domingo, 15 de maio de 2011
Ser
"A casa precisava mesmo de uma reforma. Os quadros com desenhos sem sentido não cobriam mais os buracos e manchas das paredes. Também foi uma forma que encontramos de fazer algo juntos. O tempo anda curto e nossos humores também. Dois segundos e eles se vão. Colocar roupas velhas, prender o cabelo, escolher o melhor pincel e perceber que ele não vai te servir de nada. Ser um casal, simples assim.
Observei seu traço leve. A trilha que fez com as mãos e que, com toda a graça de alguém que não nasceu para as artes, ousou ao atravessar de um canto para outro. Foi muito parecido com o sorriso que meu deu, quando nos conhecemos. Ousadia que me conquistou, vale admitir nesse momento. Não fiquei para trás. Persegui seus movimentos e penetrei na essência da sua leveza. Como você me disse uma vez, "Foi assim que me conquistou, como um cego, conseguiu me ver como de fato sou". Ao trabalho. Completamos a primeira parede em silêncio, mas com pequenas gotas de tinta espirrando no braço um do outro. Tocávamos-nos assim. Ser discreto sem esqueCER como se diz "estou aqui, viu?".
Durante horas, me lembrei de como tudo deu tão certo, a ponto de ter se tornado insuportável. Você decifrou meu silêncio desde o começo, uma vez que era o olhar quem ditava as regras. Não se importava com os dias em que eu optava por dizer poucas palavras, desde que no meio delas estivesse alguma que expressasse o amor que sentia. Interpretava meu corpo e dançava com suas necessidades. De fato, você tem o dom. Enquanto metade de uma nova parede era preenchida com cor, eu sorria internamente e até arriscaria uma lágrima, se não fosse tão "eu". Dessa vez era você quem me observava. Ser eu mesmo, só com você. Ser nós.
Fui buscar mais tinta e percebi que você voltava da cozinha com algo escondido dentro de uma sacola. Acreditei que fosse algo para comer, não me importei. No caminho para o quarto, vi nossas fotos pelo corredor. Eram como flores num jardim. As memórias perfumadas seduziam minha mente e a boca salivava com o néctar dos frutos que nosso amor colheu. Lembrei dos longos invernos, onde tudo parecia morrer e secar. Toda vez que o fim se aproximava, nós buscávamos o último graveto no quintal e com ele fazíamos uma pequena fogueira. Aquecíamos nossos corações. Com mais uma galão de tinta, retornei para a sala.
Você segurava um pincel diferente, molhado com tinta vermelha. Caminhou na minha direção e sem dizer uma palavra molhou minha mão com o pigmento da paixão. Como se caminhássemos rumo ao altar, você segurou nossas mãos juntas e estampou ambas as palmas naquele espaço infinito. Casamos ali. Ser um só, no momento em que eu mais precisava. O vermelho dali era mais forte que o sangue.
Se for para ser, tem que ser mais forte do que o sangue.
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