terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Agulha

Se todos os laços dentro de nós fossem desatados 
o coração - até então atado seria malha esparramada entre peito, mãos e joelhos. 

Trapo, fiapo, fio. 

Portanto, costuro sempre um novo nome com a agulha na ponta das muitas línguas que costumo coser a esmo.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Visto

Minha pele só servia para cobrir ossos. Meus cabelos, para proteger a cabeça do sol. O espelho, por sua vez, desenhava-me ao contrário, refletia-me ao inverso. Ao contrário eu me sentia contrariado. Eles haviam me vestido de um “eu” desconhecido. A vida havia. E eu não cabia. Prazer em não conhecê-lo.

Minhas pernas frouxas caem durante o caminhar e cinto nenhum – preso ao que sinto - consegue segurar a frustração de cada passo arrastado. Pesa o caminhar, pesa o contínuo fato de continuar vestido de outro alguém. Dizem-me: teu corpo, teu templo. Mas lugar algum é templo para quem nasceu em berço nômade. Nasci no vento. Sou feito de ar e não posso ser pó nem poeira. Só posso soprar. Não tenho para onde voltar. E sou. Insisto em ser o eterno órfão de vizinho. Nem a mim eu tenho. Meu templo é a Torre de Babel. Falo com a língua do corpo e ainda assim desconheço os gestos, as rugas, os excessos do que banho, enxugo, visto e deito.


Despindo-me, descubro que subcutaneamente que existo. Só não fui eu a me vestir. 

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Mais vale

Sabia que naquela noite nenhuma migalha de romantismo forraria seu estômago. Por este motivo foi. O convite para o jantar parecia interessante. Mas a fome, na verdade, era de outra coisa. Torcia para que os temperos em ebulição disfarçassem a essência de feromônios que se misturava ao perfume recém-passado. Como convidado, aguardou sentado, reparando nos desenhos da toalha de mesa. Concentrando-se no mosaico sem sentido, seu único ponto de fuga - já que levantar dali estava fora de cogitação.

Eram duas vozes: a de sua boca satisfeita com o pouco e a de seu querer, sempre faminto.

- Venha aqui, experimente um pouco e diga se está bom.
- Está. (De lamber os lábios. Você até merecia um beijo por isso. Um beijo com seu tempero)
- Só isso? Não vai dizer mais nada a respeito?
- Não. (Já sentiu o gosto da fome? O gosto da vontade?)

A simples aproximação de corpos o fazia pulsar. Pele fervia, respiração se cobria de vapor e a língua - que passeava pelos lábios na busca dos respingos de molho - exibia-se timidamente, provocando sem revelar o desejo em sua ponta.

- O quê? Diz algo, faz um esforço!
- Eu... Achei bom, de verdade. Está ótimo. (Essa sua respiração me cala, por isso falo pouco)
- Melhorou. Sabia que tinha alguma frase aí na ponta da sua língua.
- É... sempre tem algo. Posso tomar alguma uma bebida? (Antes que eu engula teu fôlego de uma só vez)
- Fique à vontade. Faz um drink para você e eu tomo um pouco.

E mais uma vez o álcool fez seu papel. Banho frio na boca flamejante. Rapidamente, escondeu-se entre as veias e fez com que o corpo suspirasse de alívio. Agora ele abandonava os detalhes e se voltava para aquela silhueta de estatura mediana, nuca tensa e mãos ágeis. Furtivamente, seus olhos percorriam as costas, a parte traseira das orelhas e fotografavam as pequenas gotículas de suor. Respiração: o golpe mais baixo.

- Vamos comer. Quer que eu te sirva?
- Não precisa. Belo prato... (Quero que você me sirva. Que você tema minha reprovação)
- Obrigado. Coma e me diga o que achou.
- Tem gosto forte. (Gosto de quem queria impressionar. Gosto de quem queria ser notado)
- Errei no sal?
- Não, acertou no sabor. Por isso está forte. Eu gosto assim. (Ninguém cozinha assim para um qualquer. Eu sei que você se esforçou)
- Coma mais então.

A falta de sincronia - e coragem - que atrapalhava o diálogo entre sua mente e seu coração ecoava como trovão a cada pergunta respondida. Queria falar o que lhe vinha à cabeça. Sem perceber que o que faltava mesmo eram os versos do coração. Romantismo para uma noite daquelas seria a pior adição.

Satisfeito, recorreu ao silêncio com a desculpa de que uma forte preguiça havia tomado seu corpo. Álibi mais barato do que esse só aquele que pede mais uma dose de bebida pra ajudar na digestão. Alguns cigarros, alguns bocejos e as luzes se apagam.

O inferno é um quarto em que o primeiro corpo deseja o segundo. E o segundo só deseja dormir.

No silêncio absoluto é possível se escutar o ruído de um calar proposital. Ele controlava as batidas do coração, mas estas insistiam em causar tremores que se espalhavam pelas pernas e paravam no ventre. Tudo pedia sexo. As paredes gritavam furiosas, queriam ser marcadas pelas costas besuntadas de prazer; a cama se sentia inútil; os lençóis - retos como o chão - ansiavam pelo entrelaço de quadris. Nada. Só o ruído do batimento cardíaco.

- Não consegue dormir?
- Não. (Consigo, mas não quero. Não acho justo)
- O que foi?
- Empreste-me sua mão. (Antes que eu peça seu ouvido)
- Para quê?
- Apenas confie e empreste. (Eu não anunciaria assim, com tanta delicadeza, uma ação selvagem)
- Nossa! Você vai ter um ataque cardíaco.
- Eu preciso falar... Eu não consigo... Mas preciso. (Melhor falar do que tentar te agarrar)
- Diga de uma vez.
- Eu quero um beijo. (E depois seu corpo inteiro. Quero sua saliva, seu tempero, seu gosto)
- Não. Boa noite.
- Boa noite. (Dizem que o sono tira a fome. Boa sorte, espero que nem você e nem seu estômago ronquem)

Há alguns anos, sentira uma ira incontrolável. Uma tristeza profunda e insistente. Mas desta vez o que sentiu foi frio. Um gelar instantâneo. O romantismo tinha ficado na cozinha. Ali, no santuário de Morfeu, o sono disputava espaço com o desejo. Porém, um desejo solitário, que não se fez dois. Dormiu. Ele não.

Pela primeira vez naquela noite, seu coração falou livremente, enquanto o outro passou a interiorizar seu conflito mudo.

- Mais vale um coração na mão do que dois pares de lábios beijando.
- O que você disse? Eu estava dormindo já! (Mentira, mas prefiro evitar qualquer chance desse beijo acontecer. Não, não posso, não tem nada a ver)
- Disse "durma bem".