Se eu não suporto o toque de desconhecidos, com certeza é porque existe uma boa razão para isso. Não é algo que explico, ainda mais se for para alguém qualquer a esbarrar em minha vida. Odeio que toquem em mim e ponto.
(...)
Quando sentei para escrever a história de Antônio, busquei reunir apenas os brinquedos espalhados de sua infância. Pelo chão de barro batido encerado com pasta vermelha, era preciso tomar cuidado para não furar os pés com os bois feitos de galhos secos, ou os cangaceiros cujas armas eram facas cegas de outras épocas. Queria contar para quem quer que lesse que Antônio não era uma pobre criança largada na caatinga da minha imaginação. Não, pelo contrário. O menino era tão rico, mas tão rico, que podia se dar ao luxo de viver sem o mesmo nos momentos de descontração. Antônio era filho de coronel, rosado, nada ágil, uma criança feita para ficar parada, esparramada no chão igual aos seus passatempos. Foi então que se aproximou de mim alguém sem nome e, como se não bastasse, tocou-me o ombro direito.
Reagi com rapidez e tirei sua mão com a minha, colocando-a sobre a mesa. O pedido de desculpas dele veio, mas não a minha simpatia. Enquanto os olhos ferviam, a boca se matava para não deixar o fogo escapar. Nesta luta incessante contra o forte desejo de mandar um "vai tomar no seu cu", resumi tudo em: "o que foi?".
- Desculpe te interromper. Queria saber se você tem isqueiro.
- Não.
- "Não" me desculpa ou "não" tem isqueiro?
- Não e não.
- Poxa, já que o pedido de desculpas não adianta... posso te pagar uma dose do que você está bebendo para compensar o incômodo.
- Não precisa. Basta me deixar aqui com minha ocupação.
- E sobre o que é sua ocupação?
- Olha... eu estou tentando não perder a educação...
- Gente, para que tudo isso? Só estava tentando ser gentil...
- Sente-se, então.
- O quê?
- Sente-se, e vou lhe dizer do que é feita a gentileza.
Ele sentou. Eu olhei para Antônio e pedi que me esperasse ali mesmo onde estava, envolto por seu folguedo sádico. Ele me ignorou - o que é sinal de que entendeu meu recado. Agora, livre, pude voltar a atenção para o desconhecido candidato a gentil. Dei-me sete segundos de silêncio para analisá-lo. Depois, comecei.
- Eu tenho isqueiro. Parei de fumar, mas mantenho ele sempre comigo porque sei que a qualquer momento posso voltar a tragar cada um dos 22 cigarros que um maço tem. Então, além de mentir para você, também minto para mim. Você ainda quer o isqueiro?
- Sim, por favor.
- Aqui está.
- Você quer um cigarro.
- Não.
- Está mentindo agora...
- E você aprendendo. Quero.
- Tome.
- Acende para mim?
- De repente, parece que estou diante de outra pessoa. Primeiro, arrancou minha mão do próprio ombro, agora quer que eu acenda o cigarro em sua boca...
- São toques diferentes. No primeiro, você me invade. Neste segundo, sou eu que invado você.
- Não entendi. Como assim me invade?
- Deixe pra lá. Eu estava escrevendo sobre Antônio.
- E quem é esse?
- Ele é muitos. Um conjunto de pessoas que conheci ao longo da vida e que, aos pedaços, foram me parindo Antônio, mesmo ele não sendo meu. Despois de costurado, tive que assumi-lo. Sempre quis ser pai, então, apeguei-me a isso.
- Antônio ainda é uma criança?
- Sim, saudável e quieta. Vive em seu mundo. Não me dá muito trabalho.
- E você decidiu escrever sobre ele por quê? É alguma carta para alguém? Para a mãe dele, ou pai (sorri com o canto daquele traço fino e sem graça que lhe parece ser a boca).
- Escrevo sobre Antônio porque precisa sempre me lembrar de como mantê-lo vivo.
- Não sei se entendi bem, mas, enfim... Não queria ter atrapalhado de qualquer forma.
- Já que atrapalhou, diga-me, por que acha que lhe pedi para sentar aqui?
- Por que te deu vontade de fumar acompanhado?
- Realmente você está aprendendo.
- Então, está me ensinando algo, é?
- Acredito que sim. Uma lição diferente, talvez um pouco dura. Estou lhe ensinando sobre a mediocridade.
