quinta-feira, 28 de março de 2019

Orbito-me

Hoje preciso passar as mãos pela minha cabeça raspada e me sentir. Usar as pontas dos dedos para reforçar os traços sobre meu rosto. Quero despertar e me olhar profundamente nos olhos... Buscar nestas duas pedras escuras o infinito breu que me preencheu todos estes anos e do qual nunca tive medo. Sentir-me. Há tempos não me sinto e o corpo cobra. Nos dias mais escuros, eu permaneço noite sem fim em mim. 

Quero olhar para as minhas mãos e reconhecer minhas mães, bisavós, avós. O torto dos dedos indicando a direção que o tempo tem tomado e para onde tem me levado. Os lábios, o nariz, a altura, o peso, todos eles e elas me compondo como música de letra decorada de coração. Hoje eu preciso de “eu”, mais do que sempre, pra lembrar onde escondo as melhores partes de mim. Preciso daquele encontro marcado pelos passos silenciosos de quem nunca teve dificuldade em andar nas pontas dos pés, como se um salto invisível lhe projetasse para o mundo afora - para outra dimensão. 

Nas baixas criadas pela depressão que muitas vezes lembra à leveza que nem ela está livre da gravidade de sua existência, levantar é uma luta pela sobrevivência. Deixar que a água caia sobre cada parte do estilhaçado espírito vestido de gente deixa de ser algo cotidiano para se tornar uma exceção à regra básica de segurança: não sair do vácuo que “protege” minha vida de si mesma. A caminhada de menos de 6 segundos até o banheiro transforma-se numa estrada cheia de armadilhas prontas para ceifar o pouco de vontade que ainda resta no fundo do poço. Puxo a corda, sobe o balde, vazio, e eu não posso me saciar. Então, é neste momento que eu me lavo pra longe da sujeira que levei um tempo para enxergar. Luta, água... renovação. No escuro, depois de ter me enxugado, volto a sentir o aperto no peito, mas ele já não faz tanta pressão.

Não abro a janela. Não deixo a luz entrar. Não permito que o som quebre o silêncio. Assim fico, em órbita, pairando pela massa negra do espaço entre um querer e outro. Permaneço coberto com a colcha de estrelas que o universo deixou gravadas na memória. Brilham rostos, sorrisos, vozes distantes, cheiros, gostos, toques... As memórias me cobrem e o aconchego da solitude invoca um bocejo de exaustão do espírito. Um sono diferente desperta meus sentidos para outra esfera da não-consciência. É nesta hora que acordo pra vida – aquela que pesa, dói, angustia e só alivia quando eu, encolhido feito um planeta ensimesmado no próprio eixo, sussurro de meu universo particular...

Hoje eu preciso de mim aqui. Só de mim... como poeira no cosmos, dançando sem música. 

segunda-feira, 11 de março de 2019

Procure por mim dentro de nós

Senti você chegando quando as janelas arrebentaram. Invadiu a casa, passou pelos corredores e trombou em minha porta. Batia, batia, sacudia a maçaneta e eu não levantei para de deixar entrar. Tinha medo dos seus trovões, mas desejava, secretamente, enquanto cobria a cabeça com os lençóis, que você conseguisse me alcançar. Era bom quando eu me deitava sobre suas nuvens carregadas. Pequenos raios ouriçavam os pelos do meu corpo enquanto você suspirava em minha nuca seu desejo por mim. Agora, não consigo mais permitir você chover no teto sobre minha cama. Não consigo porque sei que isso te machuca. Toda vez que te deixo ser o vendaval sob meu peito, sinto que nos perdemos um pouco mais. Eu te deixo. Você vai embora resmungando baixinho, pingando aos poucos, sabendo que eu preciso amanhecer mais um dia e me secar ao sol. Eu preciso, sim, do calafrio que me causa seu olhar, não há como negar... Eu preciso dançar contigo na ponta dos pés e te conduzir ao ser conduzido, mas eu também preciso que você precise de mim. E você não precisa. O que você quer, não sou eu, mas o que eu posso te dar - um lugar pra tempestear.  

