segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Criança quieta

Com as mãos pequenas e egoístas, querendo tudo ao seu alcance, esmagou o mundo. Não sobrou nada, nem ninguém. Só sangue e pedaços de gente de ontem, passada, gente que não mais faria visita. Criança tem desculpa, pra tudo, pode tudo, porque não sabe ainda do tamanho que é o nada do futuro adulto. Criança pode, por isso nunca morre, fica dentro da gente - a que mata e não que morre, por décadas, até se cansar. Criança pode, com as mãos, esmagar o mundo. 

Não precisa gritar. Não faz birra. É criança das quietas, aquelas vistas como piores, ruins desde sempre, que vão, fazem e não deixam rastro. Nem as manchas nas palmas conferem culpa. Assim, como quem não quer nada, faz porque é criança. Porque pode. Sabe que será guardada e protegido no melhor lugar dentro da gente. Na morada do egoísmo que sempre quer, faz e não leva culpa. 

Quando penso na criança, vejo ela num quarto amadeirado, com uma janela de altura mediana, da qual se pode ver o mundo do pescoço, pendurado, prestes a se enforcar. Não precisa ficar na ponta dos pés, é uma visão confortável. Neste pequeno espaço, uma cama com cobertor de céu estrelado. Para a criança do meu quarto, morrer é se cobrir com o céu e dormir, enquanto flutua a cama para onde não sabemos. Esta criança precisa deste quarto. Um precisa do outro e eu dos dois, em mim, igual gente besta que sozinha não consegue ir além do que limita a camada da pele, a de baixo, não a que pela. A que sangra. 

Quieta, não precisa de mãe ali pra lhe mandar calar. Ela é naturalmente quieta. Nasceu sem choro, sufocada pela vida prematuramente custosa. Quando voltou à vida, antes mesmo de ter chagado nela, também não chorou. Chorou pouco essa criança, mas quando chorava, o mundo implorava para ser esmagado por ela. Tão boa, tão solícita, criança pura, daquelas que acredita porque não vê na mentira cor alguma. Acredita em tudo porque a cor é de verdade, verde, azul, vermelha, mas principalmente azul, às vezes a verdade é amarela feito sorriso da gente toda que merece ser esmagada. Nada pior do que ver o mar nos olhos daquela criança rebentando ondas pra fora dos cílios, correndo pelo rosto. Pior ainda era ser a causa de seu silêncio. Pois da sua boca só saía aquela doce palavra de carinho genuíno. O mundo ia dormir torcendo para não acordar. 

Doeu cedo. Sem entender, a criança foi. Acreditou. Sem saber, confiou. Sem saber, soube depois. A inocência é, antes de tudo, um escudo. Uma malha de aço impenetrável, mas com aparência de vidro. Vê-se através dela o que a criança não sabe esconder - porque nunca precisou. Sua fé nos outros e de que os outros ali estão para lhe proteger. Fé e transparência, é disso que são feitas as crianças caladas demais. As mais fáceis de serem esmagadas por gente. 

Esta, em especial, vive no quarto, protegida do afora. Sente falta de ter com quem conversar, mas às vezes eu consigo ter um tempo para ir visitá-la. Conta-me dos seus pensamentos, de como organizou as constelações todas por tamanho, de como as manchas no universo são tão coloridas, que ali há verdade pura e transparente, que o universo é independentemente da gente. E ele se finda também independentemente da gente. A criança observa tudo isso e suas mãos já pouco importam. Sangue não é sujeira. Sangue é gente pra escorrer. Esmagou todas elas antes que elas mesmas se esmagassem e, antes, fizessem da criança um mundo todo para explorar. Gente não esmaga criança porque prefere destruí-la ao longo da vida. Cabe a nós protegê-las no mais seguro de todos os lugares: aquele que não contamos o endereço. 

Dentro, bem nos confins de quem já não suporta mais ter que viver do outro lado da janela média, a criança redesenha o tempo e se conta de traz para frente. Esperando que, finalmente, o dia do seu não nascimento seja parido. Quem sabe assim a gente deixa a criança em paz. 

Hoje, ela só quer ficar quieta. 

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