domingo, 3 de novembro de 2013

Não há cura para os verdadeiros corações partidos



Débora estava com Rômulo há três semanas. E há três semanas seus lábios eram pintados cuidadosamente de laranja - a cor mais sem graça de todas. Ela preferia assim. Ser simples, modesta e naturalmente maquiada. Ser paradoxo e Débora ao mesmo tempo. Rômulo, por sua vez, só reparou na cor interna da boca de Débora, vermelha, exageradamente adocicada e escura, como quarto de motel. Até então, tudo caminhava bem.

Ambos se distraiam e distraiam a si mesmos. Não havia compromisso timbrado pela moral, logo, traição fugia da tradição. Ela, Débora, precisava de alguém para beijar e, com as cortinas dos olhos fechadas, ser capaz de imaginar diante de si a novela da própria vida. Algo como uma forma eufemística de cumprir as exigências de um desconhecido - não de Rômulo, mas do seu inconsciente: aquele que operava sem as mãos e, até então, nunca errara na operação. 

No entanto, Rômulo - que na condição de homem não se rendia ao sexismo do mundo e quebrava o esterótipo animalesco - sentia a presença da garota alaranjada ainda que não lhe causasse calafrios. Débora, para Rômulo, era um fim de tarde que poderia continuar aceso e elusivo, dispensando o sol e atrasando a lua. Estava tudo bem, eram apenas três parcelas de semana oriundas de uma vida pré-datada. 

Eles se conheceram porque assim teve de ser. Festas em que a bebida cara não permite maiores desafios e só resta aos corpos dançantes arriscar na dose mais pontual, curta e grossa. Sem gelo, óbvio. Não houve cantada, abordagem na fila do banheiro ou troca de olhares no salão. Houve apenas desejo, tão puro e desprovido de cor quanto o gim no fundo do copo. A timidez, sábia aliada da cautela, fingiu ser charme e tanto Débora quanto Rômulo gozaram de uma cumplicidade silenciosa vulgo embriaguez. A regra era simples e clara como água: queima quando desce pela garganta, mas resplandece com maciez ao evaporar pelos olhos. Não tinha como não ser Débora e Rômulo. Impossível. 

Os dias se passaram como ressaca. Ela sentia enjoo e uma forte angústia ao lembrar do rapaz. E ele, bem, tentava tirar o gosto dela da boca - para não confundi-la com um guarda-chuva cor de tangerina. Tomaram muita água e inundaram o coração. Rômulo tinha algo "a mais" com gostos e beijos. Débora parecia não ter temperado bem seus lábios untados de desânimo. 

A terapeuta de Rômulo disse que ele deveria encontrar a tal de Débora mais vezes. E ele concordava. Quem discorda do terapeuta? Só aqueles que não pretendem gastar o dinheiro da sessão com outros placebos. Outros tipos de placebo, melhor dizendo. Lá estava ele, ouvindo todas as suas reclamações se voltarem contra seu próprio criador, travestidas de otimismo e franqueza. Otimismo é fraqueza, para ser mais direto. Nada pior, concordam? 

Já Débora tinha Tadeu, aquele grande amigo de filme que é capaz de trocar sua roupa sem se quer tocar no seu corpo. Ou que sempre sabe o tempo exato que irão durar seus relacionamentos. Tadeu ama em silêncio, porque gosta de sofrer com razão. E disso nem terapeuta pode discordar: sofrer com razão é uma dádiva. O Mundo inteiro parece estar sob seus pés, não com semblante de servidão, mas como peso incômodo nas costas de Atlas. O Mundo sabe que é complicado e muito cansativo, e precisa se redimir. Trocas justas, argumentos compatíveis, finais infelizes. Eterno retorno etc. 

Débora falou de Rômulo para Tadeu. Rômulo falou de Débora para Magnólia - sua terapeuta - e Tadeu, por sua vez, não falou nem de Débora nem de Rômulo. Falou de si mesmo durante os muitos textos soltos pelo chão do quarto. Tadeu era assim, um legítimo coração partido. 