- Com assim? Não ia me dizer sobre do que era feita a gentileza?
- Antônio é uma criança que tem tudo porque seu sangue enriqueceu com o dos outros. Seu sangue é a herança mais valiosa que ele poderia ter. O moleque é filho de coronel.
- Pensei que você fosse pai dele.
- Pensou errado, mas como está em processo de aprendizagem, tudo bem. O que tenho por Antônio é a vontade de ser pai, sem sê-lo. Mas a questão se volta para a gentileza e a mediocridade.
- Acho que a conversa está estranha demais, você me desculpe, mas preciso voltar para minha mesa.
- Antes, queria lhe agradecer pelo cigarro. Nunca mais toque em uma pessoa desconhecida sem o consentimento dela.
- Ok, já pedi desculpa.
- Meu isqueiro.
- Aqui está. Valeu.
Fito seu semblante arrastado saindo e desaparecendo entre os desinteressantes. Eu ainda queimava pelas vistas. Não adiantou muito tentar trucidá-lo ali na mesa. Quando eu estava terminando de colocar pressão na arapuca para, depois, lambuzar a ponta dos espetos com veneno, ele fugiu.
Voltei para Antônio. Continuava lá, agora com um carcará das penas de palha e bico de semente. Suas mãos elevavam o pássaro que sobrevoava o cercadinho com a boiada. Parecia farto, não patrulhava em busca de caça. Talvez, apenas estivesse se planejando para a janta.
Perguntei a Antônio se ele não estava com fome. Ficou quieto por uns segundos e mordeu o porco de batata doce. Aquela criança era realmente simples, pura e simples como toda a criança. Pronta para ser corrompida pelos arredores.
Foi o tempo de pular de um parágrafo pelo outro que, de longe, sentindo a pressão do ar mudar, novamente chega o boca de jabuti.
- Eu já estou indo, não encostei em você, mas quero saber por que disse que estava me ensinando sobre do que é feita a gentileza e a mediocridade?
- Tem mais um cigarro?
- Tenho. O último.
- Não quero. Não fumo o último do maço dos outros.
- Por quê?
- Porque não gostaria que pedissem o meu. E não daria também.
- Gentil da sua parte. Só um minuto...
(Afasta-se, vai até outra mesa com uma garota fumante, pede um cigarro, ganha, retorna e me entrega o mesmo).
- Então, você ia me falar sobre gentileza e mediocridade...
- Antônio é uma criança que, de longe, segue observada por mim - alguém que não é seu pai, mas que o cria, assume sua existência, responde por e para ela. Naquele gigante quarto, o pequeno corpo se fixa como um ponto no meio da frase, uma quebra brusca que obriga a narrativa a abrir a porta e perguntar se está tudo bem. Ele não responde e segue naquele mundo, um mundo dentro do meu, que o olha a distância. O pivete brinca com seus artefatos rústicos, desafiando o conceito que temos de tempo. Ali, Antônio prova que nada além de sua atenção miúda é o que importa, o que conta e o que passa. O mundo, para ele, é uma batata doce com quatro palitos de madeira que formam as patas do "porco". Eu, mesmo vendo Antônio naquela situação agonizante de inércia no vácuo do quarto-universo, ainda assim não encosto nele. Não me sinto à vontade para interromper aquele marasmo em meio ao silêncio castigador da caatinga. Quem sou eu para achar que minha vontade de chacoalhar aquele projeto de pessoa e dizer - "Antônio, menino, você viu meu isqueiro?" podia ser importante o bastante se filho - ou algo do tipo - a gente cria para o mundo? Ponho-me no meu lugar de observador e faço jus a ele. Às vezes, o que me resta é ficar no meu canto, em meio à opulência do herdeiro de coronel e a pobreza da minha narrativa. Antônio permanece lá, consigo mesmo, sabendo pelo calor do meu hálito raivoso que, de longe, eu ainda zelo por sua segurança. O que ele precisa, eu, como seu provedor, dou: atenção. Sem sentir meu toque, ele sabe que nem eu nem ele somos tão importantes assim para valer a interrupção das entrelinhas em que fomos escritos.
- E o que isso tem a ver com mediocridade?
(pego sua mão e a coloco no meu ombro direito).
- Eu sou Antônio.
sábado, 5 de dezembro de 2020
Do que é feita a gentileza
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