domingo, 11 de dezembro de 2011

O dom de esquecer



Já havia se passado três meses. Parece que esse período de tempo não alterou nada. E eu ainda sinto o peso das malas em minhas mãos. Também ouço meus próprios passos pelo corredor e cerro os lábios ao me lembrar das últimas palavras ditas. Esquecer é um dom. Esquecer é uma dádiva.

Eu estava escrevendo mal. Não encontrava a mim mesmo. Foi o que ela me disse. Vestida com sua blusa florida e calças masculinas, olhou-me como se não suportasse aquela imagem distorcida. Pediu para que eu a desse um motivo que evitasse minha saída da escola. Eu só consegui dizer que "no lugar das páginas dos livros poderiam ter colocado folhas em branco". Estava fora do mundo, mais uma vez.

Resolvi ir até a colina. A cidade não me queria mais. E eu nunca a desejei. Caminhei por muitas horas, até que resolvi descansar encostado em um velho carvalho. A voz da floresta me conduzia. Eles jamais saberiam a respeito dos meus motivos. Nem família, nem amigos, nem você. Primeiro eu me apaixonei pelo céu.

Nublado e denso, seu rosto carrancudo não assustou meus olhos. Zéfiro soprava como nunca e o frio abraçava minha pele. As nuvens eram mas mesmas que cobriam nossos corpos. Deitados na grama, fizemos juras de amor com a ponta dos dedos. Escrevemos nas nuvens de chuva cada gota da esperança que nos unia e, futuramente, viria a nos destruir.

Eu sempre me senti como um balão solto no ar. Sem aquela mão para me manter por perto, eu partia diversas vezes e nunca voltava para dizer o que vi e senti. Naquele instante o céu me recebia como reflexo de sua decadência. Estirado no chão, eu o encarava sem vontade de levantar e caminhar novamente. E, lentamente, suas mãos envolveram meu rosto.

Os cinco dias da semana e os milhares de meses intermináveis. Os anos de poucas lembranças e as vontades urgentes, emergentes e inconsequentes. Depois de ter visto o céu, teto nenhum conseguiu me segurar. Ao buscar sempre um lugar onde estivesse próximo do alto, acabei me apaixonando pelas estradas.

Os joelhos sempre me foram fieis. Os pés também, apesar de reclamarem muito. Sendo assim, não tinha mais desculpas para ficar. As mãos que agora envolviam meu rosto eram as mesmas que me levavam comida à boca. Sozinho, caminhei como se essa fosse a forma mais confortável de se suicidar.

Enquanto olhava para horizonte, percebi que, aos poucos, deixava de me importar com as direção. Eu seguia uma vontade de chorar misturada com a batida acelerada de um coração inquieto. Gastava a água do corpo como caminhão que queima até a última gota de combustível. Eu já não tinha mais laços com a história que um dia me descreveu.

Na estrada, pude chorar e gritar sem ser acudido. Pude enlouquecer a ponto de socar um tronco e rasgar a carne dos dedos. Pude beber e fumar. Pude passar fome e dar valor ao que tinha para comer. Eu pude tantas coisas que acabei me cansando de tal liberdade. Decidi impor alguns limites e tentar desenhar uma borda que agregasse toda aquela bela pintura feita com a respingos de alma. Parei na pequena cidade e lá me apaixonei pelas velas.

Quando ela me perguntou se eu estava com sono não precisou muito para que respondesse. Os olhos vermelhos imploravam por um segundo de paz. Aceitei o convite. Enquanto dormia, sonhei com a réplica perfeita daquele que seria o abraço mais gostoso de todos. Seus olhos espertos fitavam meu corpo cansado. Sem saber como começar a conversa inevitável, derrubou algumas coisas na mesa até que parou diante de mim e roubou meu ar. Eu não conseguia ver todo o seu rosto, parte dele estava escondido pelas sombras, mas a outra metade cintilava com a luz das velas. Aquele tom amarelado cobria de ouro o rosto da cor da madeira. Minhas mãos decidiram confortar aquele face esculpida com perfeição. Antes de partir, deixei uma carta com algumas palavras. Não agradeci, pois nunca esperamos nada um do outro.

Eu deveria tê-la amado intensamente. Deveria ter feito da última paixão a síntese de todo o sentimento que tanto cultivei. Mas não foi assim. Pois a natureza me ensinou a respeitar tudo o que não for compreensível ao meu ver. E o que corre pelas minhas veias é justamente essa ausência de nomes e definições. Meu coração não sabe escrever nem ler as linhas do mundo e suas regras complexas. Ele sente e sofre demais por isso, mas é uma dor tão necessária que sem ela eu jamais teria motivos para lutar contra algo. E como descrever meu coração? Não, não consigo. Claro que consigo, só evito fazê-lo. Mas faço, dessa vez.

Fragmento da essência de todas as energias, ele foi batizado pela Fênix e sua gana por destruição. A partir dos próprios estilhaços, recolhe todas as partes e constrói uma pseudo versão de si mesmo. Jogado num universo, vaga e explode, consome-se até que caia esgotado sobre sua própria solidão. Ainda assim não o conheço tão bem. Mas ele sabe tudo a meu respeito.

Debaixo daquela árvore, percebi que alguém me observava. Jamais imaginei que naquele instante me apaixonaria por você. Seu sorriso me trouxe o retrato mais belo do céu e nenhuma palavra precisou ser dita. Como se meu coração tivesse percorrido milhares de estradas até encontrar o seu, senti um peso no peito que me fez querer congelar o tempo. E os meus olhos brilhavam como luzes de velas assim que encontraram no seu a chama da ave de fogo, que renascia mais uma vez das cinzas de um amor distante.

Foi naquele dia, há três meses, que ergui as malas pesadas e caminhei para o corredor da velha casa de campo. Cerrei os lábios na tentativa de não dizer "entre", mas falhei. E quando me dei conta já havia esquecido de todo o mundo. Esquecer é um dom. Esquecer é uma dádiva.

2 comentários:

ela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ela disse...

A colina para ensinar a olhar para baixo
O céu para mostra como os mais pacíficos também sofrem tormenta
O vento para desatar os laços, soltar os balões
As estradas, para nos tirar do eixo, desviar da rota
As velas: iluminam a metade de tudo o que queremos ver
E o esquecimento... pra tomar conta da outra metade

É dom, é dádiva e um adianto na vida!

Parabéns pelo texto.