Na metade da segunda semana os três se encontraram. Débora queria algo mais do que beijos e suor. Rômulo também, porque sua terapeuta havia exigido isso. Só Tadeu que não queria nada, pois qualquer ganho lhe tiraria o álibi da dor.

Nenhum bar deveria ser descrito em textos. Veja, tal ato materializaria o ápice da redundância, então pulemos essa parte. Pedidos feitos - e vale lembrar que cada pedido, quando se trata de um primeiro encontro com terceiras intenções, define muito da postura que seu mandante irá desempenhar ao longo do ato -, cada um olhou para a mesa como se nela estivessem espalhados papeis preenchidos com todas as frases perfeitas para quem não sabe o que dizer. Franqueza: até sabiam, mas um "preciso ir embora" uníssono marcaria o fracasso tanto quanto os círculos cristalinos tatuavam o espaço ocupado pelos copos deslegantes. Nem queimaduras de cigarro salvariam o momento. Até porque ninguém fumava ali. Ou não havia começado a fumar. 

- Bom ter vocês dois aqui. 
- Verdade, já estava na hora de conhecer o Rômulo.
- A Débora fala de você a cada minuto. 

(Pausa para que o 10º Arcano Maior se manifeste)

Clotho

A bebida fez seu trabalho. Nunca falha. Sempre falta. Sempre parece pouca e fraca. Mas nunca falha. Depois de ter os três afogados em seu porto, arrastou a tríade de corpos juvenis para um cais qualquer. Bastava apenas que o barco estivesse parado - assim náusea alguma quebraria a magia do clima ou copo em cima da cama. 

Corpos em cima da cama. Outro caso que não devemos retratar: três jovens bêbados num quarto desconhecido - mas pago, e bem pago, diga-se de passagem. Não, não vamos descrever o cenário. Só os atos. Começou ali, entre lençóis e saliva, a vida. E agora vem o viver. 

Lachesis

Débora tinha os braços de Rômulo. Tadeu dividia seu tronco com o de Débora. Os três se desconheciam por debaixo das roupas e nus desenhavam-se como cegos e seus dedos de pincel. Débora gostava da sensação de poder, de controlar o ritmo que não era dela e recuava apenas quando o disco pulava uma faixa e corria para a próxima, feito partido alto. Rômulo assumia o papel de macho alfa pelo prazer prometido ao macho ômega. Queria apenas sentir sem esforço, sem as mãos e as pernas. Só queria sentir. Tadeu era curioso. E curiosidade só se manifesta em silêncio. Ele não tinha preferência. Sabia que era o preferido. 

Um arpão perfurava Tadeu; Rômulo sentia o abraço, sem braços, úmido, profundo e quente de Débora; Débora deslisava feito sereia pela proa lisa do abdome faminto de Tadeu; Rômulo sentia o beijo desajeitado de uma moreia a acariciar seus mamilos; Tadeu dava férias às mãos e as conduzia por duas ilhas perdidas no oceano de frenesi; os três se desconheciam o bastante para dizer quem era quem. Incapazes de definir quem queria o quê. Tudo era mar em tempos de maré constantemente cheia.  

O presente, tão bem tecido por Lachesis, retumba como trovoada em dia ensolarado: não sabemos de onde vem, para onde vai, mais esperamos chuva - porque parece óbvio. Débora, Rômulo e Tadeu não sabem de onde vem o desejo pluvial, porém, têm plena certeza do resultado: a melhor noite de suas vidas premeditadas. Entretanto, e tanto mesmo - pois o tempo largou mão do trio e os deixou à vontade da vontade -, o amanhã sempre chega com uma cara de quem não foi convidado para a melhor festa de todas. 

Atrópos

Só restou Rômulo. Morto de cansaço. Com todas as partes do seu corpo lhe cobrando satisfações. Um ranger muscular de fazer qualquer madeira se roer de inveja. Lamentavam os tendões, os ligamentos, as juntas, tudo. E era tão bom. Porque a dor também tem seus limites e quando os alcança, para. Para e contempla a sensação de ausência e anulação. Nos lençóis, só Rômulo e a adoração. A dor da ação de ontem. 

