quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Corre

Corre como nunca sem olhar pra trás sem dar tempo pra vírgula separar ele do passado que não estava ali pra perseguir, mas... agora respira.... para seguir as pegadas deixadas na vastidão do futuro incerto. Quem diria que estas pernas tão magras, estas canelas tão secas, durariam tempo o bastante pra fazer do distante o aqui e o agora?

Ele enche o pulmão e acelera novamente...

porque ninguém diria e por isso mesmo ele foi sem pensar no não dito só mirando o horizonte e querendo saber o que teria lá do outro lado onde apenas se enxerga com os olhos da imaginação e imagina só chegar a um lugar onde o começo se deita numa linha eterna e nunca mais se levantar era lá que ele queria estar descansando seus ombros tão tensionados pelo tempo perdido com pessoas com trabalho com barulhos com comidas sem tempero com lugares cheios com conversas vazias com garrafas vazias com briga com barriga dolorida de tanto nervoso com mudança de planos com encontro cancelados com mensagens não respondidas com respostas não enviadas com tudo com todos consigo mesmo com a distância que só lhe fazia... perder.... o fôlego.

Solta o ar, sente o corpo endurecer, finge algumas passadas mais lentas e...

retoma o compasso para não perder o pouco espaço compassado e começar novamente e lembrar de tudo que o deixou angustiado todos os dias desta semana interminável e agora é o momento de gastar energia queimando ela com algo que tire do peito o que estava preso nas ideias e pesou ah se pesou faz uma força continue adiante mais rápido veja só agora ele esvazia a mente como se nada absolutamente nada tivesse acontecido achando que isso é que é deixar pra trás o que não lhe fazia bem e meu bem ainda bem que daqui pra frente

Ele não para mais.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

De novo

Não é que não cabia. Havia espaço. O que não sabia era como encaixar. A forma também não era o problema, mas faltava posição, jeito, manha. Então, recolhia as peças e guardava na gaveta. Deixava lá, pra lembrança engolir e cobrir de poeira. Peça por peça, pedaço por pedaço, mudas, dentro do criado. O problema não era o que eu sentia. Não havia problema em sentir, mas demorei pra entender.

Nós.

A viagem já estava marcada. A decisão de ir pra longe - e sozinho - veio junto com uma velha vontade: aquele de se perder sabendo pra onde vai. Algo como se lançar ao desconhecido, sabendo que, de fato, trata-se do desconhecido. Uma necessidade que é complicada porque nasce simples: sair. Partir. Um parto, natural, que faz brotar toda a complexidade do ser, resumida num pequeno humano. Partir era o plano. Agora, cabia apenas encaixar os dias nos pedaços de tempo e organizar tudo. Nascer em outro lugar era preciso. Já não havia tanto espaço assim aqui, onde mesmo com posição, jeito, manha era difícil achar alguma forma de encaixar. Inclusive, esta nem era mais uma preocupação a berrar no canto das ideias. Havia emudecido esta tal vontade de encaixar. Demorei pra entender.

Eu.

Hoje ouvi uma música. Apenas uma, e nela fiquei. Bastava. A sensação preencheu o fundo da gaveta e o criado mudo abriu a boca. Suspirou, não disse nada, mas eu entendi que era pra ficar e fiquei. Parado, ali, olhando pra ele, tentando encaixar aquela letra que passava de um ouvido ao outro, pelo fundo da cabeça, dizendo que "todo carinho do mundo para mim é pouco". Remexi algumas peças escondidas, olhei seus pedaços, cada um mostrava fragmentos da sua foto. Os olhos distantes do rosto, mas perto do coração, como janela; a boca partida em duas, metade sorria, metade morria; as mãos, sem a maciez do toque, formavam um pedaço inteiro da imagem por conta das palmas bem abertas, esperando as minhas preenchê-las. As minhas mãos, do outro lado da moldura, encolhidas e cheias de pedaços que começaram a se encaixar. Senti falta. o problema não era o que eu sentia. Não havia problema em sentir, mas eu demorei pra perceber que o problema "é que eu amo você... e eu nem sei por que". De novo.

