Sempre que começava um novo semestre, algum professor arriscava a mesma pergunta: “Por que escolheu o jornalismo?”. Respostas clichês à parte, o que faltava nas explicações era aquela sinceridade ousada e espontânea. De aluno em aluno, o professor se desinteressava pelo o que era dito, talvez por também não saber responder a tal pergunta. Talvez, por arrependimento.
Ao longo dos anos, o fantasma que perseguia esta questão assombrou meus pensamentos, meus textos e minhas entrevistas. Minha mãe costumava dizer que eu era uma criança muito quieta e pensativa. Alguns familiares arriscavam autismo. Meu pai nunca dizia nada. Meu irmão me achava estranho. Ainda assim, o amor permaneceu. Nos momentos que passei abraçado à minha essência, tecia histórias e construía possibilidades. O mundo não era desinteressante e eu não odiava as pessoas. Apenas gostava de criar meus próprios roteiros, ainda que não soubesse o que significava essa palavra. Escrevia sem saber escrever.
Anos e anos acumulando folhas e o jornalismo não surgiu como único caminho. Pensei em fazer biologia, psicologia e pediatria – para poder me vingar dos filhos dos médicos que me receitavam injeções. Entrei no curso sem ter uma resposta ensaiada. Eu gostava de escrever. Hoje percebo que isso não tem muito a ver com minha graduação. O meu “escrever” ainda desconhece muitas palavras e regras seguidas pelos grandes jornalistas. É um “escrever” analfabeto e feliz. Mas toda felicidade dura pouco.
Aprender é um processo lento e delicado. Uma relação complexa onde os sentimentos se rompem com uma simples vírgula. Formatar minha escrita, padronizar minha introdução e diminuir minhas frases foi como domar um cavalo. Tirar um peixe dourado do mar e colocá-lo no aquário da sala. Dar um jantar para os amigos jornalistas e exibir o troféu roubado de Poseidon. Resisti ao máximo e consegui seguir a lógica coorporativa. O verbo “conseguir” não veio seguido do sabor da vitória. Consegui me trair. Entreguei meus cavalos a fazendeiros frustrados e meus peixes dourados viraram notas no boletim. Números quebrados. Nada mais característico.
No último dia 16 de maio foi o “Dia do Gari”. Algum jornal ou site deve ter dado uma nota sobre. Pegam a forma básica de algo publicado no ano passado - ou no século passado - e enaltecem, com muita falsidade, a profissão sem respeitar o profissional. Muito mais do que o “Dia do Gari”, a data também deveria permitir que o João falasse dos seus sonhos, que a Rita dissesse o que pensa sobre as ruas, que o José, tão conhecido por todos, falasse um pouco sobre música, futebol ou qualquer coisa que compensasse a dura jornada de trabalho. Mas esse é o jornalismo que ninguém lê, ainda que muitos escrevam.
Não posso terminar esse texto sem citar o livro que me fez devolver ao mar os peixes roubados do meu oceano de ideias. “A vida que ninguém vê”, da jornalista Eliane Brum, explora as áreas mais temidas do jornalismo. Com simplicidade e interesse verdadeiro – não aquele que quer saber apenas de prestígio e elogio por parte dos colegas de trabalho – ela tece uma colcha de histórias onde as diferenças sociais são detalhes. A vida que não se vê é justamente aquela que, por um dia, mês ou ano, vivemos ou viveremos. São fragmentos do desconhecido que amedrontam nossas casas e escritórios. Desconhecer o que vem depois ou o que pode acontecer com nossos destinos. Palavras de efeito defeituoso ou ambíguo. Que não percam seu valor, mas ao menos se permitam cair em contradição. Conte ao povo algo sobre o povo, alguma coisa desse tipo.
O jornalismo que ninguém lê é justamente o que me encanta. É o que carrego nas mãos que ainda estranham muitas palavras. É um jornalismo que nasce da essência tímida e inquieta. Ele quer ouvir. Quer saber. Conhecer. E não ser egoísta. Quer contar. Quer ser compreendido e não apenas lido. Minha avó não sabia ler com maestria. Mas escreveu com traços invisíveis a única palavra que lhe deu força durante toda a vida: amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário