quarta-feira, 4 de março de 2020

Como

Quando me sai o passo, eu não acompanho o que fica ao lado. Parece que vou, indo apenas, já ciente de que o final estarei sozinho. Odeio esperar os outros, mas não tenho pressa. O ódio vem da aversão à sensação de abandono. Coisas que só uma pessoa como eu poderia saber. 

“Uma pessoa como eu...”. Como? 

Quando entrei na casa de Bernardo e Sofia, senti que nada ali bem me recebia. As duas crianças, com uniformes limpos de marinheiro e marinheira, olharam-me com desgosto. Pensaram, acredito eu, que aquela criança que chegaria para brincar com elas não se pareceria com o próprio brinquedo quebrado. Minhas canelas finas e acinzentadas, a cor que destoava do ambiente ebúrneo, a fome tão constante quanto a vergonha, os olhares baixos e a boca seca. Sim, eu era realmente a imagem de algo quebrado. Tão pequeno, tão quebrado. 

Fui ensinado a não aceitar comida na casa dos outros. Mãe tinha aflição de parecer que estava levando os filhos apenas pra comer e também temia dar trabalho para os donos da casa. Ela, empregada desde sempre, sabia que pra fazer um lanche pro menino mirrado alguém teria que deixar de fazer o lanche de Bernardo e Sofia em primeiro lugar. A barriga roncava e eu não conseguia me desenvolver nas brincadeiras que o casal de irmãos propunha. Tudo para mim era sem graça e cansativo, batia aquele sono que vem do bocejo disfarçado de cansaço. Aguentei, calado, até o almoço. Um prato de macarrão com molho que, naquele momento, era a comida mais deliciosa do mundo. Eu comia, eles riam e cochichavam.

Com a barriga cheia, senti a indigestão me causava aqueles dois. Eu comecei a prestar atenção em seus movimentos. Duas crianças patéticas e limitadas, que pareciam acomodadas à limitação de suas capacidades cognitivas por conta da faixa etária. Em outras palavras, foram educados à base da servidão. Não precisavam se esforçar muito para conseguir as coisas. A pele branca, os cabelos lisos e os nomes sem propósito lhes garantiam a vida de quem teve a luta pela sobrevivência amputada desde o nascimento - de quem não precisa chorar pra mamar. Bernardo e Sofia eram filhos da patroa de minha Tia avó – empregada da família que trabalhou por anos esfregando a imundice dos patrões incapazes de realizar auto-higienização. 

Os dois, então, vieram até mim e começaram a perguntar “Por que seu cabelo é assim? Por que sua roupa é assim? Por que você é tão magro? Por que você é mais escuro?”. Lembro bem que cada pergunta era seguida de um risinho débil. Eu, que desde cedo conheci a malícia e crueldade de outra criança – branca -, já sabia lidar com elas de uma maneira efetiva. O ódio.

Sim.

Crianças negras são forçadas a lidar com este sentimento desde cedo. Muito cedo. E como esse ódio de manifestava? 

“Como esse ódio se manifestava?”. Como? 

Eu os fazia olhar para si mesmos da maneira como os via. Começava, então, a dissertar sobre tudo o que aparentavam pra mim. Os uniformes patéticos de marinheiro, as risadas de rato, as caras rosadas iguais as de porcos, a incapacidade de subir numa árvore, de correr mais do que eu, de dar uma estrelinha, de fazer estilingue com elástico. Eu começava a questionar o que eles, de fato, sabiam fazer de interessante. Praticamente nada. Apenas riam como ratos. 

A fúria vinha e logo a única arma que tinham: o choro e o pedido para que me tirassem da casa. Os adultos, donos do antigo imóvel numa rua de classe média do Rio, olharam-me com nojo. Tia e mãe vieram me questionar e eu só disse que eles estavam me provocando e resolvi responder. Não disse o que, mas nem precisei. As duas sabiam que eu estava me defendendo. Lembro perfeitamente que saí da casa sem me despedir dos dois irmãos, Bernardo e Sofia. Deixei eles com o que, talvez, anos adiante, entenderiam bem do que se tratava. A miséria de si mesmos.

Tão pequeno, uma criança, será que já é possível dizer que a vingança é um prato que se come frio? 

“A vingança é um prato que se come frio”... Você come? 

Como. 

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