Você. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Tempestade

O tempo fechou. Ele estava no quintal, brincando com terra e plantas, quando percebeu a mudança no ar. Aquele mormaço que preenchia todo o espaço começou a ser cortado por sopros frios e apressados. O pequeno menino, por volta de seus 5 anos, levantou os olhos até o céu e viu que as nuvens estavam inquietas. Pouco a pouco, o manto cinzento cobriu as luzes de sol e a tempestade se fez presente. Ao invés de correr para dentro de casa, o menino correu foi até a rua e lá esperou pelos primeiros pingos que mais pareciam pedradas.

Trovões não o assustava. Gostava daquele retumbar que estremecia a carne e os ossos. De braços abertos, ele recebia os ventos cada vez mais furiosos. Por entre seus braços e pernas, sentia como se estivesse flutuando. Quando já não cabia mais água no alto e chão debaixo dos pés, caiu o mundo e o voou o menino.

As árvores dançavam com ele, conforme a tempestade orquestrava. Como se o corpo se transformasse num tornado, ele rodopiava, pulava na altura dos joelhos, mexia todos os membros de acordo com o ritmo do toró. Ventava mais do que os próprios ventos, aquele pivete, sozinho. A tempestade, surpresa com tamanha calmaria em meio às suas trovoadas, banhava com suas lágrimas de raiva aquele pequeno ser e, com seus raios, dava a ele o brilho prateado que só sua pele escura poderia refletir. 

Foi assim que ele recebeu a tempestade: leve, pequeno, com um sorriso gigante, de espírito aberto. Procurou-se em meio à ela, a tempestade, e, enfim, encontrou-se.

...

O tempo acabou. A rotina parecia nunca se saciar. Consumia todas as horas possíveis – e impossíveis – sem que fôssemos capazes, muitas vezes, de encontrar algum momento sem nenhuma tarefa a ser realizada. As reclamações quanto à falta de espaço dentro do tempo não são novas, pelo contrário: são tão constantes que acabam por consumir mais tempo. Irônico, inclusive. É o trabalho que pega a maior parte do dia pra si, mas é a ida e volta até ele também. Durante o expediente, reuniões, problemas, soluções, reuniões, comunicados, demandas, reuniões, acúmulo de trabalho, corrida contra o relógio, horas-extras, fim do expediente, reunião urgente.

Ao sair daquele local que tenta parecer com sua casa, mas nada tem de lar, ele olhou pra baixo, em direção ao celular. Por mais alguns segundos, forçou-se a responder compromissos de modo curto e objetivo, temendo perder mais tempo. E por que perder? Porque sente como se estivesse no gargalo da ampulheta, nadando contra a corrente de areia que escorre constantemente. Então, percebeu uma mudança de pressão no ar. “É chuva, bem agora que vou voltar pra casa...”. O céu já estava vestindo seu traje mais escuro. Os cabelos grisalhos dela sacodiam imensos e densos. Mirou o par de olhos cansados em direção à velha amiga e conseguiu achar o tempo. Ele estava fechado, mas longe de acabar. Sabia que não seria capaz de se banhar ali, com tantos compromissos gradados em sua pele – escura, mas sem brilho. Decidiu que iria fazer seu percurso de volta caminhando. Andou, andou, andou bastante e, como se ela estivesse contente com a companhia, acompanhou o rapaz até seu destino. Quando ele pisou dentro da estação de trem, a chuva caiu. Durante todo o caminho, ele sentiu o sopro sobre o rosto e até achou graça nas rajadas de vento que ela soltava para assustar as demais pessoas – apressadas e temendo a chuvarada repentina. Lembrou-se de como dançava e mais: lembrou-se com quem dançava. Encontraram-se.

