quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Itsuki

Quando você entrou em meu quarto, tive a certeza de que seria o fim. Eu já esperava por isso. Pensar que viajei tanto, por tantos mundos, paralelos e, ao mesmo tempo, desviantes, mas sempre vazios. Nenhum deles, entretanto, apresentou-me uma presença tão sutil como a sua. Nem no absoluto vácuo dos limites de universo senti tanta paz. Sua chegada era minha partida. Finalmente eu sentiria saudades de mim. Permitir-me-ia fazer falta a mim. Não fez. Hesitou.

Este mundo estranho tinha sua graça. A falta de sentido nas expressões era o que mais me interessava. Pareciam, propositalmente, destoarem de qualquer linha a tecer a malha das realidades. Riam de si mesmos e dos outros, num eterno ciclo de bocarras com caninos serrados. Não eram mais tão bestas, porém mantinham os caninos. Tudo era risório, descontinuado, saturado demais e, ainda assim, interessante. Da outra ponta da estrela já morta brilhava o planeta extinto que nunca parou de rir de si. Orbitava no passado de pura poeira sua graça, como anéis solitários na lembrança a insistir no brilho. Eterno brilho.

Assistimos juntos ao último capítulo que eu veria do meu programa de TV favorito. Era o seu também. Por isso, creio eu, não me tirou a vida de imediato. Achou graça no meu flutuar insosso e espiralado do corpo. Virei-me, olhei-te, rimos e vimos àquele paradoxo contínuo que nos fazia morrer de gargalhar em vez de silenciar antecipando o velório esperado. Eu não morri naquele dia. Você não me matou. Nascemos um para o outro e o parto foi normal. Natural feito o estranho gosto pelo programa insosso.

Você queria o fim de todos —menos de mim. Isso era o que eu mais amava. Sem ninguém ao redor, poderíamos ser as últimas faíscas na penumbra sideral. Não haveria ida nem chegada. Juntos, você com suas longas pernas dançando feito lâminas e eu com braços dos outros atravessando as fissuras que crio no tempo e no espaço, ligaríamos os distantes; chamaríamos os esquecidos; permitiríamos que os mundos se conhecessem ao tornar a teoria do espelho reflexo não mais invertido do saber universal —da linguagem tão significante que passa a dispensar o significado. Nós dois, entrelaçados, predicando o par de assujeitados.

Seu plano era o meu. Mesmo com minha coleção de dimensões o seu plano era o meu. Único, segui-o cegamente. Perguntou-me, nas noites que se seguiram: “Você pode engolir quantos mundos?”. Respondi indagando quantos ele conhecia. “Além do nosso, tantos vários, muitos. Disse a ele que poderia abocanhar todos, pois meu vazio desconhecia fim. Desta vez ele não riu. Não rimos. Segui-o silenciosamente.

Antes de ti, existi sem relógio. Atravessei espaços imaginários que brotavam de inconsciência alguma. Nem teriam como. Ausência de eu, de ele, de aquilo. Os verbos eram poucos, pois as ações praticamente não precisavam existir. O passar simplesmente se anemiava de qualquer pulsação. Sem relógio a coleirar minha presença. Sem parto normal. O corte era cesariano. Anunciava minha chegada como a de um rei sem súditos. Eu apenas passava sem significado. Insignificante.

Por não ter berçado dentro da boca da mãe, também não fui engolido. Aprendi a engolir os outros. Não com minha boca, mas com a daquele homem diferente. Ele não piscava. Os lábios eram grossos. Em vez de pele, sombra. Umbro demais. O rosto do universo, acredito eu. Encontrei uma forma de fazer com que ele tomasse pela boca o que eu não conseguia deglutir com os olhos. A troca era justa, penso hoje: ele devorava meus incômodos, eu o enganava ao encher sua goela com a indiferença cáustica de minha negligente razão. O homem escuro desconhecia as horas, os ponteiros e os três pilares do tempo: passado, presente e futuro. Era ele, o tal homem, um novo antielemento: o esquecimento —aquilo que pode ser passado, ocorrer no presente e ser a única certeza do futuro, a de que sempre, sempre, iremos esquecer de algo amanhã.