Ele queria saber de quem era o gosto de cigarro em sua boca. Praticamente impossível. Nem Débora, nem Tadeu fumavam. Mas ele tinha certeza que apenas uma boca passou pela sua. O gingado do beijo tinha sido o mesmo durante toda a valsa. Uma língua incansável que não secava de jeito nenhum. Rastro? Algum rastro deixado para trás? A razão fez força, muita força, até detectar a bituca no alto do criado-mudo. Débora era a garota com os lábios alaranjados - bem insossos - e Tadeu, oras, não fumava nem se pintava com batom. Era mesmo importante descobrir quem o havia beijado durante toda a penumbra passada? Era, claro que era. A priori, o tom veraneio na ponta final do cigarro lembrava Débora. Contudo, ao conferir de perto, Rômulo percebeu que aquela era a cor de fabricação do filete cancerígeno. Débora e Tadeu eram a mesma pessoa no cigarro fumado. E que diferença fazia? Toda. Coração se marca com beijo, não com queimadura de bituca. O criado sabia de quem era o rastro, mas continuou mudo.

Moiras

Há três semanas, o destino, mão invisível que teatraliza a vida, escalou três pessoas para a cena final. Não cabia mais chorar pelo par, por Romeu e Julieta, por Eros e Psiquê. O drama exigia bem mais do que isso. Dessa vez, três. 

O destino calou os lábios de Débora e tirou deles a cor patética.

O destino surrou Tadeu por dentro e lhe ensinou a gritar tão alto quanto o tesão, quanto seus pulmões virgens de nicotina - já não tão puros assim -, pudessem.

O destino partiu o coração de Rômulo que agora não era nem alfa nem ômega. Era épsilon Era sentença vazia. Era meio. Era cinco. Rodeado por uma dupla de extremos que não se permitia revelar-se nem mesmo num mísero fumo largado.

Faz seis semanas que nenhum deles se falam. 

Os verdadeiros corações partidos jamais se curam. Jamais se recuperam. Jamais se encontram novamente. 

Batidos. Abatidos. Perdidos.   

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Quando o diabo sussurra

Você nunca chafurdou no mal. Não, claro que não. Você teme e treme, esfria e para, congela diante da porta – possibilidade e oportunidade. Confunde ódio com raiva, da mesma forma que chama paixão de amor. Aquece só com a patada na cara que disfarça e animosidade dividindo a palma em cinco dedos. Esquenta a cara, a face, a pele, o sangue, mas não toca o âmago. Ele continua frio, temendo e tremendo. Ainda não estamos falando de “mal”, muito menos de “eu”.

Violência, agressão, ferida exposta, ossos quebrados. Ainda não estamos falando de “mal”, mas do fim da criatividade. Ele, o mal, é mais astuto que isso – que as ações descaradamente humanas. Sorrateiro, filia-se ao silêncio e maquia a própria cara com o pó do descaramento. Retrata em si mesmo um rosto dócil e consciente, daqueles que têm o lábio umedecido com retórica. Tão sedutor que dispensa o beijo. Vale só pela contemplação e pelo desejo. Mal não é medo. Causa medo.

Não se toca o mal, nem se mensura, nem se deseja. Só se veste sem se ver. Tolice acreditar numa essência “má” ou “boa”. Essência é ausência - necessidade de espaço vazio para ser pano branco e intocável. Pano de enxugar louça e não pra lustrar chão. Pano feito pra ser pano e não trapo. Ele está ali, existe, faz seu papel – tão alvo quanto - de figuração, dita as regras, mas não se mistura. Não limpa mancha de sangue nem dá contorno à cadáver esquecido. Entende? O mal só está. Nós é que fazemos. E somos. Não maus, mas humanos. O mal, quanto não está, faz-se.

Calar vontade invoca o mal. Realizar vontade faz mal.

Mal nasci
Já desci
Para ver o que me esperava
na sola da pureza
nada
estrada
vida
placa errada
caminho imposto
desgosto
mal cresci
já sumi
para esquecer o que me chamava
tudo
família
vida
passada marcada
rua inóspita
esboços
mal escolhi
já perdi
pra aprender
que autonomia
não cabia
nem nunca coube
na alegria
verdadeira agonia
que anuncia o fim
de mim

mal acabado.