segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Eu, meu deus; Meu deus; Meu eu; Eu



Eu tinha todos os motivos para não levantar da cama. Todos bem ensaiados, organizados dentro da minha cabeça. Não seria mais um dia e sim menos um. De tão ensaiado que estava, acabei perdendo a vontade de me anular. Quando percebi já estava sobre meus próprios pés, olhando pela janela e admirando a chuva. 

Dias atrás eu havia decidido partir. Partir de mim. Mas parte do que sou gritou, berrou, buscou algo no qual pudesse encontrar firmeza. Li em diversos lugares que isso se chama “instinto de sobrevivência”. Minha mãe dizia que era deus ou algo do tipo. Eu acho que foi medo mesmo. 

Medo de não ter mais a chance de arriscar. De nunca mais sentir o gosto bom que surge depois de tempos sentindo apenas o sabor amargo da decepção. É como ressurgir das próprias cinzas, mas não ser mais o mesmo. Aquele corpo não me servia. Eu não cabia dentro de mim, por isso consumi cada parte, cada canto, cada dobra do recipiente em que fui colocado. Refiz o parto e as partes.

Declínio. Subida. Estabilidade. Instabilidade. Declínio. Subida. Instabilidade. Estabilidade. Declínio. Instabilidade. Subida. Estabilidade. Queda. 

Sai para andar. Caminhei tanto que se traçasse uma linha ela acabaria com a ponta do lápis ou a tinta da caneta. A chuva me acompanhava. Tomei um banho como há tempos não tomava. Daqueles que salga a boca com o tempero das lágrimas. E eu chovi. Chovi como não chovia há tempos. Não tinha mais você, nem minha família nem se quer um telefonema me cobrando os capítulos do livro. Apenas eu e a chuva. O declínio da temperatura fez a pele estremecer. Ainda havia vida em mim. Mesmo eu vivendo tão pouco. 

Subida após subida, só me restava o horizonte com cara de quem tinha acordado há pouco. Não cansei. Não tive sede. Não senti dor. Algo me puxava. Fui atendendo ao chamado sem nem imaginar de onde vinha a voz. Vinha de mim. Alcancei o alto de um morro e nele me sentei. Sob a luz avermelhada estavam aquelas pedras gigantes. Eu estava triste. Tão triste que mal soube interpretar tal momento. Foi então que minha mente se desligou. E eu, personagem de tantas histórias, tornei-me o escritor. E ele escreveu: 

“Este espaço, este lugar, este fragmento de página é justamente a morada de tudo o que existe dentro de mim. Algumas coisas cabem perfeitamente nas palavras aqui escritas. Outras se escondem nos truques que uso para redesenhar minha razão, minha realidade e meus dias. Passo da conta. Das linhas. Passo e volto sempre para visitar um velho amigo, esteja ele dentro ou fora de mim. 

Quando pequeno, minha paixão era o desenho. Papel carbono, folhas em branco e o universo todo de animais e coisa para serem rabiscadas. Estava ali parte do ‘eu’ que ainda hoje dá seus pitacos. Mas ele era apenas a prévia do que viria. Continuei amando os desenhos, principalmente quando aprendi a desenhar letras... e palavras... e histórias. 

Depois veio a escola para domar – ou tentar domar – os cavalos da minha imaginação. Deram pontos, vírgulas e uma vasta lista de regras a serem seguidas. E eu as seguia, não por obrigação, mas porque elas adornavam o corpo nu da escrita. Em alguns casos, vesti a minha com roupas formais. Em outros, deixei ela nua, como veio ao mundo. Registrei dias em que ela quis fazer as próprias roupas. Deixei. A gente cria para o mundo, não para nós mesmos, não é? 

E cá estou, declarando-me. Declarando meu amor por todas as orações que deixei aqui. São preces que meu espírito fez no silêncio de seu corpo. No silêncio da minha essência. Estas rezas que me acompanhavam bem antes do parto. O legado, a doutrina, os dogmas de um deus vestido de menino, magro e tímido, que preferia brincar sozinho. Esse deus que já me salvou de muitas enrascadas e que encheu meu copo até que a pressão evaporasse antes mesmo do álcool. Eu, meu deus. Meu deus. Meu eu. Eu.

