sábado, 14 de setembro de 2019

Lar dos Lugares

Senti, quando meus pés tocaram o solo desconhecido, que já não era mais o mesmo. A decisão de ir para outro canto causou angustia, mas, no final das contas, serviu para que me redescobrisse por uma outra perspectiva. Eu me vi de longe. Confesso, não sou muito o tipo que sai por aí e se lança no desconhecido como Louco. Ainda assim, o que eu buscava não estava perto. Na verdade, para ser mais sincero ainda, eu não buscava nada além da chance de não deixar rastro ou ter que seguir pegadas de um outro qualquer. Havia um endereço, sim. Havia para onde ir, quem encontrar.

O que não havia era um nome pro lugar onde eu queria ficar.

Chegar a um ponto em que não havia passado nem haveria futuro. Este foi o primeiro pensamento a tomar as malas de minha mão quando desembarquei. O meio termo cabia perfeitamente. Era ele, o meio, apenas tempo presente - aquele sentido ao longo dos momentos que se findariam em si. Descompromissado, solto - como eu - o tempo.  Era assim que eu interpretava a viagem: como um marco zero. Era o presente. O estar presente.

De volta, enquanto revisito agora as lembranças, consigo observar perfeitamente as nuances dos momentos vividos. Na suavidade da transição entre tons sem bordas, recordo de cada cor sem que uma se misture a outra. Entendo, hoje, que era o lugar. Ainda sem nome, mas era o lugar. Só uma figura permanecia intacta e pendurada em todas as paredes, horizontes, mares, distâncias, lençóis, anoiteceres, amanheceres, olhares meus por através dos dias: a dele.

Lar

Onde eu chego e quero ficar
onde eu finco e insisto em não deixar 
rastro algum, além das marcas em cada curva 
que insiste em me dobrar. 

Duas vezes mais perdido na vastidão 
desse espaço macio sobre o qual largo meu corpo, 
alargo meu gosto e degusto o que há de melhor na região: 
seu rosto que... dentro da minha boca faz abrigo e brinca comigo
sem me deixar outra opção senão parar, admirar e dizer em alto e bom som
lar, doce lábio.

De manhã me aconchega e diz que eu posso ficar mais tempo na cama 
pra só de tarde perguntar se eu saí e vi o mundo lá fora 
Quando escurece, é você que aparece vestido de noite
passa um endereço, define o local e marca a hora 
desse jeito não tenho outra saída senão chegar na calma 
de quem não reconhece as ruas que vê, mas confia no desejo
no desejo de te ter. 




quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Fogo e Vento na moleira do menino

No céu vermelho, quente feito o chão da pele, corta com luz o raio da ordem. Retumbo acha abrigo dentro dos corpos curvados esperando a chuva quente pra limpar. Sobe pro céu suspiro do desespero e o choro engasgado vira grito nos tambores do trovão. Vem à guerra os filhos da terra escura, filhos do sol e do ferro, banhados pelo ouro que adorna a memória dos ancestrais. Saúda o mensageiro que abre os caminhos, povo dos povos, e deixa passar o senhor da justiça. 

O sangue que ferve também escorre e lava o espírito. Banho de vida, legado, enrolado nos panos do destino, paga hoje aquele que ontem se omitiu – e amanhã vai cobrar. Enxague bem a nuca, a moleira, o peito, porque passado, futuro e presente são um só, ao mesmo tempo, como nome e sobrenome. Então revele pra eles, senhor dos raios rubros, do vento quente, quem levará o nome da mãe e do pai.  Quem é a fruta que amadurece no calor, seca o caroço antes de virar semente. Peça à bênção das mães das águas, dos filhos do solo, pra fazer berço às crianças que estão por vir. Aquece os corações, dono das tempestades, pra batucar o soluço das crias pelos tantos cantos do mundo. 

Chamo pra cabeça o peso do machado que corta a mentira. Chamo o trançar dos raios que desenham os caminhos pro espírito passar. Chamo o fogo, queimo os ossos, entrego os joelhos, dou-me pra incendiar a dor e, mais uma vez, erguer a cabeça como filho de reis e rainhas. A pedreira não rolará em cima de mim.  

Sou filho da tempestade, parido na madrugada de uma quarta-feira.

Pai e mãe fecharam os braços em volta de mim, como o tempo acima de nós.