Eu não posso me dar a você. O que eu te dou é o nós, entende? 

Quando você me disse “Procure por mim na tempestade”, pensei que estava brincando. A verdade é que você não estava brincado. Você realmente estava na tempestade. Eu te vi, nu, completamente suspenso no meio do turbilhão, banhado da prata cintilante que escoria dos raios, com os braços acompanhando o descompasso das ventanias... Você, tão lindo, tão pesado sem nem sequer encostar os pés no chão. Eu sabia que jamais conseguiria te alcançar, de fato. Não se pega a tormenta com as mãos muito menos com o coração. Eu te vi e quando você me viu, sumiu. Envolveu-se numa neblina densa. 

Não entendi, afinal, se mandou que eu te procurasse, por que se escondeu quando te achei? 

Enquanto trancava a porta do quarto, já aguardando sua chegada, eu entendi tudo. Eu senti tudo. Eu entendi nós. Você não me pediu para te achar, mas sim para que procurar. Bastava eu seguir a tempestade sem medo dela, pois era você que a condizia. Você queria me ver caminhando, seguindo adiante mesmo quando suas fúrias traziam ruína pras alturas. Você queria me ver mudando, transformando-me a cada passo. Queria me ver mundano, por aí, adiante, andarilho cujos olhos não mais se espantam com o constante desconhecido. Você queria, mas eu ainda não. Não sabia o quanto viria a precisar de forças pra andar sozinho. Por isso eu voltei pra casa, sem você, com nós guardados em algum cômodo. 

Quando eu parei de caminhar e me escondi nesta casa, achando que você simplesmente não me queria mais, veio a chuva forte cair sobre o telhado, avisando-me sobre sua chegada. Nunca pedi para você me procurar neste lugar. Não disse que você deveria vir atrás de mim. Eu quis parar e ficar, eu quis me tornar poça de água. Quis porque precisava me recolher e entender o que tinha para ser sentido. Sentir que eu havia entendido o porquê do seu olhar ter escapado do meu. Tenho medo de te deixar entrar e nunca mais querer que saia. No fundo, nunca deixei de ansiar pela sua brisa firme e cortante que passava pelo meus rosto como um respirar ofegante. Eu sempre te procurei na tempestade, só não imaginei que seria um problema te encontrar. Não entendi, à época, que era sobre a busca e não sobre o encontro. 

Estou aqui, trancado, porque eu não quero viver perseguindo seus rastros, caçando seus redemoinhos em cada esquina. Desta casa para fora, você pode existir e ser como é. Pode continuar sendo a tempestade que lava o chão, que sopra a poeira do ontem e fecha o topo do mundo toda vez que precisa desabafar suas mágoas e raiva. Aqui dentro, não há espaço para tanta força. Sinto saudades de quando você só chovia e me enchia. Hoje, sei que você irá me sacudir e eu não mais poderei evitar o que já evito todos estes anos: segurar meu corpo para que ele não se perca nos ares da liberdade que aprisionou meu espírito num eterno labirinto onde não consigo me apegar a nada e sigo solto, como se eu não tivesse acontecido. Nem você. 

Tenho medo de como você me força a ter força e pisar firme. Como me faz proteger os olhos da forte geada e enxergar para além do branco infinito e frio. O medo... o medo que eu tenho dos seus trovões que ensinam aos meus ouvidos como ouvir o retumbar do coração... Eu tenho medo da tempestade que você causa em minha vida porque ela me obriga a querer sobreviver e sentir, todos os dias... que eu preciso te procurar dentro de mim, onde nem mesmo a porta trancada pode nos separar. 

Você é a tempestade de habita em mim e toda vez que eu te busco, é a mim que eu encontro. Aquele que me ensinou a dançar com os ventos nervosos , descalço, enquanto choviam os raios e caíam sobre meu rosto os pingos grossos, quentes e salgados. 

Agora é você que procure por mim dentro de casa. 

Dentro de nós.