Na sonolência do meu olhar, escondo o desejo imenso de
repousar sobre o seu peito. Saio pra rua, caminho meio torto, esperando que a
brisa da noite sopre meu rosto e tire esse calor todo.
Penso em nós. Soa bonito dentro dos ouvidos, tipo sussurro mesmo. De leve, você não diz
que me quer. Não diz nada, silencioso, distante, só vem e vai como quem não sabe o
que faz – mas sabe com quem faz. É uma mistura de falta com contemplação, aquela
visita que se faz apenas com as lembranças. Não tem batida na porta nem sorriso
nas mãos. Não tem toque de campainha ou abraço de coração. É só a vontade, mais
uma vez, fervendo o sangue.
As luzes despencam do céu pra forrar o asfalto. Pelas
vielas, astros espalhados, escondidos, mas reluzentes. Gosto de me perder no
jardim de cacos, caçambas, ralos. Parece que os pés se sentem em casa e
caminham descalços pelos cômodos. Por isso eu ando. Ando muito, sem nenhum
incômodo.
Gosto de ir pra longe da sua voz... Assim, eu sinto que ecoo. Retumbo
aí dentro de você e me espalho tempestuoso pelo céu das ideias, nublando todas
as brigas que tivemos. Tem dias que o meu tempo tá fechado, mas ainda assim, quando
você ri, eu me abro.
Passo atrás de passo, eu sigo pelo caminho das
quebradas, subo no ônibus e escolho qualquer parada. Veja só, eu me vejo só,
agora aqui, rimando sem querer, pensando sem querer, sentindo muito, sem
querer. A cada sinal que entrega a tiazinha pra sua goma ou o senhor pro seu
culto, eu permaneço lá no fundo, oculto, calado, mas com a cabeça a mil – sem
dar sinal.
Com os ouvidos nos fones, a música estabelece um diálogo tranquilo, versando
comigo, contando “Quando você vem”. Como você chega e me desestrutura. Tem caos
que a gente pede mesmo. Que a gente quer. Tem desordem que alinha nossa
espinha, pressiona a nuca, faz a pressão subir e descer sem parar. Aquela muvuca
que encaixa na nossa. Mas não pode ser sempre assim, senão vira bagunça.
Com o rosto colado na janela do metrô, vejo a noite cobrindo
as casas, apartamentos, avenidas, postes e suas luzes de mercúrio. Sinto o pé
no chão de aço se movendo rápido e fico em órbita. Será que tô mesmo na terra
ainda essas horas? Eu penso demais, briso demais, sopro demais vários
pensamentos no teto da cabeça. Eu me falo – calado – e continuo dizendo frases
e mais frases, num eterno cosmos.
Assim vou me enchendo. Tem horas que cansa. Tem horas que eu
lanço uma sacada muito boa e olho pro horizonte como se ele me admirasse. Mas sempre falta caneta pra registrar. Então, só deixo passar.
Tem horas que a
mente atua como ponta de lança e me fura. Sinto aquela dor se espalhar pela
carne de um jeito que chega a ser suave. E então eu volto. A realidade me chama
cedo e sempre diz: “já acordou?”. Sim, sem hora.
Sou filho da cidade com o concreto. Da mãe pé no chão cujo
solo é de asfalto, sem marido, garantida, noturna, mal-humorada à luz do dia. Eu
sou filho das esquinas, das vendinhas, das quitandas, das feiras, das
pracinhas. Sou filho da quebrada, sempre firme, sempre triste, sempre
recuperada. Minha mãe é estilhaço de amor, é xepa de carinho, ela sobra no
final de cada hoje e renasce no começo de cada amanhã. Está farta, seja de cansaço, de fome, de tristeza, de problemas, de gente, só sei que ela é - e está - farta. Pontual, sem reclamar
pra fora, chorando por dentro na beira da pia, com a barriga molhada no tanque, ela trava a guerra diária contra um exército de chances - escorridas. Quando chove, a cidade-minha-mãe anda cautelosa – e quando ferve a
sola, ela desfila como quem já conhecesse os caminhos do inferno. Minha
mãe é urbana, é várias em uma só, mas uma só pra vários. Porque ama, insiste em
quem ama. Ela é bairro, lar, casa, ela fica, limpa, sempre se desgasta. Minha
mãe só se liberta quando faz de si feriado. Quando perde o próprio CEP e joga
num terreno baldio o gosto amargo da boca maldita que a maltrata. Quando folga e é folgada. Sou filho da
cidade e meu pai, como todo pai, é só saudade - aquele sentimento concreto.
Por isso que hoje eu ando. Porque a cidade me ensinou
todos os caminhos pra esquecer de te esquecer. Ela me ensinou como me perder. Vou,
vou mesmo, para sentir cada parte do meu corpo reagindo ao veneno nos teus
lábios.
É para me curar que eu vou e, agora, nem me pergunto mais “–
Quando você não vem?”. Relato, troco interrogação por desabafo, pedido por despedida e dúvida por afirmação. Sento, invento um mapa qualquer, traço algumas rotas imaginárias e começo a vagar.
Vou pela cidade.
E por mim.
E por mim.