Dói vê-lo agora, em meus braços, tão ferido. São as marcas que provam o quanto de seu sangue você dedicou ao seu plano. Lutou bravamente, sem deixar de dançar. O olhar fixo foi sua marca de guerra, e confesso que admirei cada golpe que levou. Como não degustar a rigidez da sua carne ao repelir estocadas? Eu não abro a boca da cara por vergonha nela. Eu abro a do estômago, mas quem devora é o homem sombreado. Porém, no seu caso, fui eu que desejei, flexionei o maxilar e aconcheguei teu resto. Caído, o que me restou dizer foi que agora te levaria para um outro lugar onde não precisaríamos mais nos separar. Era, agora, a vez do meu plano.

Era agora. Foi neste momento. Aconteceu neste instante. Li certa vez, nas palavras de quem adormeceu sobre as colchas da obliteração, que a história não é o passado. Pelo contrário, por ter o dom de trazer ao presente o que aconteceu num passado qualquer, faz-se tão contemporânea quanto o irritante presente do indicativo. É história porque é agora e o “para ontem” se esvaziou de sentido. Eu conto sobre nós dois nesta dimensão estranha porque não há começo ou fim quando, ao entrar no meu quarto, a pessoa me fez esquecer, finalmente, do fim.

Eu só quis.

domingo, 17 de novembro de 2024

Carta 1

 Sentei pra te escrever. Acabei de fumar. Voltei, inclusive.

Por esses dias eu revirei uns CDs antigos com pastas mais antigas ainda e achei uma de nós dois. “Time for Heroes” é o nome dela. Estava lá, com algumas fotos nossas, especificamente de um dia em que fomos beber juntos pela primeira vez na Augusta. Foi Original de 600ml. Tocou-me. Senti falta do junto. Era bom. Amortecia a parte dura de mim e parecia que eu era tudo —que não precisava mais de nada.

Tem um vídeo nessa pasta. Primeiro, peço que você fale alguma coisa. “Alguma coisa”, responde você, rindo, e chamando sua fala de “clichê”. Em seguida, eu digo algo como “esta é sua chance de se declarar pra mim”. Você responde “olhe nos meus olhos...”, ri novamente, e o vídeo acaba.

Na noite seguinte sonhei contigo. Encontrávamo-nos em lugar algum e só me lembro do seu rosto e você a me dizer: “sabe em que momento eu comecei a amar você?”. Não houve resposta. Acordei e só.

O eu mora no centro de si. Abraçando-se, eu fica protegido por filetes de vidro cuja flexibilidade de topologia impossível cortina feito soprar morno os desejos todos. Orbitam o eu com as lâminas do medo.

Será que você ainda me lê? Aqui, talvez. Falou, um dia, que ainda passava na frente de minha casa e imaginava se ainda estaria ali. A gente se viu outras tantas vezes depois daquele dia da Original. Só que eu nem faço questão de lembrar delas. Só uma que valeu a pena ter vivido contigo, neste meio tempo: o dia em que ficamos no telhado da sua casa, sob céu estrelado.

Só sentei para te escrever  mesmo. Não terá beleza, estilo, estrutura ou o que mais precisasse ter para fazer disso aqui literatura alguma. Acabei de escrever duas palavras fortes entre metáforas e apagar. Entendeu? Não sai. Eu sei, eu sinto, eu tenho as palavras, mas não sai. Ainda assim eu sentei aqui para te escrever. Fumei e deu uma melhorada. Está tocado Smashing Pumpikins, a versão instrumental de “Tonight, Tonight!”. Sempre me faz lembrar de céu estrelado.

Era isso. Não sei se você ainda me lê. Espero que sim.

Escrevo mais depois.

 

 

domingo, 19 de maio de 2024

Se eu dormir agora

Pareço perder a violência no que sinto. A compensação pelo nunca vivido se tornou a promessa feita pelo amanhã que nunca me sabe. Falta algo. Falta tanto, mas algo parece faltar mais. Não que cave buracos, não é isso. A sensação é a de que muito se tem para cobrir o pouco que foi. Eu queria reencontrar a violência no que sinto. Dava alguma cor ao invisível. 

