sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Por mim


Na sonolência do meu olhar, escondo o desejo imenso de repousar sobre o seu peito. Saio pra rua, caminho meio torto, esperando que a brisa da noite sopre meu rosto e tire esse calor todo. 

Penso em nós. Soa bonito dentro dos ouvidos, tipo sussurro mesmo. De leve, você não diz que me quer. Não diz nada, silencioso, distante, só vem e vai como quem não sabe o que faz – mas sabe com quem faz. É uma mistura de falta com contemplação, aquela visita que se faz apenas com as lembranças. Não tem batida na porta nem sorriso nas mãos. Não tem toque de campainha ou abraço de coração. É só a vontade, mais uma vez, fervendo o sangue.

As luzes despencam do céu pra forrar o asfalto. Pelas vielas, astros espalhados, escondidos, mas reluzentes. Gosto de me perder no jardim de cacos, caçambas, ralos. Parece que os pés se sentem em casa e caminham descalços pelos cômodos. Por isso eu ando. Ando muito, sem nenhum incômodo. 

Gosto de ir pra longe da sua voz... Assim, eu sinto que ecoo. Retumbo aí dentro de você e me espalho tempestuoso pelo céu das ideias, nublando todas as brigas que tivemos. Tem dias que o meu tempo tá fechado, mas ainda assim, quando você ri, eu me abro.

Passo atrás de passo, eu sigo pelo caminho das quebradas, subo no ônibus e escolho qualquer parada. Veja só, eu me vejo só, agora aqui, rimando sem querer, pensando sem querer, sentindo muito, sem querer. A cada sinal que entrega a tiazinha pra sua goma ou o senhor pro seu culto, eu permaneço lá no fundo, oculto, calado, mas com a cabeça a mil – sem dar sinal. 

Com os ouvidos nos fones, a música estabelece um diálogo tranquilo, versando comigo, contando “Quando você vem”. Como você chega e me desestrutura. Tem caos que a gente pede mesmo. Que a gente quer. Tem desordem que alinha nossa espinha, pressiona a nuca, faz a pressão subir e descer sem parar. Aquela muvuca que encaixa na nossa. Mas não pode ser sempre assim, senão vira bagunça.

Com o rosto colado na janela do metrô, vejo a noite cobrindo as casas, apartamentos, avenidas, postes e suas luzes de mercúrio. Sinto o pé no chão de aço se movendo rápido e fico em órbita. Será que tô mesmo na terra ainda essas horas? Eu penso demais, briso demais, sopro demais vários pensamentos no teto da cabeça. Eu me falo – calado – e continuo dizendo frases e mais frases, num eterno cosmos. 

Assim vou me enchendo. Tem horas que cansa. Tem horas que eu lanço uma sacada muito boa e olho pro horizonte como se ele me admirasse. Mas sempre falta caneta pra registrar. Então, só deixo passar. 

Tem horas que a mente atua como ponta de lança e me fura. Sinto aquela dor se espalhar pela carne de um jeito que chega a ser suave. E então eu volto. A realidade me chama cedo e sempre diz: “já acordou?”. Sim, sem hora.

Sou filho da cidade com o concreto. Da mãe pé no chão cujo solo é de asfalto, sem marido, garantida, noturna, mal-humorada à luz do dia. Eu sou filho das esquinas, das vendinhas, das quitandas, das feiras, das pracinhas. Sou filho da quebrada, sempre firme, sempre triste, sempre recuperada. Minha mãe é estilhaço de amor, é xepa de carinho, ela sobra no final de cada hoje e renasce no começo de cada amanhã. Está farta, seja de cansaço, de fome, de tristeza, de problemas, de gente, só sei que ela é - e está - farta. Pontual, sem reclamar pra fora, chorando por dentro na beira da pia, com a barriga molhada no tanque, ela trava a guerra diária contra um exército de chances - escorridas. Quando chove, a cidade-minha-mãe anda cautelosa – e quando ferve a sola, ela desfila como quem já conhecesse os caminhos do inferno. Minha mãe é urbana, é várias em uma só, mas uma só pra vários. Porque ama, insiste em quem ama. Ela é bairro, lar, casa, ela fica, limpa, sempre se desgasta. Minha mãe só se liberta quando faz de si feriado. Quando perde o próprio CEP e joga num terreno baldio o gosto amargo da boca maldita que a maltrata. Quando folga e é folgada. Sou filho da cidade e meu pai, como todo pai, é só saudade - aquele sentimento concreto.

Por isso que hoje eu ando. Porque a cidade me ensinou todos os caminhos pra esquecer de te esquecer. Ela me ensinou como me perder. Vou, vou mesmo, para sentir cada parte do meu corpo reagindo ao veneno nos teus lábios.


É para me curar que eu vou e, agora, nem me pergunto mais “– Quando você não vem?”. Relato, troco interrogação por desabafo, pedido por despedida e dúvida por afirmação. Sento, invento um mapa qualquer, traço algumas rotas imaginárias e começo a vagar.   

Vou pela cidade.

E por mim. 

sábado, 21 de janeiro de 2017

Chorar

A chuva vem. E não se questiona pra quem. Quando? Onde? Como? Pode? Chega e cai. Certa de si, dá a si. Despenca e vai.

