisei. As duas sabiam que eu estava me defendendo. Lembro perfeitamente que saí da casa sem me despedir dos dois irmãos, Bernardo e Sofia. Deixei eles com o que, talvez, anos adiante, entenderiam bem do que se tratava. A miséria de si mesmos.

Tão pequeno, uma criança, será que já é possível dizer que a vingança é um prato que se come frio? 

“A vingança é um prato que se come frio”... Você come? 

Como.