Não consigo explicar a dor nem a raiva. Percebo que inicio sempre o diálogo perdendo o tempo e, ao mesmo tempo, apelando para o outro. Em cinco segundos, lembro-me do céu, da temperatura, se ventou ou se peguei chuva. Assim inicio o tempo pelo tempo, do relógio ao relâmpago. Vou dizendo, mas ainda sem conseguir explicar. Lá parece não doer. Talvez o tempo despendido a tecer histórias pela boca como se minha a língua cozesse, alivie. Não sei, estou confuso - repito isso constantemente quando sou obrigado a falar de mim para o outro. Ele ali, parado, às vezes sonolento, com as cortinas pesando e a visão direcionada a mim, horizontando o nada e tentando me convencer de que não o engano. De que ele sabe do que eu não estou falando. 

Quando anoitece, sou eu e os tantos. Hoje o aperto veio logo depois de um sono mortífero, relaxante, como imagino que seja a partida de quem falece oniricamente. Elaborando a inexistência no único lugar onde realmente somos felizes: no delírio do sonho. Abri a janela, o céu lá. Com costume de criança, olhei, novamente a fabulação, a loucura de falar telepaticamente com o vácuo do espaço. As drogas ajudam, elas tiram a culpa pela insanidade, desespero, pela solidão que nunca é preenchida com a presença do outro. Ele, ali, parado, às vezes mais imaginário do que nunca, pois jamais existiu ou existirá. 

Agora dói. Já soa natural pensar no sofrimento que nunca passa. Agora dói de verdade. Talvez consiga descrever agora. Seria algo assim: 

E quando eu me olhei, revi toda angústia. Lembrei das vezes em que não chorei por vergonha de ruir. Das outras que engoli o choro porque quem me cortava parecia querer-me como coisa, não como gente. Eu sofro quando me recordo que sempre quis fazer o bem aos outros, agradar, ser útil, ajudar, não porque me obrigavam, mas pelo fato de que eu não sabia sentir de outro jeito. Dói quando não me deixo esquecer do quanto de amor que eu sufoquei. Com as mãos em seu pescoço, apertei firme enquanto secavam seus lábios e molhavam seus olhos as lágrimas minhas. Eu o matei poucas vezes, mas todas doeram demais. Pouco é muito quando faz o tudo, o todo e o tanto. 

É um rasgar lento. Vai me abrindo e deixando escorrer nada. Abre e não sai nada. Por que certos pensamentos se repetem sem parar? Sumir, fugir, não existir, isolar, esquecerem-me, deixarem-me, assim é melhor, assim eu sei como é, assim eu sei como é sofrer, assim eu sei como eu sou melhor sofrendo, assim eu sei que é melhor sofrer sendo eu do que o outro. Ele, ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa. Eu digo que agora dói. Finalmente, dói. 

Não sinto as linhas do mundo amarradas ao meu corpo. Os laços, os nós, na garganta, em todo lugar, nós, eu e o outro, ele, ali, nós, na garganta, mas eu não me sinto preso ao mundo sendo sua marionete. Eu não sinto aquela ligação que me mantinha nele, com ele. Não sinto mais. Apagaram as luzes novamente. Eu e os tantos apagamos. Deste vez doeu como nunca. Um novo doer, um novo amanhecer igual. Eu desvejo o mundo e nele não me enxergo. Invisível, mas há outros tons. Eles, ali, pintados, um amarelo muito claro, beirando o branco, o outro poeira rosada, o profundo índigo e o azul mais claro remetendo à inocência. Eu acho que estou em órbita, agora na atmosfera, na moleira do mundo, solto. E triste. 

Um balão vagava rumo ao infinito. Não havia mão alguma para segurá-lo. Enquanto existisse nada dentro de si, continuaria. Por onde passava, ninguém. Onde chegava, não há. Quando parava, não ia. Um balão negro que sobrou do mundo. Perdeu a linha, subiu pra cabeça, agora nada. Não se vai longe quando o destino é o infinito. Para sempre lugar nenhum. Nem longe, nem perto. O balão solto. E triste.

