quarta-feira, 3 de junho de 2020

Coral

Costumo desenhar situações. Literalmente, espalho os lápis coloridos sobre a superfície fina da minha intuição e rabisco todas as possibilidades que podem traçar os dias seguintes. Às vezes isso me toma tempo. Outras, tira-me o espaço para enxergar além do que poderíamos chamar de “expectativas”. Com tempo ou sem espaço, o que sei é que em cada linha desenhada, em cada rastro de cor que se destaca, há um desejo meu, forte, daqueles que marca no peito tudo o que coração tenta sombrear.

Hoje, a situação me levou até alguém distante. Envolto numa densa nuvem escura, ele estava lá, parado, no pico das ideias, observando a cidade mudar da ansiedade do dia para a melancolia da noite. Sua cor era escura, azul profundo que mais parecia me puxar para dentro dele. Índigo. Hipnotizante.

Aquela atmosfera de mistério combinava perfeitamente com o desenho que fiz antes de sair de casa – e que tinha no tom rosa do lápis mais nanico – por ser o mais usado – o desgaste da minha imaginação, aquela que não se cansa de rabiscar o que projeta em segredo. Segredo, não. Mistério.

Pensei em mil frases a serem ditas, mas nos últimos dias acabei calado. Tinha minhas questões para pensar e junto com essa responsabilidade vinha o desânimo em expelir qualquer que fosse a frase que tentasse expressar o que sentia. Ou melhor, o que eu não conseguia sentir. Nestas últimas semanas eu pouco rabisquei. Passei mais tempo tentando apagar. Agora me vejo aqui, no entardecer, com estas cores que eu já havia imaginado antes mesmo de ver. Tudo que ontem só ficava dentro de minha cabeça explodiu naquele infinito cravejado de estrelas e, pela primeira vez, senti como se conseguisse mostrar para o mundo todo, para toda aquela cidade lá embaixo, para aquele rapaz ali em cima, as cores das minhas vontades. Eu entardeci. Nasci no fim de um dia diferente do meu aniversário e ainda assim me fiz aniversariante só porque sabia que o presente estava por vir.

Verifiquei se não havia perdido o que eu trazia nos bolsos. Tudo certo. Queria dar algo a ele. Sentia que precisava dar algo a ele. Já havíamos aprendido a nos comunicar pela linguagem dos silêncios, então, era mais do que justo que eu dissesse, sem emitir uma palavra, o que ele necessitava tanto ouvir. Nem a penumbra daquele pico conseguiu me esconder. Aquecido no moletom coral, eu cheguei como quem não quer nada, querendo tudo. Pensei comigo mesmo: “que cor teria essa situação?”. Não tive tempo de me dar a resposta, pois já estava sentando ao lado dele.

- Trouxe algo pra você relaxar

O menino mais leve que o vento

Quando foi a última vez que o ar acariciou o rosto ao invés de bater nele? Quando foi a primeira vez que se sentiu como o vento – livre o bastante para não ir, apenas ocupar o espaço vazio, suavemente, como brisa leve? É tanto pesar dentro da mente onde os pensamentos deveriam apenas flutuar feito nuvens e, leve como elas, apenas deixar chover ideias, que dá vontade de soprar a cabeça como se assopra um machucado. Em que momento o tempo fechou dentro de si e aquilo que chamava de alívio se tornou sufoco? São muitas perguntas para respostas ainda indefinidas, mas querer saber faz sair pelo mundo – de dentro e de fora – em busca de algo que encha novamente os pulmões. Algo que dê fôlego.

O ar, o vento e a necessidade de sentir o sopro da liberdade arrepiar os pelos do braço. Um misto de alívio com risco. Algo parecido com o medo de ser feliz – ou o medo de não aguentar a felicidade. Há quem fale sobre leveza, porém, não é toda hora que os ponteiros da vida permitem relaxar. Cada segundo passado parece uma vida perdida. O peso dos dias corridos, talvez, seja o que faz do ar, do vento, algo angustiante, já que não se pode tocá-los nem sentir, por um instante, que a liberdade está em suas mãos. Livre o bastante para se manter preso nas próprias escolhas – estas que, por sua vez, nunca são livres o bastante.

Do berço cair, pelo chão se arrastar, nos móveis buscar apoio e nos olhares equilíbrio. Erguer-se, desde pequeno, é um ato de coragem. É o primeiro contato com o peso, tamanho, com a densidade de algo que se carregará para o resto da vida: si mesmo. Se mesmo nos primeiros anos já se pode superar a gravidade da situação que é nascer neste mundo, por que se perde na poeira das expectativas não vividas justamente aquilo que se há para viver? Se pequeno se levantou, por que grande não caminha? Por que gigante não alcança? Por que alto não enxerga além do baixo muro da realidade aparentemente intransponível? Mais perguntas, menos respostas. A mesma necessidade de fôlego.

Respirar o ar. O próprio ar. Quando foi a última vez que o fôlego veio do âmago e não do boca-a-boca alheio? Quando...?

Há dias em que as lembranças guardam as verdadeiras respostas para as tantas perguntas que o vento traz.  Nestes dias, há de se encontrar entre as fotos bagunçadas nas gavetas da memória aquilo que, em situações sufocantes, fará toda a diferença: o respiro.

Inspirar e espirar. O subir e descer do peito será a prova que ainda há vida mesmo no corpo cansado; na mente exausta. Trata-se de jamais prender a respiração novamente.

Trata-se de libertá-la. Finalmente.