domingo, 14 de outubro de 2012

Livre

Eu sempre quis ser livre. Quando criança, gastava horas e horas imaginando um mundo em que fosse possível voar, respirar debaixo d'água e andar sobre os rios de lava. Queria sentir como se fosse possível estar em todos os locais, não ao mesmo tempo, mas a qualquer hora.

Perto da adolescência, conheci a liberdade nas ruas asfaltadas. A liberdade nas calçadas cheias de amigos e risadas. A mesma liberdade que fazia com que a bola rolasse para dentro do gol sem nenhum obstáculo. Já na escola, não estava tão solto assim. Porém, conseguia me distrair como pouco de "fuga" que me restava. Eu escrevia e desenhava muito. Tanto quanto estudava. Melhorei minha escrita e os traços. Também me sentia livre quando corria em direção ao gol e, após ter dado os "três passos", saltava com a bola presa pelos finos dedos. Gol. Por alguns segundos voltava a ser criança e voava naquele mundo que tanto envolveu meus sonhos.

Foi então que descobri o amor e a liberdade deixou de existir. Fui pego pelas vinhas do sentimento e amarrado a um emaranhado de sensações até então desconhecidas. Só pensava na mesma pessoa. Acordava e dormia pensando nela. As rezas clamavam apenas por seu carinho. Era assim, esqueci de voar... de respirar submerso... de caminhar pelos lagos em chamas.

Só consegui me libertar depois de ter expelido todo o veneno em lágrimas e noites perdidas. Aos poucos, reconstruí a mim mesmo, mas a partir daí aprendi que tal situação voltaria. Cedo ou tarde ela voltaria. Ou ele, de repente.

Cresci. O dinheiro veio. O trabalho veio. Uma nova vida, vivida à noite. Encontrei outra forma de liberdade. Ela vinha em estado líquido. Nem sempre tinha um gosto bom, entretanto causava um efeito viciante. Relaxava os músculos do corpo e da mente. O coração perdia o compasso assim como os pés. Libertava como nada havia me libertado antes. Eu sorria por qualquer motivo e, nos instantes em que buscava o exílio dentro do quarto, chorava de soluçar. Deixava fluir e, mesmo acordado, eu sentia o corpo flutuando... via tudo lentamente como se estivesse debaixo d'água e meu peito queimava de calor, envolto em uma densa capa de magma.

Mas a liberdade tem asas justamente para poder partir a qualquer instante. E assim ela se foi. Deixou apenas as marcas nos braços e fortes dores. Encheu meu estômago de fome e estourou feridas nos lábios. Voltei a ficar preso. Preso pela saudade de tê-la novamente. De tê-lo aqui novamente, deitado no chão, olhando para o teto. Eu e ele, achando que o mundo era pequeno demais para nos fazer livres.

Após um longo período perdido nos labirintos criados pelos meus próprios desejos, encontrei a estrada que me guiaria até o infinito. De primeira foi difícil aceitar a finitude. Refletir sobre a morte e suas implicações. Ou melhor, as implicações que surgem antes de se alcançar o suposto descanso eterno. Eu estava em uma fase que bastava estar vivo para sentir um gosto amargo na boca. A angústia sem nome me corroía sem piedade. Falar, comer, tomar banho, acordar, andar, assinar, acessar, escrever, estudar, escutar... tudo era um martírio. Templo nenhum seria capaz de me libertar. Foi então que assumi um desejo oculto por muito tempo, mas que precisava ganhar espaço dentro de mim. Decidi que se o sofrimento ganhasse um peso insuportável eu mesmo colocaria fim em tudo. Encontrei aí mais uma parte da liberdade.

Livre. Escolhi as cores mais vivas. Queria que seu olhar fosse profundo e calmo. Verdes. Ela precisava manter aquele "tom" latino que expira emoção sem precisar de movimento algum. Rosas, também precisava de rosas. Sentei na cama e lembrei que há liberdade na morte. Há liberdade na falência e na desistência. Há liberdade na falha, na derrota e na ruína. A agulha rasgou minha pele e, a cada segundo, deixava uma trilha de tinta e sangue. Curvas e mais curvas, até que seu rosto começou a ganhar forma. Doía. A pele morria, o sangue jorrava e, de certa forma, eu deixava para trás a vida e suas regras. Morria ali obrigação, a prestação de contas, a normalidade, a aceitação. Morria para libertar. Livre. Até que a morte me prepare.

Até que a liberdade me separe.

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