A minha memória guardou somente um fragmento daquele dia. Ela estava de jaqueta e calça jeans, cabelo molhado e oceanicamente encaracolado, ofuscado apenas pelo rúbio pigmento que lhe cobria os lábios. Expressão dura, decidida e um cigarro lhe perfumando os pulmões. Na mão direita, a bolsa com os poucos trocados que possuía e na mão esquerda, a minha.
Andava apressada, sem trocar uma palavra. Eu era
pequeno demais para compreender o que estava acontecendo e mesmo hoje, depois
de velho, pouco me importo com os possíveis desfechos desta recordação. Se aqui
escrevo é porque o marcante se fez nos detalhes descritos anteriormente.
Minha mãe era a personificação da força. Sempre alerta e
brava, não deixava que nada impedisse suas tarefas de serem realizadas. Eu
gostava de fazer parte da missão, mesmo que na condição de filho; peso; obrigação; fardo etc.
A cidade parecia um jornal velho. Mesmo depois da
chuva, o céu não tirou o mau humor da cara e seguira assim, emburrado e
desgostoso. Paredes encharcadas, asfalto cintilando, manchas de óleo no chão que
deixavam escapar pedaços de arco-íris e os fios dos postes que só não
eram confundidos com varais porque estavam nus - sem roupas penduradas. Naquela época eu nem
sabia o que era uma trilha sonora, mas hoje posso dizer que tudo soava como “Smiths”.
Foram anos difíceis, nos quais vivíamos com o mínimo - tentando multiplicá-lo ao máximo. Mas ela sempre confortou sem apelar para ilusões. Dizia, "hoje não tenho dinheiro, mas quando eu tiver, compraremos". Eu ficava chateado, como qualquer criança, mas tudo passava quando - já em casa - ela fazia animais de brinquedo com legumes e palitos de fósforo. Minha mãe era alquimista, transformava vontade em sorriso. Ou silêncio.
Pela manhã: "Vamos à padaria com a mãe". Aventura, mãos dadas, preocupação no rosto dela - "será que ele vai pedir aquele carrinho novamente?". Pela tarde: "Filho, vai no bar do Toninho e traz um guaraná fiado", custe o que custar, Madalena garante aos filhos uma refeição o mais agradável possível. Pela noite: "Põe o pijama, as meias, escove os dentes e deite. Vamos ver a novela juntos". Os dias seguiam assim, na pura resistência, na luta, na sobrevivência. No final das contas, é tudo sobre vivência, mesmo.
Foram anos difíceis, nos quais vivíamos com o mínimo - tentando multiplicá-lo ao máximo. Mas ela sempre confortou sem apelar para ilusões. Dizia, "hoje não tenho dinheiro, mas quando eu tiver, compraremos". Eu ficava chateado, como qualquer criança, mas tudo passava quando - já em casa - ela fazia animais de brinquedo com legumes e palitos de fósforo. Minha mãe era alquimista, transformava vontade em sorriso. Ou silêncio.
Pela manhã: "Vamos à padaria com a mãe". Aventura, mãos dadas, preocupação no rosto dela - "será que ele vai pedir aquele carrinho novamente?". Pela tarde: "Filho, vai no bar do Toninho e traz um guaraná fiado", custe o que custar, Madalena garante aos filhos uma refeição o mais agradável possível. Pela noite: "Põe o pijama, as meias, escove os dentes e deite. Vamos ver a novela juntos". Os dias seguiam assim, na pura resistência, na luta, na sobrevivência. No final das contas, é tudo sobre vivência, mesmo.
Conversei com uma amiga há poucos
instantes sobre o passado. Sobre ainda ser o passado – ou parte dele. Em suma, eu gosto do passado justamente porque - ainda que as roupas dele não me sirvam mais - posso vesti-lo com a poesia que quiser. Assim como minha
mãe me vestiu naquela ocasião, como bem quis. Eu, o menino que não enchia uma
palma de mão com os anos de vida, era a personificação do passado dela, o
resultado, o desfecho. Mas, como ambos sabíamos, eu não pararia ali. O que
parou foi justamente o tempo pretérito. Perfeito, ao meu ver.