Ela só molha - e olha você reclamar. A chuva, essa Shiva de fora que banha a pele e esfria a alma, só evapora quando o peito acelera a manda pras pernas o impulso pra corrida até onde estiver coberta - a área.

A chuva não se importa. Você que se chova!

Para de pluviar - e de torrente mole - e começa e pensar como se esquivar de quem tem todas as palavras pra te deixar sem um pingo de gota serena - daquele jeito que escorre. Sua raiva evapora. Oras, pouco me importa.

A chuva só vem e molha. Aceita que ensopa - menos.

Sim, nós já tentamos amarrar a cara, trancar a lábia, morder o beiço, pensar num jeito de não chorar. Mas para que todo esse trabalho? Chorar não é o máximo?

Na tela, na peça, no palco, longe do asfalto... Falta. Não ganha prêmio quem esgoela? Não mama quem chora? Vocês dizem assim, toda hora. E agora, justo agora, cala?

E quem chora sozinha na rua, na casa, no quarto, no banheiro, naquela viela? Ué, vi ela ali, sentada, sozinha, perdida nas próprias desgraças - e cadê o guarda para defendê-la da chuva? Ficou sem graça?

A real é que ninguém compartilha lágrima, guarda ou angústia- quem dirá chuva.

Quando se propõe a ser tempestuoso, não tem erro: é tirado de cabuloso, pique rainha da angústia, senhor do drama, choroso, egoísta, "mais do mesmo".

Poucos e poucas estão preparados pro voo das moscas que dura dois dias de esforço e menos de um na boa, saboreando o corpo- já morto.

Assim eu tranço essa conversa, mesclando a linguagem da rua com a erudição das peças. Tudo pra dizer que eu chorei, chovi, escorri e fiquei...

Fiquei bem debaixo do meu guarda-lutas. Protegendo cada vitória da derrota que tenta - mas não inunda.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Melaço

Hoje tentei sair de casa
mas não consegui. 
Sim, tranquei a mim - por mim.
Eu mesmo fiquei parado dentro do quarto procurando um canto pra poder rodar
sem fim. 

Música, bebida, aquela fórmula sem tabela que, periódica (na mente), marca os dias para eu (ou a gente) me encontre em casa, assim, azedo - nada fresco, mas querendo refrescar a cabeça quente.

Gosto de guarda-chuva na boca com uma ressaca que não recua feito mar, pois vou te falar: nem mar eu vi. Não choveu, nem faltou gente. Era uma quarta - ou quinta  - e eu precisava trabalhar. 
Infelizmente, não é a sexta vez que eu desisto de arriscar pra ir ver os entes. 
Quando a pele já estava forrada de cicatriz, insisti e decidi não riscar novamente. 
Fiz o que parecia ser certo pra não sangrar ou abrir ferida no meio da feira.
Ia. Não fui. Mas Queria. 
E nem mais o carrinho de peão era capaz de puxar o que desde o começo do ano eu desistira.
Larguei de mão a alegria.   

Então dancei mesmo. Sozinho. Num espaço pequeno, esbarrando no raque, 
batendo os pés nas quinas... Assim eu fui.
Foda-se. Decidido.  
Era pequeno, mas me servia. 
Suei, suei, suei e não chorei. 
Lágrima agridoce? É o caralho! 
"Ah, mas então você é desses de que homem não chora?"
Que papo é esse, princeso, tá na noia? 
Homem não só chora como implora de joelhos.
Ele(s) fica(m) pequeno(s) e acha(m) que não tá(ão) de escolta,
mas quando olha(m) em volta, vê(eem) que quem não chora não 
(re)clama seu lugar na cama. 
Suplica. plural, porque sozinho não aguenta ser. E volta.  

Óbvio que eu chorei, 
mas meu choro é contido,
pequeno, no quartinho, partido em um parto 
assim... Só no soluço, escondido. 
Chovi por uma estação inteira mesmo. 
Esqueci de desembarcar. Foda-se. O problema é comigo. 
Inundei o vagão porque não dei atenção.Vai saber... 
Aquele coração idiota, cheio de lorota, bem palhaço 
Bem Maria Fumaça que eu, usada - e não ousada, esqueci de desembarcar ao amanhecer...
Perdi. 
  
Assumi na frente de todos e todas que fui feita de otária e vaguei, ensimesmada, pela contramão. 
Nos restos da minha desgraça, veja só - solitários -  os estilhaços que mastiguei.
Aqueles farelos de quem achou que laço não se rompia com a imensidão. 
Dessa vez, não lamentei. 
Na beira pia, esta louça virava riacho e escorria, finalmente, para uma conclusão. 
Já lavou? Já levou? Já secou? Sequei. 
Conduzindo para o mar de maré baixa,
a água turva me abandonava. 
Pelo ralo cheio de areia eu entendia o quanto fui raso.
Cheio de besteira, sem graça. Bem escasso. 
Querendo mais do que a vida me dava. Mais do que o deserto, seco, proporcionava.   
Silencioso, bem no final de tarde, sem sobra, pedi, na dúvida, o que não nego nem passo:
Disse: sobe aqui, grita do terraço que eu abro sem fazer doce. 
Me laço.  

Grita que eu abro.