Talvez hoje eu ainda use a escrita como placebo. Ainda me faz efeito. Pílulas de ilusão. E as justificativas são bem simples: aqui eu sou amado por quem não me ama; mando num mundo em que não existe dono; desafio o deus dos homens; louvo deus nenhum; confundo a mente – tanto a minha quanto a sua; refaço minha história; lavo as mágoas; planto as expectativas; colho das frustrações; e nunca abandono a capacidade que tenho de te prender aqui. Seja lá quem for já está familiarizado com esse texto. Comigo. Como amigo. Ou amiga. É pra se perder e fazer desse texto seu. Eu já fiz o meu. 

Neste momento, observo as pedras gigantes sob a luz vermelha. Eu, o escritor dessa história, rendo-me ao personagem e faço dele a minha jornada."



domingo, 16 de dezembro de 2012

Heresia

Doer
Adoecer
A dor e o ser
A dor em ser
Adolescer
Amolecer
Amor e o ser
Amanhã ser
Amanhecer
A mãe é ser
Amar é ser

Dormir
Dor em mim
Dura em mim
Dura o fim
Pula o sim
Nega a si
Cega a si
Sela aqui
Se ela quis
Fui eu que fiz

Desapego
Desde já, pego
Despeja o ego
Desejo
Dez beijos
Despejo
Detenho
Retenho
Já venho

Salgada
Desalmada
Calcada
Carcaça
Quem caça
A graça
Na fala
Calada
Cansada
Não casa, cansa

Nome
No homem
Nome de quem?
Homem de quem?
No homem de quem?
No abdômen
Do hábil homem
Dor que vai além
Há dor pra quê?
Adora a quem?
Agora, a quem?
Ninguém.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Boca, dedos, língua e olhos



Ruptura

Reúna todos os pedaços da ruína que você se tornou e rua. Rua para as pernas atrofiadas de quem não sai de casa, desconfiada, e fica enfiada nas almofadas com cheiro de cigarro. Acha a agulha de costura no meio da pele, faz um ponto pra fechar a ferida. Marca um ponto por ter fechado a ferida. E sal, muito sal pra ajudar na cicatrização. Religa os pontos com linha preta. Da ruína à malha de si mesma. Retalho por retalho, ela malha a si mesma. 

Enjoei da escrita propositalmente côncava. Cansei das palavras de confissão que prestam serviço ao falso bom-senso nosso (meu) de cada dia. Acostumei com o gosto amargo do cigarro e agora que o maço acabou só me resta amargurar outra ponta. Não a da língua. Nem do fumo. Dos dedos mesmo. 

Asfalto, calor, ar seco e a boca luta pra se manter úmida. Também luta por outras causas. Luta pra poder falar, luta pra se manter calada sempre que puder, luta para ser beijada e luta para dizer adeus sem ter que trair o coração. Essa boca acorda todos os dias comigo. Boceja, banha-se; perfuma-se; alimenta-me e vai. Vai vestida de lábios para mais um dia de asfalto seco, calor no ar e paladar seco. 

Olhar distraído de mentira. Finge que está preso nas páginas do livro recém-adotado, mas não tira os olhos dos outros olhos. Olha pra muita gente, pensa sobre toda essa gente e tem vontade de ficar, casar, brigar por causa do banheiro todo molhado, reatar... E se for pra ser, tem que ser olho no olho. Olho, globo do corpo, buraco na parede da alma, diafragma sem foco manual. Seu foco é etéreo. Quando se interessa, ajusta as lentes pra não atraiçoar o coração com ilusão de ótica. Ou ilude, mas não se responsabiliza pela interpretação. Nem depressão. O que os olhos veem é o que o coração luta pra não sentir. Porém sente. 

Ligamento

Boca, dedos, língua e olhos. Tudo junto na tentativa de ser algo. De ter peso, massa, importância, existência. De ter nome, de ser batizado e achar alguém pra chamar de hora em hora, sem pausa, sem desculpa, sem ter que marcar encontro. Alguém pra beijar a boca, entrelaçar os dedos, morder a língua e olhar nos olhos. Tudo simples. Tá tudo no corpo, já veio assim, a gente é que se censura. Passa tempo demais tentando achar desculpa pras vontades e repulsas.
O corpo morre. Vale lembrar.