Quando você entrou em meu quarto, tive a certeza de que seria o fim. Eu já esperava por isso. Pensar que viajei tanto, por tantos mundos, paralelos e, ao mesmo tempo, desviantes, mas sempre vazios. Nenhum deles, entretanto, apresentou-me uma presença tão sutil como a sua. Nem no absoluto vácuo dos limites de universo senti tanta paz. Sua chegada era minha partida. Finalmente eu sentiria saudades de mim. Permitir-me-ia fazer falta a mim. Não fez. Hesitou.
Este mundo estranho tinha sua graça. A falta de sentido nas
expressões era o que mais me interessava. Pareciam, propositalmente, destoarem
de qualquer linha a tecer a malha das realidades. Riam de si mesmos e dos outros,
num eterno ciclo de bocarras com caninos serrados. Não eram mais tão bestas,
porém mantinham os caninos. Tudo era risório, descontinuado, saturado demais e,
ainda assim, interessante. Da outra ponta da estrela já morta brilhava o planeta
extinto que nunca parou de rir de si. Orbitava no passado de pura poeira
sua graça, como anéis solitários na lembrança a insistir no brilho. Eterno
brilho.
Assistimos juntos ao último capítulo que eu veria do meu
programa de TV favorito. Era o seu também. Por isso, creio eu, não me tirou a
vida de imediato. Achou graça no meu flutuar insosso e espiralado do corpo.
Virei-me, olhei-te, rimos e vimos àquele paradoxo contínuo que nos fazia morrer
de gargalhar em vez de silenciar antecipando o velório esperado. Eu não morri
naquele dia. Você não me matou. Nascemos um para o outro e o parto foi normal.
Natural feito o estranho gosto pelo programa insosso.
Você queria o fim de todos —menos de mim. Isso era o que eu
mais amava. Sem ninguém ao redor, poderíamos ser as últimas faíscas na penumbra
sideral. Não haveria ida nem chegada. Juntos, você com suas longas pernas dançando
feito lâminas e eu com braços dos outros atravessando as fissuras que crio no
tempo e no espaço, ligaríamos os distantes; chamaríamos os esquecidos; permitiríamos
que os mundos se conhecessem ao tornar a teoria do espelho reflexo não mais
invertido do saber universal —da linguagem tão significante que passa a
dispensar o significado. Nós dois, entrelaçados, predicando o par de assujeitados.
Seu plano era o meu. Mesmo com minha coleção de dimensões o
seu plano era o meu. Único, segui-o cegamente. Perguntou-me, nas noites que se
seguiram: “Você pode engolir quantos mundos?”. Respondi indagando quantos ele
conhecia. “Além do nosso, tantos vários, muitos. Disse a ele que poderia
abocanhar todos, pois meu vazio desconhecia fim. Desta vez ele não riu. Não rimos.
Segui-o silenciosamente.
Antes de ti, existi sem relógio. Atravessei espaços
imaginários que brotavam de inconsciência alguma. Nem teriam como. Ausência de
eu, de ele, de aquilo. Os verbos eram poucos, pois as ações praticamente não
precisavam existir. O passar simplesmente se anemiava de qualquer pulsação. Sem
relógio a coleirar minha presença. Sem parto normal. O corte era cesariano.
Anunciava minha chegada como a de um rei sem súditos. Eu apenas passava sem
significado. Insignificante.
Por não ter berçado dentro da boca da mãe, também não fui
engolido. Aprendi a engolir os outros. Não com minha boca, mas com a daquele homem
diferente. Ele não piscava. Os lábios eram grossos. Em vez de pele, sombra.
Umbro demais. O rosto do universo, acredito eu. Encontrei uma forma de fazer
com que ele tomasse pela boca o que eu não conseguia deglutir com os olhos. A
troca era justa, penso hoje: ele devorava meus incômodos, eu o enganava ao
encher sua goela com a indiferença cáustica de minha negligente razão. O homem
escuro desconhecia as horas, os ponteiros e os três pilares do tempo: passado,
presente e futuro. Era ele, o tal homem, um novo antielemento: o esquecimento
—aquilo que pode ser passado, ocorrer no presente e ser a única certeza do
futuro, a de que sempre, sempre, iremos esquecer de algo amanhã.
Dói vê-lo agora, em meus braços, tão ferido. São as marcas
que provam o quanto de seu sangue você dedicou ao seu plano. Lutou bravamente,
sem deixar de dançar. O olhar fixo foi sua marca de guerra, e confesso que
admirei cada golpe que levou. Como não degustar a rigidez da sua carne ao
repelir estocadas? Eu não abro a boca da cara por vergonha nela. Eu abro a do
estômago, mas quem devora é o homem sombreado. Porém, no seu caso, fui eu que
desejei, flexionei o maxilar e aconcheguei teu resto. Caído, o que me restou
dizer foi que agora te levaria para um outro lugar onde não precisaríamos mais
nos separar. Era, agora, a vez do meu plano.
Era agora. Foi neste momento. Aconteceu neste instante. Li
certa vez, nas palavras de quem adormeceu sobre as colchas da obliteração, que
a história não é o passado. Pelo contrário, por ter o dom de trazer ao presente
o que aconteceu num passado qualquer, faz-se tão contemporânea quanto o irritante
presente do indicativo. É história porque é agora e o “para ontem” se esvaziou
de sentido. Eu conto sobre nós dois nesta dimensão estranha porque não há começo
ou fim quando, ao entrar no meu quarto, a pessoa me fez esquecer, finalmente,
do fim.
Eu só quis.