Se é algum tipo de doença incurável, não preciso saber. Sei que é porque sinto o que é. Passo as pontas dos dedos sobre o peito, deixo que tropecem nas ondulações ósseas e, então, esvazio os pulmões pressionando-os como se os quisesse reviver. Já não dói mais de tanto que dói. Sem lágrimas dói mais ainda. Sem lágrimas dói como nunca. Dói como nada, como ninguém. Dói tanto com ninguém. Dói como um novo amanhecer igual. Dói como o outro. Ele ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa.

- Se eu dormir agora, morro sem dor, como ninguém?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Este quem aquém

Corri das situações dramáticas. Talvez tenha errado em não recorrer aos caminhos comuns, aqueles tanto indicados pelos outros. Escrevi uma mensagem curta apenas dizendo que precisava me recolher. Não deixei espaço para que oferecessem o pegar dos cacos no chão. Apavorou-me a possibilidade de querem. Num movimento que só eu conheço, aproximei-me e, na mesma velocidade, desapareci. Os poucos que acharam a mim ter alcançado erraram. Sem problemas, desde que não voltem a me procurar. 

As luzes bonitas banhando as calaçadas. As luzes sempre passam pelo meu olhar, mesmo hoje, tempo estranho em que pareço ter me coberto de uma apatia esverdeada feito os contos de Poe. Ainda assim, presto atenção nas luzes. Parecem elas vir com música. Mitski, creio eu, no atual estado de psico que me encontro. Estado em que deixo um elemento de composição sozinho. Estado de abandono. 

E envelheço meio a isso tudo. Distante de uma forma de vigor irritantemente incapaz de aceitar seu fim. Eu já aceitei muito cedo, inclusive quando não tinha nem chances de vencer as tantas vontades que tendem a impulsionar a vida. Os empurrões todos, um inferno, um calor de gelar que parece ter a pressa dos atrasados juntos, esperando uns aos outros. 

De repente eu só quis querer. Tive muitas vontades de me sentir querendo muito do que eu, conscientemente, sei que jamais terei. Quis muitos eles pelo caminho, fui deixando-os sem, às vezes, jamais tê-los tido concretamente. Sabe-se lá por quais motivos minha mente se organizou assim. Quando te ensinam um único jeito de dobrar as roupas, é com essa mania que você seguirá dobrando, ainda que, vestidas, marquem a silheta errada de seu corpo. É o que é, como é, como sempre foi.

Querer tem disso, de desdobrar e não deixar traço que recupere as formas de antes. Por via das tantas dúvidas, acabo passando por onde o ferro desdobra. A sola fica quente, queima às vezes, mas ao menos não desamasso. Pelo menos eu quero sem ser querido. Quem quer gente toda amassada? Se alguém quis, afastei-me antes de sentir o querido em mim. 

Foi-se a poesia que nunca existiu aqui. Foi-se tudo. Foice que cortou até o que nem tinha. Dancei sozinho desde a primeira vez e acho que isso me passou. Daí em diante, toda vez que a tempestade se forma, eu me arrumo pra ficar descalso e amarrotado debaixo do vendaval e só toca meu corpo as ventanias todas.

Medo e raiva de trovão não tive e não tenho. Dancei perto das árvores, não debaixo. A segurança vinha daí. Delas. Sempre delas, as com raízes escuras e firmes, pacientes, centenárias, as antigas que sem medo do céu me permitiram herdar um pouco desta coragem. Só que eu me movimento demais. Não finco tanto. Por isso caí nas graças da fúria, balançando de envergar a espinha.

Desta vez eu sangrei menos. Não por falta de lasco. A verdade é que nunca tive muito o que escorrer e agora sobrou menos ainda. Nunca teve muito o que vazar de minhas brechas além do imenso tudo que eu ainda mantenho apertado naquele canto de quarto que tomo conta na forma da inocente criança que caiu no buraco de barro e de lá sozinha saiu. Sozinha se limpou, mesmo que terra não seja sujeira. Ela, a criança, com o todo imenso e amassado entre suas mãos, um querido, ele, por quem, hoje grande, teme que o queiram. Este quem áquem. É um quem aquém.