...

O tempo mudou. Finalmente, um importante ciclo havia se concluído. Foram anos de estudos, pesquisas, aprendizados e relações pessoais. A graduação exigiu muito dele, mas como se portasse um cinismo crônico, parecia que nada lhe atingia a ponto de causar insegurança. Fez o que tinha que ser feito e terminou aquele compromisso. Não só aquele, inclusive. Terminou também o amor que havia cultivado. Esgotava-se ali algo que havia lhe preenchido. A terra voltava a secar e a ele só restavam as lembranças pra lançar ao ar. O cigarro o acompanhava. Cobrava muito de sua saúde, mas era a fonte de distração que o ajudava a descansar a mente. Pela janela do seu quarto, olhou o horizonte e viu, distante, porém crescendo com rapidez, a nuvem escura e gigantesca. Não se lembra da última vez que reparou na tempestade. Enquanto se formava, ela anunciava sua presença com os raios impacientes e ele, como de costume, apenas aceitou sua vinda. Era uma velha visita que chegava em boa hora. Sentado, com as pernas para fora e a fumaça para dentro, arrepiou quando a pele – escura e marcada – foi acariciada pelas pontas geladas dos dedos dela. Era aquele retorno repleto de saudade que faz chegar com frieza, cautela, mas com vontade. Pela primeira vez, ele decidiu conversar com ela. Um trago...

Chova, chova em mim, mais uma vez, minha amiga, minha mãe, minha parceira. Você que sempre me acompanhou... Que sempre soprou minhas feridas sem deixar de punir meus pensamentos tortuosos com seus trovões...Você que me ensinou a ser bravo e, mesmo assim, amável.  Sei que estou em dívida contigo. Ando sem tempo para prestar atenção em ti quando chega. Eu já não danço mais na rua, você percebeu, né? Pois é, tempos difíceis. Eu falo muito de tempo, reparou? Ele foi embora, sabia? Acabou. Senti um peso no peito, uma vontade de nada, apenas de desaparecer. Mas desaparecer de que jeito? Não tem como, não agora. Aí eu tento me esconder em meio à essa fumaça aqui, entende? Eu sei que você odeia ela, mas sei que me entende... Quando eu fecho os olhos, ainda te sinto me olhando, vendo eu dançar. Quando você rasga o céu com suas reclamações eu também sinto a vibração debaixo do peito. É nos detalhes que eu te encontro. Quando minha pele brilha, também. Desculpe pela distância.

É só uma questão de tempo.

Os cantos


Mantenha-me. Guarde um lugar para mim onde só você consiga chegar. Estarei no canto que ninguém nunca olhou. Um lugar perdido na realidade que, sem se mover, consegue te levar até mim.

Eu estarei lá, no detalhe que consegue chamar sua atenção. Assim, poderá me encontrar, sempre que quiser, e recordar as cores que tingiram a trilha sonora pros nossos sentimentos. Azul, rosa e laranja, borrados no céu entardecido, como se tivessem sido pintadas a dedo no céu. No canto do seu peito eu alcanço o teto onde brilham as lembranças que jamais desaparecerão. Eu moro em você porque você me fez abrigo, simples assim.

Um canto pra mim.

Quero que continue me sentindo. Toda vez que o calor suave do amanhecer tocar seu rosto, lembre-se do meu toque. A cada som que fizer seu sangue vibrar ritmado e devolver ao corpo sua eletricidade, feche os olhos e imagine nossas cores. Deixe-me tocar, dia e noite.

Azul rosa e laranja. Somos nós, dançando, misturados, tom sobre tom, escorrendo pelos cantos da tela, para sempre. Eu jamais te esquecerei. Você é música. É a cor pras minhas músicas favoritas.

Estarei nos cantos que nunca ninguém cantou. Só você.

Eu jamais te esquecerei.

Um canto pra nós.

(Em memória àquele cujo silêncio se fazia canção).